segunda-feira, 25 de setembro de 2017
quinta-feira, 21 de setembro de 2017
Tentando curar o que não é doença, adoecem a Constituição
Saul Tourinho Leal e Rafael Wowk1
Esse mês de setembro não tem sido um bom mês para os direitos constitucionais. Nem bem tomávamos fôlego após boicotes conservadores e censuras judiciais, tivemos a notícia da decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª vara Federal da seção judiciária do Distrito Federal.
O magistrado, numa Audiência de Justificação Prévia exigida pelo art. 300, § 2o do Código de Processo Civil, apreciou o pedido de tutela de urgência formulado na Ação Popular 1011189-79.2017.4.01.3400, ajuizada por duas psicólogas e um psicólogo, contra o Conselho Federal de Psicologia.
Ao que parece, haviam sido, as autoras, penalizadas pelo referido Conselho por oferecerem a "terapia de reorientação sexual", conhecida, no Brasil, como "cura gay". Para se verem livres de suas advertências, atacaram a resolução 01/99 do Conselho, cuja interpretação servia de base para não se admitir a dita "terapia".
A Ação Popular objetiva a "(...) suspensão dos efeitos da resolução 01/99, a qual estabeleceu normas de atuação para os psicólogos em relação às questões relacionadas à orientação sexual". A resolução constituiria "ato lesivo ao patrimônio cultural e científico do país, na medida em que restringe a liberdade de pesquisa científica assegurada a todos os psicólogos pela Constituição, em seu art. 5º, IX".
Na prática, a Ação requer, por ofensa à Constituição, a declaração de inconstitucionalidade da resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia, aplicável aos mais de 300 mil profissionais espalhados pelo país. O dispositivo constitucional violado seria o inciso IX do art. 5o, que diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação independentemente de censura ou licença".
Na audiência, foram formulados os seguintes questionamentos aos autores: "a) pretendem os autores divulgar ou propor terapia tendentes à reorientação sexual?; b) os autores estão impedidos ou foram punidos pelo C.F.P. por prestarem suporte psicológico, ainda que solicitados e de forma reservada, às pessoas desejosas de uma reorientação sexual? c) no campo científico da sexualidade, em especial no que diz respeito ao comportamento ou às práticas homoeróticas, o que se permite ao psicólogo estudar ou clinicar sem contraria a resolução 01/1999 do C.F.P.?"
O Conselho não se intimidou. Para ele, as "terapias de reversão sexual" não têm resolutividade, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico. Desde a Classificação Internacional de Doenças (CID) nº 10, de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) entende que "a orientação sexual por si não deve ser vista como um transtorno". Dizer a uma pessoa que ela será tratada psicologicamente para que "deixe de ser gay" seria, além de uma estupidez, uma violência.
A compreensão de que a orientação sexual não pode ser enxergada, numa sociedade civilizada, como patologia ou distúrbio, não é novidade. A expressão "homoafetividade", por exemplo, nasceu exatamente para evitar a associação entre a orientação sexual e doenças. Na obra "União Homossexual, o Preconceito e a Justiça", de Maria Berenice Dias, consta: "Há palavras que carregam o estigma do preconceito". Assim, o afeto para a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais”. Daí o aparecimento do termo "homoafetividade".
As razões apresentadas pelo Conselho Federal de Psicologia, contudo, não impressionaram o juiz. "Defiro, em parte, a liminar requerida para, sem suspender os efeitos da resolução 01/99, determinar ao Conselho Federal de Psicologia que não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re) orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do C.F.P., em razão do disposto no art. 5o, inciso IX, da Constituição de 1988”, consta da decisão".
Vale refletir. Por quê uma ação popular para discutir isso? Segundo o art. 5o, LXXIII, da Constituição, qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular, dentre outros, ato lesivo ao patrimônio cultural. Assumir como premissa que a vedação a terapias que prometam "curar" gays violaria o patrimônio cultural brasileiro já soa, por si só, um preconceito assombroso.
Enquanto a decisão da 14a vara Federal do Distrito Federal depositou suas esperanças num "tratamento psicológico" que permita a "reorientação sexual", o Supremo Tribunal Federa, no leading case que reconheceu a união estável entre casais homoafetivos (ADI 4277 e ADPF 132), encontrou, na psicologia, uma das razões para se separar orientação sexual de patologia: "O que, por certo, inspirou Jung (Carl Gustav) a enunciar que 'A homossexualidade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação'", anotou o ministro Carlos Ayres Britto, em seu voto-vencedor. No caso, a psicologia foi instrumento de destruição de estigmas perversos, não de reafirmação deles.
Há outro ponto: Uma liminar dando interpretação conforme à Constituição de um ato normativo em vigor por 18 anos? Qual o perigo da demora a justificar essa tutela de urgência? Não vigorou, a Resolução, por quase duas décadas?
Também é válido questionar a respeito da capacidade institucional do Judiciário em definir quais terapias hão de compor a psicologia brasileira. Teriam, os julgadores, capacidade institucional para, sob a invocação de proteção do patrimônio cultural, driblar orientações da OMS e, derrubando uma resolução do Conselho Federal de Psicologia, autorizar psicólogos a oferecerem um tratamento reputado não apenas inútil, mas perturbador ao bem-estar dos pacientes? Isso, para que essa dor e sofrimento sejam vistos como avanço científico? Que tipo de sociedade faz isso com os seus?
Resta saber se o que os autores populares fizeram não foi se valerem desta ação popular para proceder à declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo com efeitos gerais (erga omnes), como ocorre com o julgamento, pelo STF, da ação direta de inconstitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Isso porque, não cabe, à ação popular, fazer as vezes destas ações, sobre pena de se usurpar a competência do Supremo no exercício de sua função precípua de guarda da Constituição. Segundo o art. 18 da lei 4.717/65, no caso da ação popular, "a sentença terá eficácia de coisa julgada oponível 'erga omnes'".
A resolução 01/99 tem efeitos mais do que concretos, pois disciplina o comportamento de todos os psicólogos do Brasil (são mais de 300 mil), valendo-se de uma linguagem típica, pela sua fluidez, de lei. A primeira parte do art. 3° da Resolução, diz: "Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas (...)". Seus comandos encarnam princípios diretamente constitucionais, como o da vedação ao preconceito em razão do sexo (Preâmbulo, art. 3o, IV e art. 5o, caput, da Constituição).
O STF já reconheceu a viabilidade de se aferir a constitucionalidade, pela via do controle abstrato, de vários tipos de resoluções: 1) Resolução de qualquer Tribunal (ADI 3544, Min. Edson Fachin, 30.6.2017); 2) Resolução do Conselho Nacional de Justiça (ADI 4638 MC-Ref, Min. Marco Aurélio, 8.2.2012); 3) Resolução do Conselho Nacional de Magistratura (ADI 4140, Min. Ellen Gracie, 29.6.2011); 4) Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (ADI 3831, Min. Cármen Lúcia, 4.6.2007); 5) Resolução do Presidente do Conselho da Justiça Federal (ADI 3126 MC, Min. Gilmar Mendes, 17.2.2005); 6) Resolução do Conselho Monetário Nacional (ADI 2317 MC, Min. Ilmar Galvão, 19.12.2000); 7) Resolução do Conselho Administrativo do Superior Tribunal de Justiça (ADI 1610 (Min. Sydney Sanches, 3.3.1999); 8) Resolução do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ADI 51, Min. Paulo Brossard, 25.10.1989).
Indo além, ao proceder à técnica da interpretação conforme à Constituição, numa sentença erga omnes, a decisão usurpa, novamente, a competência do Supremo. Segundo o art. 28, parágrafo único, da lei 9.868/99, que disciplina o julgamento de ações do controle concentrado no STF, a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme à Constituição, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. O uso da técnica, numa ação popular, coloca a decisão em rota de colisão com a Suprema Corte, pois a converte, em desrespeito ao art. 97 da Constituição (cláusula de reserva de Plenário), em resposta máxima de guarda da nossa Carta.
Mas esse vício tem cura. O art. 102, I, 'l', da Constituição, dispõe que compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a reclamação para a preservação de sua competência. O art. 988, I, do CPC, diz que "caberá reclamação da 'parte interessada' ou do Ministério Público para preservar a competência do tribunal".
Em muitos países, têm sido, as leis e a Constituição, instrumentos de transformação empoderadores das pessoas pelo acesso a direitos. Edwin Cameron, juiz da Corte Constitucional da África do Sul, uma autoridade gay e soropositiva, anotou em sua obra, "Justice", o seguinte: "O direito ofereceu-me a chance de remediar e reparar a minha vida. A Constituição oferece a nós a chance de remediar o nosso país". Não é diferente com a Carta brasileira, cujos comandos abrem espaço para a fraternidade necessária a superar entraves ao reconhecimento integral, e orgulhoso, da dignidade da pessoa humana. Segundo o Ministro Carlos Ayres Britto, "a sociedade não pode ter outro fim que não seja a busca da felicidade individual dos seus membros e a permanência, equilíbrio e evolução dela própria"2. Isso é fruto de uma "democracia fraternal", na qual o pluralismo se "concilia com o não-preconceito"3.
