Por Rogério Rocha
O modo como a crítica tentava classificar Antônio Carlos Belchior tendia a situá-lo basicamente no interior de dois grupos do cenário musical brasileiro. “O primeiro deles conhecido como “pessoal do Ceará” e que reunia os artistas que, a partir da década de 1970, chegaram ao mercado nacional, sobretudo quando migraram para o Rio de Janeiro e São Paulo. Dentre eles, figuras singulares como Fagner, Ednardo e Amelinha, tidos como seus principais expoentes. O outro grupo dizia respeito à tão propalada MPB, que agrupa artistas dos mais diversos gêneros musicais, todos ligados a uma apreciação valorativa positiva e elitizada da nossa música. Neste grupo encontram-se nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina e outros tantos.
O compositor Belchior, em sua trajetória dentro da música brasileira, a bem da verdade, não estava (nem queria estar) ligado especificamente a nenhum grupo artístico. Dono de uma inteligência aguda, de um olhar crítico, sensível e profundo, criou um estilo próprio e marcante. Para isso, investiu em alguns interessantes procedimentos discursivos e estilísticos em suas composições, fazendo uso, inclusive, de certos recursos linguísticos que criaram interessantes contrapontos em diálogos polêmicos com músicas de outros compositores e cantores, como Raul Seixas e Caetano Veloso, por exemplo.
Sua semelhança com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche ia muito além do vasto bigode, que os dois cultivaram a vida toda. Em que pese não a manifestar explicitamente, Belchior certamente sofreu muita influência de alguns dos principais conceitos nietzschianos, dentre os quais as noções de vontade de poder, moral de rebanho, eterno retorno do mesmo e, principalmente, de sua crítica ao mundo idealizado. A relação fica bem mais evidenciada quando analisamos detidamente as letras do cearense.
Para o filósofo alemão, o juízo moral tem em comum com o juízo religioso o fato de crer em realidades que não existem. Ou seja, no entendimento dele, criamos, com isso, um mundo demasiadamente idealizado que, por outro lado, acaba por negar o mundo real.
Essencialmente realista e vitalista, o cearense Belchior, na mesma linha das ideias defendidas por Friedrich Nietzsche, via a experiência com a realidade como o verdadeiro espaço da emancipação do ser humano. Vemos isso em “A palo seco”, por exemplo, quando diz: “Se você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos, lhe direi: amigo, eu me desesperava. ” Um pé no chão que reaparece também em “Alucinação”, à base de afirmações como: “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, nem nessas coisas do Oriente, romances astrais... A minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é experiência com coisas reais. ”
Em sua obra, portanto, temos a arte como uma das vias de emancipação humana, ou seja, um instrumento para a libertação dos sentidos que possibilitaria a vivência de coisas novas, cravadas no cotidiano, cantado e contado em suas belas músicas. Na mesma perspectiva, Nietzsche pensava a beleza da arte como um estímulo à fruição da vida. Afirmava que ela só era possível com a manifestação da vontade de potência dos sentidos fisiológicos. O filósofo, portanto, comparava a verdadeira arte a Dionísio, divindade grega da festa, do sexo, da alegria, da liberdade, enfim, dos sentidos do corpo e dos afetos inebriados.
Para se afirmar como um dos grandes compositores da nossa música (e um dos mais geniais, ao meu sentir), Antônio Carlos Belchior atravessou terrenos divisórios entre o corpo e a alma, forjando sua discografia sem a sede da fama fácil e da popularidade passageira. Buscou mostrar, para tanto, na crueza da realidade, na sinceridade das coisas, a dor que nos ensina a melhor sorver os momentos de alegria. Afinal, como ele cantava, “a felicidade é uma arma quente.”
Ademais, o tom das críticas presentes em suas letras mexia com nossas frustrações ideológicas, filosóficas e políticas. Sua música, feita para esse mundo onde nem tudo são flores, despertava em nós uma lucidez luminosa, difícil de encontrar em outros artistas.
No livro intitulado “Humano, demasiado humano”, Nietzsche aponta para aquele que seria o destino do espírito verdadeiramente livre, afirmando que: “Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. ”
Esta
sentença define muito bem quem foi para mim Belchior: além de um grande
compositor, um espírito livre. Um ser errante, poeta-músico e filósofo do constante
devir, que andou caminho errado “pela
simples alegria de ser”. Ser do algum lugar e do lugar nenhum. Afinal, “o mundo inteiro está naquela estrada ali na
frente”.
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