Além das questões quanto ao cabimento da ação popular, há, ainda, elementos materiais dignos de nota. Primeiramente, nenhuma liberdade desse mundo autoriza um profissional da saúde a oferecer, como serviço, a "cura" da orientação sexual de alguém, ainda que atribua, a essa "terapia", outro nome (reorientação ou reversão sexual, por exemplo). É algo indigno. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, "a pessoa humana passou a ser vista como portadora de uma dignidade inata. Por isso que titular do 'inalienável' direito de se assumir tal como é: um microcosmo"4. Ninguém pode abrir mão de sua dignidade, daí não impressionar o argumento de que o tratamento é voluntário e para adultos. Pouco importa.
Nesse aspecto, a liberdade é limitada pela própria Constituição. Tanto que o STF, recentemente, apreciando a cautelar na Ação direta de Inconstitucionalidade 5501 (Min. Marco Aurélio, Pleno, 19.5.2016), registrou: "Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia das substâncias". Isso, para "afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano", anotou o Ministro Marco Aurélio, declarando a inconstitucionalidade da lei que prometia a cura das pessoas com câncer pelo uso da fosfoetanolamina, até mesmo sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
A vida que a Constituição quer para todos nós é uma vida abundante. Ela determina que se controle o emprego de técnicas e métodos que comportem risco para a qualidade de vida (art. 225, V). No voto que proferiu em favor das uniões homoafetivas, o Ministro Carlos Ayres Britto registrou que a orientação sexual é fato "de auto-estima no mais elevado ponto da consciência. Auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade". Noutras palavras: não há felicidade sem dignidade. São faces da mesma moeda.
Ninguém jamais será privado, numa democracia constitucional como a brasileira, de estudar o que quer que seja, de pesquisar aquilo que deve ser pesquisado. Psicólogos não só podem, como devem, se dedicar a explorar, com seus estudos e pesquisas, todas as nuances da sexualidade humana. Todavia, numa comunidade atenta tanto ao preconceito quanto ao sofrimento, é possível, por meio de uma resolução, que um conselho profissional advirta profissionais da saúde, como os psicólogos, de que não devem oferecer às pessoas iniciativas que sugiram que alguém pode – ou deve – ser "curado" por um fato da vida: ser gay. Isso é cruel.
E o curioso é saber que o mesmo Judiciário que pode, pelas suas decisões, abrir caminho para a reafirmação de estigmas é o mesmo que cede espaço para o empoderamento. Dia 5.5.2011, o STF apreciou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132. Conferiu-se igualdade de direitos às uniões homoafetivas. "A preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da 'dignidade da pessoa humana' (inciso III do art. 1º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal", anotou o Ministro Carlos Ayres Britto, relator.
Deve ser, a dignidade da pessoa humana, o princípio regedor da matéria relativa à constitucionalidade da resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia. Um princípio do qual ninguém abre mão, nem mesmo os adultos voluntariamente. Também um princípio que, protegendo minorias de danos ao seu bem-estar subjetivo, impede que se abrace a ideia de que a liberdade deve ser utilizada para se impor danos aos outros. Nem nos clássicos, nem nos contemporâneos, jamais, a liberdade se prestou a isso.
Gays têm todo o direito de ter uma sadia vida psíquica. Diante dos dilemas da vida, podem relatar seus dramas e tentar encontrar explicações compatíveis com o que se espera da psicologia. Todavia, psicólogo nenhum pode abrir as portas do seu consultório para implementar uma terapia que prometa fazer o gay "deixar de ser gay". É um embuste. Quando deixamos de reconhecer o potencial sofrimento do semelhante, perdemos o que temos de mais valioso em nós: a nossa humanidade.
A orientação sexual, e a total liberdade a ela inerente, são conquistas civilizatórias decorrentes de extrema dedicação de gerações e gerações que, marginalizadas por serem quem são, não tombaram diante do preconceito e seguiram acreditando que não há o que ser curado na exuberância da sexualidade humana. Ninguém mais neste país deve passar pela violência de ser tratado, por profissionais da saúde para que "deixe de ser gay". Viramos essa página. Passou. Acabou.
A Constituição enxerga todos os gays como semelhantes que devem, cada vez mais, ser empoderados para que, livres e felizes, numa sociedade fraterna e sem preconceitos, deem as mãos aos seus concidadãos na dura tarefa de reconstruir os laços esgarçados da nossa comunidade. Há espaço, respeito e direitos para todos, tantos quantas são as cores do arco-íris. Não há, nessa condição humana, nada a ser curado. Pelo contrário. Há o que ser, como um plus da vida, celebrado. Ainda bem.
__________
1 Rafael Wowk é mestre em Direito pela Sorbonne – Paris 1 e pela New York University. Ambos integram o escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.
2 O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 21.
3 Ibidem, p. 34.
4 Ibidem, p. 20.
Fonte: Migalhas
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sexta-feira, 15 de setembro de 2017
quinta-feira, 14 de setembro de 2017
DAVID GILMOUR - "SHINE ON YOU CRAZY DIAMOND" - ACOUSTIC VERSION
Lyrics:
Shine on you crazy diamond.
Now there's a look in your eyes, like black holes in the sky.
Shine on you crazy diamond.
You were caught in the cross fire of childhood and stardom.
Blown on the steel breeze.
Come on you target for faraway laughter.
Come on you stranger, you legend, you martyr, and shine!
You reached for the secret too soon, you cried for the moon.
Shine on you crazy diamond.
Threatened by shadows at night, and exposed in the light.
Shine on you crazy diamond.
Well you wore out your welcome with random precision.
Rode on the steel breeze.
Come on you raver, you seer of visions.
Come on you painter, you piper, you prisoner, and shine!
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domingo, 10 de setembro de 2017
sexta-feira, 8 de setembro de 2017
Corrupção no processo legislativo torna lei inconstitucional? (por Fábio Lima Quintas)
No curso da operação zelotes, investiga-se a possibilidade de ter havido a “compra” de medidas provisórias[1]. Nas delações havidas no curso da operação “lava jato”, sugere-se que a Odebrecht teria também pago pela aprovação de leis[2].
A
comprovação da ocorrência desses eventos levantará dúvidas não apenas a
respeito da legitimidade do processo legislativo praticado na nossa
jovem democracia, mas também suscitará indagações a respeito da higidez
dos atos normativos editados pelo Congresso Nacional em vista da mácula
em sua formação.
É certo que, numa democracia, espera-se que a
política seja utilizada como mecanismo de defesa de interesses, numa
sociedade pluralista, que conduz à formação das regras que nortearão a
nossa vida em sociedade. É nesse contexto que surge aquilo que Jeremy
Waldron chamou da contingência do Direito: o Direito, no Estado moderno,
está sujeito a modificações, que devem ocorrer ordinariamente no meio
político, pelos representantes legitimamente eleitos, no exercício
regular de seus mandatos (observadas, por óbvio, as regras do jogo
estabelecidas pelo Direito)[3].
Essa
defesa de interesses degenera-se em corrupção quando se perde a ideia
de bem comum que deve conduzir o processo legislativo e que constitui
premissa norteadora da formação da vontade política e das leis.
Por
isso, a ocorrência de “compra de leis”, além de colocar em xeque as
bases em que se assentam o Estado de Direito, põe em discussão a
possibilidade de aplicação de sanções jurídicas para o parlamentar e
para a lei fruto da manifestação de vontade viciada. Surge, portanto,
indagação sobre os efeitos dessa prática nefasta nos institutos da
imunidade parlamentar e do controle de constitucionalidade.
Como
se sabe, é para resguardar o adequado funcionamento da democracia que se
conferiu a imunidade ao parlamentar no exercício de seu múnus público.
No Brasil, a imunidade parlamentar não tem sido considerada barreira
para a responsabilização penal dos parlamentares. De fato, é certo que
hoje se entende que o parlamentar, no exercício de suas funções, está
sujeito a um regime de responsabilidade não apenas eleitoral (perante os
eleitores), mas também disciplinar e mesmo penal.
No que se
refere à responsabilidade disciplinar, prescreve o art. 55, §1º, da
Constituição Federal que “é incompatível com o decoro parlamentar, além
dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas
asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens
indevidas”.
Na Ação Penal 470[4]
(conhecida como processo do “mensalão”), o Supremo Tribunal Federal
entendeu configurada a responsabilidade penal dos parlamentares e a
prática de ilícito penal, tendo em vista a “comprovação do amplo esquema
de distribuição de dinheiro a parlamentares, os quais, em troca,
ofereceram seu apoio e o de seus correligionários aos projetos de
interesse do Governo Federal na Câmara dos Deputados”.
Dissociando
a discussão do período pré-eleitoral e afastando a tese do crime
eleitoral de “caixa 2”, entendeu-se que “os parlamentares receberam o
dinheiro em razão da função, em esquema que viabilizou o pagamento e o
recebimento de vantagem indevida, tendo em vista a prática de atos de
ofício”.
A questão é saber se o vício de vontade do parlamentar,
se a corrupção da sua ação macula a validade da lei, por
inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade é um vício que deriva de
uma relação de desvalor, que se configura pela desconformidade de
determinado ato com a Constituição, atribuindo-se a esse vício uma
sanção, ordinariamente associada à declaração de sua nulidade.
Há
inconstitucionalidade formal quando não se observam as regras
constitucionais “respeitantes à produção e à revelação de um acto
jurídico-público”[5]
(observância dos procedimentos necessários para a aprovação do texto
normativo, como iniciativa, quórum e rito). A inconstitucionalidade
material se manifesta quando ocorre uma lesão direta a “um enunciado
substantivo da normação constitucional”[6].
Nesse
juízo de desconformidade, assume-se que, em princípio, a vontade do
legislador é irrelevante (até porque, dado que a lei é fruto do concurso
de vontade de diversos agentes e decorre de um complexo processo, a
ideia de vontade do legislador é uma ficção jurídica). Nesse sentido, há
orientação antiga do Supremo Tribunal Federal de que “eventuais vícios
que se possam verificar nos motivos do ato estatal não contagiam as
normas nele veiculadas[7]”.
Esse
pensamento poderia conduzir à conclusão de a corrupção de um
parlamentar não seria juridicamente relevante para a realização do
controle de constitucionalidade. Certamente, dado o contexto político e
constitucional que vivemos, essa orientação será desafiada.
Nos
autos da ADI 4.885, por exemplo, a AMB e a Anamatra postulam o
reconhecimento da inconstitucionalidade formal da EC 41/2003, que
instituiu o Fundo de Previdência para os servidores públicos, por
entender que os atos criminosos praticados por parlamentares,
constatados na já mencionada Ação Penal 470, importariam em violação ao
art. 1º, parágrafo único, da Constituição, porque a Emenda
Constitucional não expressou a efetiva vontade do povo (exercida por
meio de seus representantes); art. 5º, inciso LV, da Constituição, em
vista da ofensa ao devido processo legislativo; e aos arts. 60, § 2º, e
37, caput, da Constituição, porque não se observou materialmente o rito
deliberativo para aprovação das emendas constitucionais e houve ofensa
ao princípio da moralidade.
No parecer que apresentou na ADI, o
procurador-geral da República, apesar de reconhecer que “o vício na
formação da vontade no procedimento legislativo viola diretamente os
princípios democráticos e do devido processo legislativo e implica,
necessariamente, a inconstitucionalidade do ato normativo produzido”,
pugnou pela improcedência da ação.
Segundo o PGR, “por força
desses mesmos princípios, bem como em razão da garantia constitucional
da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, da CR), é
indispensável que haja a comprovação da maculação da vontade de
parlamentares em número suficiente para alterar o quadro de aprovação do
ato normativo, o que não ocorre na hipótese ora analisada”, dado que na
AP 470 “foram condenados sete parlamentares em razão de sua
participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político”.
Essa ADI, que se encontra sob a relatoria do ministro Marco Aurélio,
está pendente de julgamento.
No plano da inconstitucionalidade
material, examinando o conteúdo da norma, hoje já se admite que, no
controle de constitucionalidade, se faça um juízo sobre fatos e
prognoses legislativa[8].
É dizer que se leve em consideração, no julgamento de
constitucionalidade, os fatos e o diagnóstico presentes no momento da
elaboração da norma ou mesmo sua motivação.
Nos Estados Unidos, a
possibilidade de realizar juízo de constitucionalidade a partir das
motivações legislativas constitui um tema polêmico na prática
constitucional da Suprema Corte.
Conforme nos relata John Hart
Ely, a recusa do exame das motivações para a apreciação da
inconstitucionalidade de uma dada lei deriva da dificuldade de
determinar se uma motivação ilegítima influenciou uma decisão. Mas
haverá situações em que “não haverá explicação alternativa legítima para
o ato em questão, situações em que portanto é possível deduzir de modo
responsável que o ato teve motivação inconstitucional”[9].
Apresentando
um histórico do controle de constitucionalidade das motivações
legislativas, Caleb Nelson, professor da Universidade da Virgínia,
conclui que, a partir da década de 70 do século passado, a Suprema Corte
expandiu as fontes de informação para passar a consultar dados
relativos ao histórico do processo legislativo, o que até então se
considerava fora dos limites do juízo de constitucionalidade[10].
É
preciso destacar que esse procedimento foi adotado, inicialmente, para
permitir a adequada proteção dos direitos fundamentais, notadamente os
previstos na 14ª Emenda, no que se refere à proteção contra a
discriminação (racial, religiosa e de gênero). Hoje, não obstante tenha
sido superado o dogma de que as motivações legislativas não são
judicializáveis, propõe-se que o exame das motivações legislativas
adquira relevância para o controle de constitucionalidade apenas quando o
ato normativo produz certos efeitos reais não albergados pela
Constituição[11].
Nessa
perspectiva, caberia voltar a nossa indagação, a respeito da
viabilidade de declarar de inconstitucionalidade de uma norma que tenha
atendido os interesses escusos de uma dada empresa.
De um lado,
poderia se argumentar que, se a corrupção tiver sido causa suficiente
para a edição do ato normativo, estaria viciada a vontade dos
representantes e comprometida a motivação legislativa, a justificar o
reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Por outro lado, o
atendimento de interesses escusos não significa necessariamente que os
atos de corrupção tenham sido causa suficiente para a edição do ato
normativo e que não se façam presentes razões jurídicas legítimas para a
elaboração de uma lei geral e abstrata sobre determinado tema.
Para
ilustrar, cogite-se da edição de uma lei instituindo programa de
refinanciamento de dívidas tributárias que seja fruto de “atos de
corrupção” de parlamentares. Essa lei pode ter beneficiado a empresa que
a “encomendou” ilegitimamente para determinados parlamentares, mas
também terá alcançado milhares de outros contribuintes que são
totalmente estranhos ao processo de produção da legislação.
Pode-se
opor a essa dificuldade, própria do juízo proferido em controle
concentrado e abstrato de constitucionalidade, que a censura pela edição
de ato derivado de motivação espúria é cabível no controle difuso,
concreto e incidental, com o afastamento da aplicação do ato normativo
inconstitucional para aquele que diretamente deu causa ao vício na
formação da vontade política e dela se beneficiou. Essa discussão
poderia surgir, por exemplo, em ação de improbidade ajuizada contra
aqueles que praticaram tais atos.
De todo modo, cumpre concluir
que o grau de deformação do sistema político alcançou, no Brasil, não
apenas o sistema político-eleitoral, mas também espraiou seus efeitos
para o sistema legislativo, o que pode conduzir a uma nova reflexão
sobre os limites do controle de constitucionalidade, que deve sempre
estar atento aos perigos de uma judicialização excessiva da política.
Sendo ou não motivo de orgulho, cabe-nos reconhecer a possibilidade de o
Direito Constitucional brasileiro oferecer mais uma contribuição
original para o rico debate sobre os limites do controle de
constitucionalidade.
* Esta coluna é produzida pelos membros
do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional
(OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
[1] Confira-se a notícia jornalística: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pf-indicia-lula-por-venda-de-medida-provisoria,70001784261
[2] Confira-se a notícia jornalística: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/12/politica/1481572367_344629.html
[3] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Cap. 1: a indignidade da legislação (especialmente pp. 13-20).
[4]
AP 470, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em
17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC
22-04-2013
[5] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.149.
[6] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.138.
[7]
ADI 432, Rel. Min. Celso De Mello, Tribunal Pleno, julgado em
15/05/1991, DJ 13/9/1991. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal
entendeu que não seria possível exercer juízo de constitucionalidade, em
sede de controle concentrado, de portarias ministeriais a partir de
consideranda do ato estatal.
[8]
Vide decisão monocrática proferida nos autos da ADI 2.548, em
18/10/2005, pelo ministro Gilmar Mendes, na qual se cogitou a “a
possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional lançar mão de
quaisquer das perspectivas disponíveis para a apreciação da legitimidade
de um determinado ato questionado. A constatação de que, no processo de
controle de constitucionalidade, se faz, necessária e inevitavelmente, a
verificação de fatos e prognoses legislativos, sugere a necessidade de
adoção de um modelo procedimental que outorgue ao Tribunal as condições
necessárias para proceder a essa aferição.” (Informativo 406 do STF).
[9] ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 184.
[10] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008.
[11] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008. pp. 1.850-1857.
Fábio Lima Quintas é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB. Professor de processo civil e advogado.
Fonte: Consultor Jurídico
Fábio Lima Quintas é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB. Professor de processo civil e advogado.
Fonte: Consultor Jurídico
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lei,
processo legislativo
Lei 13.432/2017 limitou investigação por detetive particular (por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Adriano Sousa Costa)
Entrou em vigor a Lei
13.432/17, com o propósito de disciplinar a atividade do detetive
particular. Definiu sua natureza como não criminal (artigo 2º), exigiu
contrato escrito com estipulação de honorários e prazo (artigos 7º e 8º)
e confecção de relatório do serviço (artigo 9º), além de estabelecer
vedações (artigo 10), deveres (artigo 11) e direitos (artigo 12).
Possibilitou ainda a colaboração do detetive profissional com a
investigação policial mediante autorização do contratante e aceite do
delegado de polícia (artigo 5º). A lei não instituiu carteira de
identidade profissional (como desejava a versão inicial do projeto de
lei) nem concedeu porte de arma de fogo ao detetive. A regulamentação é
complementada pela Lei 3.099/57 e pelo Decreto 50.532/61, que não foram
revogados expressa ou tacitamente pela Lei 13.432/17.
O detetive
particular pode atuar “por conta própria ou na forma de sociedade civil
ou empresarial” (artigo 2º). Caso opte por constituir sociedade, deve
estar registrada na Junta Comercial do estado respectivo (artigo 1º da
Lei 3.099/57), bem como na delegacia de polícia do local de atuação
(artigo 1º do Decreto 50.532/61).
A atuação do detetive é restrita
territorialmente. Não altera essa constatação o fato de ser direito do
detetive (artigo 12, I) exercer a profissão “em todo o território
nacional”, pois isso deve ser feito “na forma desta Lei”, ou seja,
observando a exigência de estipulação contratual do “local em que será
prestado o serviço” (artigo 8º, V).
A legislação não criou a
figura de investigador privado, eis que a atuação do detetive particular
deve ser extrapenal. Sua função é de coleta de informações de natureza
não criminal, limitando-se ao “esclarecimento de assuntos de interesse
privado do contratante” (artigo 2º), que constituem, ao menos em
princípio, irrelevantes penais (tais como infidelidade conjugal e
desaparecimento de pessoas ou animais).
Sua atividade é movida
pelo lucro (artigo 8º, VI), e não pelo interesse público. Por isso, foi
vetado o dispositivo (artigo 12, V) que o definia como “profissional
colaborador da Justiça e dos órgãos de polícia judiciária”, justamente
para evitar “confusão entre atividade pública e privada, com prejuízos a
ambas e ao interesse público”.
Com efeito, a investigação
criminal continua sendo atividade essencial e exclusiva de Estado, em
homenagem ao princípio da oficialidade, o que significa dizer que as
funções de apuração de infrações penais e de polícia judiciária são
exercidas pela polícia judiciária, com a presidência do procedimento
policial nas mãos do delegado de polícia (artigo 144 da CF e artigo 2º,
parágrafo 1º da Lei 12.830/13). Eventual contrato que ajustar a
investigação criminal como objeto é nulo em razão da expressa vedação
legal (artigo 2º).
E nem mesmo a reunião de dados de interesse
privado é exclusiva do detetive profissional, conforme consignam os
vetos aos artigos 1º e 3º, podendo perfeitamente ser exercida, por
exemplo, por um advogado.
A lei não empregou os termos investigação ou apuração, preferindo coleta de dados e informações
(artigos 2º, 9º e 10, III e V), deixando claro que não se confunde com a
investigação criminal ou tampouco com a atividade de inteligência.
Diferencia-se
da investigação criminal, pois o detetive profissional não possui poder
de polícia (não pode condicionar a liberdade e a propriedade dos
indivíduos mediante ações preventivas e repressivas). A coleta
particular de dados é desprovida dos atributos da discricionariedade,
autoexecutoriedade e coercibilidade, inexistindo supremacia do seu agir
em relação ao particular, ao contrário da atuação do membro da polícia
judiciária (artigo 144 da CF, artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13 e
artigo 6º do CPP).
Também se distingue da atividade de
inteligência, executada para obtenção de dados negados de difícil acesso
e/ou para neutralizar ações adversas marcadas por dificuldades e/ou
riscos iminentes. A compilação privada de elementos de convicção não
abrange o emprego de pessoal, material e técnicas especializadas
(Portaria 2/16 do Ministério da Justiça, que aprovou a Doutrina Nacional
de Inteligência de Segurança Pública).
Ou seja, o detetive está
longe de ser um policial privado ou um agente de inteligência
particular. Age como um despachante do cliente, arrecadando informações
de natureza não criminal, como pode ser feito por qualquer pessoa;
inclusive pelo contratante, que todavia preferiu a comodidade de pagar
para que alguém faça esse serviço em seu lugar. Isto é, cuida-se de um
contrato específico de prestação de serviços (sinalagmático, oneroso e intuitu personae).
A Lei 13.432/17 não conferiu ao prestador do serviço qualquer
prerrogativa ou vantagem na coleta de dados, pelo contrário, trouxe mais
exigências para a formalização do contrato e admitiu sua colaboração
somente dentro de rígidos limites.
Sua atuação é apenas
complementar. Não pode executar técnicas ordinárias de investigação
(tais quais oitivas e quebra de sigilo de dados) nem meios
extraordinários de obtenção de prova (como infiltração policial comum ou
virtual). Também não tem autorização para implementar ações de
inteligência de segurança pública (a exemplo de vigilância e
entrevista).
O detetive não pode participar diretamente de
diligência policial (artigo 10, IV). Além disso, os recursos de pesquisa
permitidos ao contratado são apenas aqueles disponíveis a qualquer
cidadão, que não podem atingir direitos fundamentais alheios (artigo 3º
do Decreto 50.532/61), sendo um de seus deveres justamente “respeitar o
direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas”
(artigo 11, II).
Outrossim, o detetive pode apenas pesquisar
informações em fontes abertas (tais quais redes sociais e sites de
órgãos públicos e privados), em locais públicos (como vias públicas e
áreas não restritas de estabelecimentos) e sem molestar envolvidos
(vítima, testemunha ou suspeito). Sua atuação se dá por meio da sugestão
de fontes de prova (a exemplo de indicação de testemunha, localização
de objeto e exibição de documento e apontamento de dados). A efetiva
obtenção do meio de prova (intimação e oitiva da testemunha, apreensão e
perícia na coisa e requisição de dados) será feita pela polícia
judiciária, sob o manto estatal.
Não vingou a redação original do
Projeto de Lei 1.211/11, que autorizava o detetive a realizar
investigação criminal, por meio de diligências como “relatórios de
investigações privadas, juntando descrições, croquis, gráficos,
fotografias, filmes e gravações magnéticas” referentes a “situação
hipotética envolvendo fato, criminoso ou não”. Nessa esteira, o
relatório a que faz menção o artigo 9º consiste em simples prestação de
contas ao contratante em relação ao serviço realizado, e não
documentação de diligência de investigação criminal, razão pela qual não
deve ser juntado no procedimento policial.
A limitação do
trabalho do detetive é essencial para garantir a higidez da persecução
penal e evitar a perda de uma chance probatória, além de preservar a
própria integridade física do detetive, que atua desarmado, sem
identidade profissional e movido por interesse financeiro.
A atuação do detetive fora dos limites enseja responsabilidade pessoal e ilicitude de provas.
O
detetive particular que exceder aos limites da chancela autorizadora do
delegado de polícia será responsabilizado por usurpação de função
pública (artigo 328 do CP), pois não abarcado pela excludente de
ilicitude de exercício regular de direito (artigo 23, III do CP),
admitindo-se cumulação de outras infrações penais como violação de
domicílio (artigo 150 do CP), lesão corporal (artigo 129 do CP),
interceptação telefônica clandestina (artigo 10 da Lei 9.296/96) ou
perturbação da tranquilidade (artigo 65 da LCP).
Ademais, se a
obtenção da informação pelo detetive ocorrer mediante violação de normas
legais ou constitucionais (realizando ato típico de investigação
criminal ou inteligência de segurança pública, em vez de se limitar a
pesquisar em locais públicos e fontes abertas), a prova será ilícita e
não poderá ser aproveitada (artigo 5º, LVI da CF e artigo 157 do CPP).
Excepcionalmente,
a ilicitude de prova clandestina será excluída por aplicação da máxima
da proporcionalidade, quando a colheita ilícita da prova se der para o
suspeito se defender e provar sua inocência (prova ilícita pro reo)[1], ou a vítima proteger seu bem jurídico ofendido ou colocado em risco (prova ilícita em legítima defesa)[2], podendo se valer de auxílio técnico do detetive[3]. Sublinhe-se: apenas como desvio da regra geral.
Como
regra, o detetive atua em situação penalmente atípica (a exemplo de
levantamento da vida pregressa de um postulante a cargo em empresa,
verificação da idoneidade de contratante ou constatação das companhias
de um filho). Entretanto, muitas situações (como o inadimplemento
contratual e o desaparecimento de pessoa) se encontram no limbo entre o
que é extrapenal e penal; ocasiões em que geralmente a polícia
judiciária possui dados precários que não se qualificam como indícios
mínimos aptos a ensejar a instauração de inquérito policial.
Nesse
contexto sobressai a verificação da procedência das informações (artigo
5º, parágrafo 3º do CPP). Possui a finalidade de comprovação da
verossimilhança da notitia criminis apresentada[4], evitando a instauração despropositada de inquérito policial se não houver evidência mínima da infração penal[5].
Permite a confirmação ou não da notícia de crime, de modo que a
instauração do inquérito policial ocorrerá apenas se diante de início de
justa causa (juízo de possibilidade), sob pena de trancamento[6].
Nessa
vereda, a colaboração do detetive, quando autorizada, possui como
principal utilidade servir de elemento de convicção que permita a
deflagração do inquérito policial, e não instruir um procedimento
policial já instaurado. Isso porque, se o inquérito policial está em
curso, é sinal de que o delegado já obteve os mínimos dados necessários e
a polícia judiciária já definiu caminho investigativo para extrair os
meios de prova, sendo o aprofundamento da investigação incompatível com a
possibilidade limitada de atuação do detetive. Apenas excepcionalmente
deve ser admitida a participação do contratado para indicar fontes de
prova ainda não conhecidas do Estado-Investigação.
Além do mais, a
atuação do advogado já é suficiente para tutelar os direitos do
investigado ou da vítima no inquérito policial. O trabalho que o
detetive particular poderia exercer será melhor realizado pelo
causídico, já que o rol de ferramentas do advogado em muito excede ao do
detetive particular, a exemplo da apresentação de razões e quesitos
(artigo 7º, XXI da Lei 8.906/94) e acesso às diligências concluídas do
inquérito policial (artigo7º, parágrafo 11 do Estatuto da OAB e Súmula
Vinculante 14 do STF), bem como requerimento de diligências (artigo 14
do CPP).
O detetive sequer pode requerer diligências em nome do
cliente (artigo 14 do CPP), pois celebra contrato de prestação de
serviços de coleta de dados (artigos 2º e 8º da Lei 13.432/17), e não de
mandato (artigo 653 do CC e artigo 1º, II do Estatuto da OAB) que o
habilitaria a pleitear perante a polícia judiciária.
Em epítome, a
partir da instauração do inquérito policial, desaparece a legitimidade
do detetive particular, ganhando relevo a atuação do advogado na defesa
dos interesses de seu cliente.
A colaboração do detetive
profissional com a investigação policial deve ser precedida de
autorização do cliente e concordância do delegado de polícia (artigo
5º).
A anuência do contratante deve ser expressa (por escrito) e
específica (documento à parte, não bastando cláusula genérica no
contrato). Isso porque o pacto negocial possui natureza não criminal e
fugiria ao espírito da lei uma autorização geral para colaboração
criminal que não passasse pelo crivo especial do cliente.
Intitulamos o documento que formaliza a colaboração de termo de colaboração particular circunstanciada. O nome do documento já permite a identificação das principais características:
a)
termo de colaboração: autorização escrita do delegado de polícia para
que o detetive auxilie a polícia judiciária provendo elementos mínimos
iniciais;
b) particular: o detetive
atua em caráter privado, preservando a oficialidade da investigação
criminal e a presidência do procedimento policial nas mãos do delegado
de polícia (sem qualquer protagonismo do prestador de serviço);
c)
circunstanciada: a atuação do detetive deve ser especificada do modo
mais detalhado possível. É restrita, não podendo o detetive participar
diretamente de diligência policial (artigo 10, IV) e só podendo realizar
pesquisas disponíveis a qualquer cidadão, sem imperatividade e sem
atingir direitos fundamentais alheios (artigo 11, II e artigo 3º do
Decreto 50.532/61).
Caso já disponha de
informações, o detetive deve imediatamente fornecê-las indicando as
fontes de prova (pessoas e coisas) de onde a polícia judiciária possa
extrair os elementos de convicção. Se não dispuser dos dados, a busca
pode ser feita em determinado lapso temporal fixado pelo delegado (que
não irá extrapolar o prazo estabelecido no contrato firmado pelo
detetive e seu cliente para atuação não criminal — artigo 8º, II).
Deve
ficar registrado no termo qual é o interesse do cliente para motivar a
proposição de colaboração na investigação policial, seja na condição de
vítima ou suspeito. Não pode o detetive colaborar com o Estado quando
não houver interesse particular a ser tutelado (como no caso de crimes
vagos).
Além disso, o detetive não pode
atuar em investigação policial relativa a crimes violentos, ocasião em
que deve não só se abster de colaborar com a polícia judiciária, mas
inclusive renunciar ao serviço contratado face ao risco à sua
integridade física ou moral (artigo 12, III).
São anexos
obrigatórios do termo: a) autorização expressa do contratante, que deve
ser feita por escrito; b) contrato de prestação de serviços do detetive
para seu cliente (artigo 8º), que precisa conter a qualificação
completa, natureza da coleta de dados não criminais (especificação do
problema, tal qual infidelidade conjugal), local de coleta de dados,
prazo, relação de documentos e dados fornecidos pelo contratante e
estipulação de honorários.
Não se exige concordância do Ministério Público nem chancela judicial.
A
ação penal do crime não afeta a possibilidade de colaboração. Em crimes
de ação penal pública condicionada ou privada, caso o contratante seja a
vítima, sua autorização já constituirá a condição de procedibilidade
para deflagração do procedimento policial.
A autoridade de polícia
judiciária pode exercer juízo de retratação e voltar atrás em seu ato
discricionário para determinar a qualquer tempo a cessação da
colaboração em curso (artigo 5º, parágrafo único da Lei 13.432/17); o
contratado também deve interromper o auxílio em caso de extinção do
contrato (pressuposto da colaboração) em razão da rescisão por
inadimplemento ou força maior (artigo 607 do CC).
A participação
do detetive particular no curso da investigação policial é uma
discricionariedade do delegado de polícia, e não uma prerrogativa
profissional. Registre-se ainda que não há qualquer menção sobre a
possibilidade de tal profissional auxiliar no curso do processo
criminal.
É vedado ao detetive divulgar os meios e os resultados
da coleta de dados e informações a que tiver acesso no exercício da
profissão, salvo em defesa própria (artigo 10, III).
E é seu dever
profissional preservar o sigilo das fontes de informação (artigo 11,
I). Obviamente esse segredo não pode impedir o fornecimento de
documentos e indicação de pessoas e coisas pelo detetive ao delegado, se
autorizado a colaborar com a investigação criminal.
É crível
concluir que a lei não promoveu alargamento na utilização da
investigação criminal privada (e sua espécie investigação criminal
defensiva)[7],
ao contrário do que ocorreria com aprovação do novo Código de Processo
Penal (Projeto de Lei 156/09, artigo 13), que faculta ao investigado
entrevistar pessoas. Na atual sistemática, a vítima ou suspeito não pode
produzir a prova com imperatividade.
Para que a informação obtida
pelo particular se revista de idoneidade a embasar a persecução penal,
já que não possui fé pública, deve ser submetida à supervisão estatal,
sem a qual não há como assegurar a confiabilidade dos relatos[8].
Incide a chamada teoria da canalização, segundo a qual o elemento de
convicção, para ser considerado válido e aproveitável na persecução
criminal, deve obter a chancela estatal, dando verniz de oficialidade.
Além disso, a ação instrutória do particular não pode obstruir a
investigação policial por meio de inovação artificiosa do estado de
lugar, coisa ou pessoa, sob pena de crime (artigo 347 do CP).
[1] STF, RE 402.717, rel. min Cezar Peluso, DJ 2/12/2008.
[2] STJ, REsp 1.026.605, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJ 13/5/2014.
[3] Para gravação de conversa telefônica ou ambiental, por exemplo.
[4] STJ, RHC 14.434, rel. min. Jorge Scartezzini, DJ 1/4/2004.
[5] COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática policial sistematizada. Niterói: Impetus, 2016.
Fonte: Consultor Jurídico
[6] STF, HC 132.170 AgR, rel. min Teori Zavascki, DJ 16/2/2016.
[7] MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[8] STF, AP 912, rel. min. Luiz Fux, DJ 14/2/2017.
[2] STJ, REsp 1.026.605, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, DJ 13/5/2014.
[3] Para gravação de conversa telefônica ou ambiental, por exemplo.
[4] STJ, RHC 14.434, rel. min. Jorge Scartezzini, DJ 1/4/2004.
[5] COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática policial sistematizada. Niterói: Impetus, 2016.
Fonte: Consultor Jurídico
[6] STF, HC 132.170 AgR, rel. min Teori Zavascki, DJ 16/2/2016.
[7] MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
[8] STF, AP 912, rel. min. Luiz Fux, DJ 14/2/2017.
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Rogério Rocha
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Lei que regulamenta profissão de detetive particular (N.º 13.342/17)
LEI Nº 13.432, DE 11 DE ABRIL DE 2017.
Mensagem de veto |
Dispõe sobre o exercício da profissão de detetive particular.
|
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se detetive particular o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante.
§ 1º Consideram-se sinônimas, para efeito desta Lei, as expressões “detetive particular”, “detetive profissional” e outras que tenham ou venham a ter o mesmo objeto.
§ 2º (VETADO).
Art. 5º O detetive particular pode colaborar com investigação policial em curso, desde que expressamente autorizado pelo contratante.
Parágrafo único. O aceite da colaboração ficará a critério do delegado de polícia, que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo.
Art. 6º Em razão da natureza reservada de suas atividades, o detetive particular, no desempenho da profissão, deve agir com técnica, legalidade, honestidade, discrição, zelo e apreço pela verdade.
Art. 7º O detetive particular é obrigado a registrar em instrumento escrito a prestação de seus serviços.
I - qualificação completa das partes contratantes;
II - prazo de vigência;
III - natureza do serviço;
IV - relação de documentos e dados fornecidos pelo contratante;
V - local em que será prestado o serviço;
VI - estipulação dos honorários e sua forma de pagamento.
Parágrafo único. É facultada às partes a estipulação de seguro de vida em favor do detetive particular, que indicará os beneficiários, quando a atividade envolver risco de morte.
Art. 9º Ao final do prazo pactuado para a execução dos serviços profissionais, o detetive particular entregará ao contratante ou a seu representante legal, mediante recibo, relatório circunstanciado sobre os dados e informações coletados, que conterá:
I - os procedimentos técnicos adotados;
II - a conclusão em face do resultado dos trabalhos executados e, se for o caso, a indicação das providências legais a adotar;
III - data, identificação completa do detetive particular e sua assinatura.
I - aceitar ou captar serviço que configure ou contribua para a prática de infração penal ou tenha caráter discriminatório;
II - aceitar contrato de quem já tenha detetive particular constituído, salvo:
a) com autorização prévia daquele com o qual irá colaborar ou a quem substituirá;
b) na hipótese de dissídio entre o contratante e o profissional precedente ou de omissão deste que possa causar dano ao contratante;
III - divulgar os meios e os resultados da coleta de dados e informações a que tiver acesso no exercício da profissão, salvo em defesa própria;
IV - participar diretamente de diligências policiais;
V - utilizar, em demanda contra o contratante, os dados, documentos e informações coletados na execução do contrato.
I - preservar o sigilo das fontes de informação;
II - respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas;
III - exercer a profissão com zelo e probidade;
IV - defender, com isenção, os direitos e as prerrogativas profissionais, zelando pela própria reputação e a da classe;
V - zelar pela conservação e proteção de documentos, objetos, dados ou informações que lhe forem confiados pelo cliente;
VI - restituir, íntegro, ao cliente, findo o contrato ou a pedido, documento ou objeto que lhe tenha sido confiado;
VII - prestar contas ao cliente.
I - exercer a profissão em todo o território nacional na defesa dos direitos ou interesses que lhe forem confiados, na forma desta Lei;
II - recusar serviço que considere imoral, discriminatório ou ilícito;
III - renunciar ao serviço contratado, caso gere risco à sua integridade física ou moral;
IV - compensar o montante dos honorários recebidos ou recebê-lo proporcionalmente, de acordo com o período trabalhado, conforme pactuado;
V - (VETADO);
VI - reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento;
VII - ser publicamente desagravado, quando injustamente ofendido no exercício da profissão.
Brasília, 11 de abril de 2017; 196o da Independência e 129o da República.
MICHEL TEMER
Osmar Serraglio
Henrique Meirelles
Ronaldo Nogueira de Oliveira
Eliseu Padilha
Grace Maria Fernandes Mendonça
Este texto não substitui o publicado no DOU de 12.4.2017
Fonte: Site do Planalto
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Rogério Rocha
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A presidência do inquérito policial e a requisição de diligências
Márcio Adriano Anselmo*
A presidência do inquérito policial está centralizada na figura do delegado de polícia, cujo modelo se consolidou com a Constituição Federal de 1988, fortalecido pela Lei 12.830/13. Com base nesse formato, busca-se uma dinâmica investigatória que visa sopesar direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sem que este novo delineamento acarrete prejuízos à ordem pública, à eficácia da lei penal ou aos interesses da coletividade.
Portanto, ao final de todo o procedimento investigatório, o quadro fático desenhado pelo delegado de polícia deverá se aproximar dos acontecimentos reais, propiciando a responsabilização criminal de uns e a ratificação da inocência de outros, como forma de aplicação dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, impedindo acusações injustas, arbitrárias e desprovidas de necessidade. A investigação criminal atua, portanto, como o primeiro filtro a evitar um processo penal desnecessário.
Nesse cenário, cabe inicialmente estabelecer o papel do órgão ministerial no que diz respeito à sua atuação em relação às investigações conduzidas pelo delegado de polícia, cujo artigo 129 da Constituição Federal aponta como função “VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.
A Lei Complementar 75/93, ato normativo primário que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, aponta, no artigo 38, entre suas funções institucionais, “requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, podendo acompanhá-los e apresentar provas”.
Percebe-se que o órgão ministerial, quanto a sua relação com inquérito policial, não tem disponíveis poderes ou funções que o autorizem a atuar como ator principal no inquérito policial. Cabe-lhe, nos termos legais, funções anômalas, estranhas à capacidade investigatória do delegado de polícia. Não se descuida aqui da decisão no Recurso Extraordinário 593.727 MG, que atribui ao Ministério Público poderes investigatórios, mas se busca tratar do papel do delegado de polícia na condução da investigação criminal consubstanciada no inquérito policial.
A requisição de instauração de inquérito policial, o acompanhamento de sua tramitação, o direito de apresentação de provas e, por fim, a requisição de diligências investigatórias são poderes decorrentes da função fiscalizatória que a lei e o texto constitucional atribuem ao parquet.
A Lei 12.830/13 buscou sedimentar o papel do delegado de polícia na condução do inquérito policial, conferindo-lhe as características de discricionariedade, autonomia e exclusividade para a condução da investigação criminal.
Quanto à discricionariedade, tal característica da atuação do delegado de polícia é evidenciada desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, por meio da redação do artigo 6º, quando coloca, à disposição da autoridade policial, sem caráter de exaustividade ou vinculação, inúmeras diligências investigatórias que, conforme juízo de oportunidade e conveniência, poderão ser adotadas para alcance da apuração de autoria e materialidade. A Lei 12.830/13, por sua vez, dispôs que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.
O atributo da autonomia da autoridade policial está instituído no artigo 2º, parágrafo 1º da referida lei, quando é colocada como incumbência do delegado de polícia a condução da investigação criminal. O termo “condução” pressupõe a direção, o exercício de toda a atividade investigatória desenvolvida no decurso do inquérito policial, o que implica a inadmissibilidade de interferências internas, dentro do próprio órgão da Polícia Judiciária, ou externas, provenientes de demais participantes da persecução penal, impedindo-os de se imiscuir na esfera decisória do delegado de polícia.
Por fim, no que toca ao atributo da exclusividade, observa-se que a lei atribui ao delegado de polícia a privatividade para o indiciamento por meio da Lei 12.830/13. Ora, se a análise da materialidade e indícios de autoria é privativa do delegado de polícia, somente a este cabe, ao término da investigação, apontar a ocorrência de infração penal e sua eventual autoria.
A condução do inquérito policial, conferido com exclusividade, autonomia e discricionariedade, impede que outros órgãos ou entes se manifestem na fase investigatória da persecução penal de modo a se imiscuir no juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia.
O órgão ministerial, por sua vez, deve ser incumbido da função fiscalizatória sobre a investigação criminal, exercendo estritamente um controle de legalidade em todo o decurso da fase apuratória. Esse papel apresenta-se fundamental, sobretudo a fim de evitar-se o nefasto desvirtuamento da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Nesse cenário, assume papel de suma importância o controle externo da atividade policial exercido pelo parquet.
Dessa forma, a interação entre o órgão ministerial, enquanto titular da ação penal e custos legis, e o delegado de polícia, enquanto presidente do inquérito policial, deve observar os contornos de seus papéis em três momentos distintos da investigação criminal:
a) fase anterior à instauração da investigação;
b) fase de tramitação do inquérito policial (da instauração até o relatório);
c) fase posterior à finalização das apurações.
Na fase anterior ao início da investigação criminal, situada entre a prática delitiva e a instauração do inquérito policial, o órgão ministerial desempenha sua função fiscalizatória por meio da requisição de instauração do inquérito policial. Em virtude do princípio da obrigatoriedade, inexiste juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia para decidir se instaura ou não o inquérito policial, salvo se a requisição é manifestamente ilegal.
A requisição da instauração do inquérito policial, como dito, apresenta caráter vinculado, devendo ser atendida pela autoridade policial. Apesar disso, o conteúdo da portaria, peça que formaliza o início da investigação criminal, é campo discricionário e exclusivo do delegado de polícia, a quem cabe definir a capitulação legal e as diligências investigatórias iniciais. É vedado ao órgão ministerial se imiscuir neste campo sob pena de assumir, por via oblíquas, a presidência/condução da investigação criminal, o que encontra expressa vedação na Lei 12.830/13 e na jurisprudência dos tribunais superiores. Eventuais diligências referidas na requisição de instauração, em que pese posição contraria de Aury Lopes Junior e Ricardo Jacobsen Gloeckner[1], devem ser entendidas como sugestões de diligências, sempre submetidas ao juízo do presidente da investigação, a quem compete analisar sua conveniência e oportunidade.
No curso do inquérito policial, compreendido entre a portaria de instauração e a confecção do relatório final, cabe unicamente ao delegado de polícia decidir sobre a diligência investigatória empregada, momento adequado para execução, técnicas de inteligência necessárias e teses jurídicas que se mostrarão úteis para a apuração dos fatos. Essas variáveis localizam-se na órbita do juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia, campo de mérito administrativo. Cabe destacar que o parquet no curso do inquérito policial, citando novamente Aury e Ricardo Gloeckner[2], tem presença “secundária, acessória e contingente, pois o órgão encarregado de dirigir o inquérito policial é a polícia judiciária”. Caso pretenda dirigir a investigação criminal, deve o órgão ministerial fazê-lo mediante seus procedimentos próprios de investigação (já considerados válidos pelo Supremo Tribunal Federal), e não pelo inquérito policial.
Ademais, as diligências requeridas pelo parquet no curso da investigação devem ser compreendidas à luz do artigo 14 do CPP, que estabelece que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, sob pena de clara afronta ao princípio de paridade de armas, que deve ser aplicado também à fase do inquérito policial.
A requisição de diligências investigatórias pelo órgão geraria, de forma transversa e arbitrária, uma usurpação do papel de condutor da investigação. Em regra, a execução de diligências investigatórias é feita pelo delegado de polícia, seja diretamente ou por meio de seus agentes, independente de manifestação ministerial e de prévia autorização judicial, utilizando-se para isso do poder requisitório, por meio do qual são trazidas aos autos o resultado de perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos, conforme prescreve o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13.
Em caráter excepcional, no caso de medidas invasivas, a execução de diligências investigatórias pelo delegado de polícia submetidas à prévia autorização judicial, o Ministério Público fiscaliza a regularidade da medida, exarando, para isso, parecer de legalidade da medida.
Por fim, um terceiro momento do inquérito policial se dá com o oferecimento do relatório, que marca o encerramento da atuação da polícia judiciária, uma vez que a autoridade policial reconhece que foram exauridas as diligências investigatórias disponíveis e adotadas as teses jurídicas mais adequadas para a busca do esclarecimento dos fatos. Abre-se, a partir de então, espaço para a apreciação do resultado da investigação pelo órgão ministerial.
A partir da apresentação do relatório, o papel de protagonista da persecução penal é transferido do delegado de polícia, presidente da investigação criminal, para o Ministério Público, titular da ação penal, a quem cabe promover a processualização do feito por meio da apresentação da peça acusatória.
Aqui reside o instante em que se mostra cabível a requisição das diligências investigatórias em face do delegado, enquanto presidente da investigação, sem que ocorra disfunção ou desvirtuamento dos órgãos da persecução penal. Não obstante tal autorização, a requisição de diligências investigatórias deve obedecer aos limites legais e constitucionais impostos ao exercício do poder requisitório ministerial, sob pena de ser negada, de forma legítima, pela autoridade policial o cumprimento das diligências.
Estabelecido o momento de seu cabimento no curso do inquérito policial, é necessário definir os limites do poder requisitório a fim de se evitar abusos ou ilegalidades. O artigo 16 do CPP traz uma primeira limitação, tornando a requisição cabível somente quando a diligência for imprescindível para o oferecimento da denúncia:
Sendo assim, nota-se que a diligência deve ter por finalidade a construção da materialidade e dos indícios de autoria relacionados aos fatos sob apuração, já que são esses os requisitos para o oferecimento da denúncia, não sendo cabível o uso da requisição para obtenção de informações destoantes do contexto investigativo ou para instruir indiretamente procedimentos de natureza cível ou administrativa.
Por conseguinte, não é pertinente a requisição para que a autoridade policial expeça ofícios a outros órgãos nem determine a execução de outros atos de natureza cartorária ou sem conexão com a atividade-fim da Polícia Judiciária, sob o risco de tornar ilegítimo o exercício do seu poder requisitório. Observa-se, portanto, que a diligência deve ser imprescindível ao oferecimento da denúncia.
O artigo 47 do CPP impede ainda que parquet faça requisições à autoridade policial quando as informações complementares estejam na posse de outra instituição, vedando que se utilize da intermediação de outra instituição para a obtenção dos elementos de convicção que julgar necessários, sob pena de se causar ônus desnecessário ao órgão de Polícia Judiciária:
Artigo 47. Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.
Outro ponto que carece de análise aqui é a questão da cota ministerial para fins de indiciamento, cujo entendimento pacífico já se demonstra no sentido do não cabimento, uma vez que se trata de ato privativo da autoridade policial, que, da mesma forma, não vincula ao órgão ministerial para o oferecimento da denúncia.
Em síntese conclusiva, em conformidade com o quadro constitucional e legal existente, nota-se que o poder de requisição de diligências do parquet no curso do inquérito policial somente pode ser exercido nos dois momentos bem definidos: anteriormente à instauração do inquérito policial, sem qualquer interferência em outros aspectos discricionários do delegado de polícia; no segundo momento, entre a confecção do relatório conclusivo e a propositura da ação penal. Contudo, as requisições de diligências após essa fase devem apresentar as seguintes características para serem reputadas legítimas:
I) natureza investigatória criminal: consiste em diligências que devam ter a necessária intermediação da Polícia Judiciária, a quem cabe a exclusividade de atuação investigatória no inquérito policial, excetuando-se, assim, diligências que tenham por objetivo a instrução de procedimentos civis;
II) imprescindibilidade para o oferecimento da denúncia: consiste na diligência que tenha como escopo a identificação da materialidade e autoria delitiva dentro do contexto investigativo;
III) domínio da polícia judiciária: consiste na diligência que tenha como destinatário final a Polícia Judiciária, devendo a requisição, caso assim não ocorra, ser encaminhada diretamente ao órgão que possua a informação, documento ou qualquer outro elemento de informação que seja pertinente.
IV) fundamentação: as requisições de diligências devem ser fundamentadas e não meramente pontuadas no poder requisitório genérico previsto no artigo 129 da Constituição Federal. A fundamentação é elemento essencial a fim de que se possa ser realizado o controle de legalidade do ato. Assim, caso o delegado de polícia entenda incabível a diligência requisitada, por ausência de fundamento legal, deve submeter o feito ao controle judicial de legalidade.
O panorama contemporâneo da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, delineado pelo texto constitucional e pela Lei 12830/13, confere clara função investigatória à autoridade policial, com evidentes marcas de exclusividade, autonomia e discricionariedade. Por outro lado, é dada ao órgão ministerial uma função fiscalizadora, de notável importância, colocando-o como órgão de controle de legalidade da Polícia Judiciária, seja por meio do seu poder requisitório, seja por meio de manifestações posteriores às representações do delegado de polícia, emanados por meio de parecer.
Essa divisão de papéis, pois, é imprescindível para o desempenho de uma persecução penal em completa consonância com os mais basilares preceitos do Estado Democrático de Direito e garantias do indivíduo sujeito à investigação por meio do inquérito policial.
Portanto, ao final de todo o procedimento investigatório, o quadro fático desenhado pelo delegado de polícia deverá se aproximar dos acontecimentos reais, propiciando a responsabilização criminal de uns e a ratificação da inocência de outros, como forma de aplicação dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, impedindo acusações injustas, arbitrárias e desprovidas de necessidade. A investigação criminal atua, portanto, como o primeiro filtro a evitar um processo penal desnecessário.
Nesse cenário, cabe inicialmente estabelecer o papel do órgão ministerial no que diz respeito à sua atuação em relação às investigações conduzidas pelo delegado de polícia, cujo artigo 129 da Constituição Federal aponta como função “VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.
A Lei Complementar 75/93, ato normativo primário que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, aponta, no artigo 38, entre suas funções institucionais, “requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, podendo acompanhá-los e apresentar provas”.
Percebe-se que o órgão ministerial, quanto a sua relação com inquérito policial, não tem disponíveis poderes ou funções que o autorizem a atuar como ator principal no inquérito policial. Cabe-lhe, nos termos legais, funções anômalas, estranhas à capacidade investigatória do delegado de polícia. Não se descuida aqui da decisão no Recurso Extraordinário 593.727 MG, que atribui ao Ministério Público poderes investigatórios, mas se busca tratar do papel do delegado de polícia na condução da investigação criminal consubstanciada no inquérito policial.
A requisição de instauração de inquérito policial, o acompanhamento de sua tramitação, o direito de apresentação de provas e, por fim, a requisição de diligências investigatórias são poderes decorrentes da função fiscalizatória que a lei e o texto constitucional atribuem ao parquet.
A Lei 12.830/13 buscou sedimentar o papel do delegado de polícia na condução do inquérito policial, conferindo-lhe as características de discricionariedade, autonomia e exclusividade para a condução da investigação criminal.
Quanto à discricionariedade, tal característica da atuação do delegado de polícia é evidenciada desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, por meio da redação do artigo 6º, quando coloca, à disposição da autoridade policial, sem caráter de exaustividade ou vinculação, inúmeras diligências investigatórias que, conforme juízo de oportunidade e conveniência, poderão ser adotadas para alcance da apuração de autoria e materialidade. A Lei 12.830/13, por sua vez, dispôs que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.
O atributo da autonomia da autoridade policial está instituído no artigo 2º, parágrafo 1º da referida lei, quando é colocada como incumbência do delegado de polícia a condução da investigação criminal. O termo “condução” pressupõe a direção, o exercício de toda a atividade investigatória desenvolvida no decurso do inquérito policial, o que implica a inadmissibilidade de interferências internas, dentro do próprio órgão da Polícia Judiciária, ou externas, provenientes de demais participantes da persecução penal, impedindo-os de se imiscuir na esfera decisória do delegado de polícia.
Por fim, no que toca ao atributo da exclusividade, observa-se que a lei atribui ao delegado de polícia a privatividade para o indiciamento por meio da Lei 12.830/13. Ora, se a análise da materialidade e indícios de autoria é privativa do delegado de polícia, somente a este cabe, ao término da investigação, apontar a ocorrência de infração penal e sua eventual autoria.
A condução do inquérito policial, conferido com exclusividade, autonomia e discricionariedade, impede que outros órgãos ou entes se manifestem na fase investigatória da persecução penal de modo a se imiscuir no juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia.
O órgão ministerial, por sua vez, deve ser incumbido da função fiscalizatória sobre a investigação criminal, exercendo estritamente um controle de legalidade em todo o decurso da fase apuratória. Esse papel apresenta-se fundamental, sobretudo a fim de evitar-se o nefasto desvirtuamento da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Nesse cenário, assume papel de suma importância o controle externo da atividade policial exercido pelo parquet.
Dessa forma, a interação entre o órgão ministerial, enquanto titular da ação penal e custos legis, e o delegado de polícia, enquanto presidente do inquérito policial, deve observar os contornos de seus papéis em três momentos distintos da investigação criminal:
a) fase anterior à instauração da investigação;
b) fase de tramitação do inquérito policial (da instauração até o relatório);
c) fase posterior à finalização das apurações.
Na fase anterior ao início da investigação criminal, situada entre a prática delitiva e a instauração do inquérito policial, o órgão ministerial desempenha sua função fiscalizatória por meio da requisição de instauração do inquérito policial. Em virtude do princípio da obrigatoriedade, inexiste juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia para decidir se instaura ou não o inquérito policial, salvo se a requisição é manifestamente ilegal.
A requisição da instauração do inquérito policial, como dito, apresenta caráter vinculado, devendo ser atendida pela autoridade policial. Apesar disso, o conteúdo da portaria, peça que formaliza o início da investigação criminal, é campo discricionário e exclusivo do delegado de polícia, a quem cabe definir a capitulação legal e as diligências investigatórias iniciais. É vedado ao órgão ministerial se imiscuir neste campo sob pena de assumir, por via oblíquas, a presidência/condução da investigação criminal, o que encontra expressa vedação na Lei 12.830/13 e na jurisprudência dos tribunais superiores. Eventuais diligências referidas na requisição de instauração, em que pese posição contraria de Aury Lopes Junior e Ricardo Jacobsen Gloeckner[1], devem ser entendidas como sugestões de diligências, sempre submetidas ao juízo do presidente da investigação, a quem compete analisar sua conveniência e oportunidade.
No curso do inquérito policial, compreendido entre a portaria de instauração e a confecção do relatório final, cabe unicamente ao delegado de polícia decidir sobre a diligência investigatória empregada, momento adequado para execução, técnicas de inteligência necessárias e teses jurídicas que se mostrarão úteis para a apuração dos fatos. Essas variáveis localizam-se na órbita do juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia, campo de mérito administrativo. Cabe destacar que o parquet no curso do inquérito policial, citando novamente Aury e Ricardo Gloeckner[2], tem presença “secundária, acessória e contingente, pois o órgão encarregado de dirigir o inquérito policial é a polícia judiciária”. Caso pretenda dirigir a investigação criminal, deve o órgão ministerial fazê-lo mediante seus procedimentos próprios de investigação (já considerados válidos pelo Supremo Tribunal Federal), e não pelo inquérito policial.
Ademais, as diligências requeridas pelo parquet no curso da investigação devem ser compreendidas à luz do artigo 14 do CPP, que estabelece que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, sob pena de clara afronta ao princípio de paridade de armas, que deve ser aplicado também à fase do inquérito policial.
A requisição de diligências investigatórias pelo órgão geraria, de forma transversa e arbitrária, uma usurpação do papel de condutor da investigação. Em regra, a execução de diligências investigatórias é feita pelo delegado de polícia, seja diretamente ou por meio de seus agentes, independente de manifestação ministerial e de prévia autorização judicial, utilizando-se para isso do poder requisitório, por meio do qual são trazidas aos autos o resultado de perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos, conforme prescreve o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13.
Em caráter excepcional, no caso de medidas invasivas, a execução de diligências investigatórias pelo delegado de polícia submetidas à prévia autorização judicial, o Ministério Público fiscaliza a regularidade da medida, exarando, para isso, parecer de legalidade da medida.
Por fim, um terceiro momento do inquérito policial se dá com o oferecimento do relatório, que marca o encerramento da atuação da polícia judiciária, uma vez que a autoridade policial reconhece que foram exauridas as diligências investigatórias disponíveis e adotadas as teses jurídicas mais adequadas para a busca do esclarecimento dos fatos. Abre-se, a partir de então, espaço para a apreciação do resultado da investigação pelo órgão ministerial.
A partir da apresentação do relatório, o papel de protagonista da persecução penal é transferido do delegado de polícia, presidente da investigação criminal, para o Ministério Público, titular da ação penal, a quem cabe promover a processualização do feito por meio da apresentação da peça acusatória.
Aqui reside o instante em que se mostra cabível a requisição das diligências investigatórias em face do delegado, enquanto presidente da investigação, sem que ocorra disfunção ou desvirtuamento dos órgãos da persecução penal. Não obstante tal autorização, a requisição de diligências investigatórias deve obedecer aos limites legais e constitucionais impostos ao exercício do poder requisitório ministerial, sob pena de ser negada, de forma legítima, pela autoridade policial o cumprimento das diligências.
Estabelecido o momento de seu cabimento no curso do inquérito policial, é necessário definir os limites do poder requisitório a fim de se evitar abusos ou ilegalidades. O artigo 16 do CPP traz uma primeira limitação, tornando a requisição cabível somente quando a diligência for imprescindível para o oferecimento da denúncia:
Sendo assim, nota-se que a diligência deve ter por finalidade a construção da materialidade e dos indícios de autoria relacionados aos fatos sob apuração, já que são esses os requisitos para o oferecimento da denúncia, não sendo cabível o uso da requisição para obtenção de informações destoantes do contexto investigativo ou para instruir indiretamente procedimentos de natureza cível ou administrativa.
Por conseguinte, não é pertinente a requisição para que a autoridade policial expeça ofícios a outros órgãos nem determine a execução de outros atos de natureza cartorária ou sem conexão com a atividade-fim da Polícia Judiciária, sob o risco de tornar ilegítimo o exercício do seu poder requisitório. Observa-se, portanto, que a diligência deve ser imprescindível ao oferecimento da denúncia.
O artigo 47 do CPP impede ainda que parquet faça requisições à autoridade policial quando as informações complementares estejam na posse de outra instituição, vedando que se utilize da intermediação de outra instituição para a obtenção dos elementos de convicção que julgar necessários, sob pena de se causar ônus desnecessário ao órgão de Polícia Judiciária:
Artigo 47. Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.
Outro ponto que carece de análise aqui é a questão da cota ministerial para fins de indiciamento, cujo entendimento pacífico já se demonstra no sentido do não cabimento, uma vez que se trata de ato privativo da autoridade policial, que, da mesma forma, não vincula ao órgão ministerial para o oferecimento da denúncia.
Em síntese conclusiva, em conformidade com o quadro constitucional e legal existente, nota-se que o poder de requisição de diligências do parquet no curso do inquérito policial somente pode ser exercido nos dois momentos bem definidos: anteriormente à instauração do inquérito policial, sem qualquer interferência em outros aspectos discricionários do delegado de polícia; no segundo momento, entre a confecção do relatório conclusivo e a propositura da ação penal. Contudo, as requisições de diligências após essa fase devem apresentar as seguintes características para serem reputadas legítimas:
I) natureza investigatória criminal: consiste em diligências que devam ter a necessária intermediação da Polícia Judiciária, a quem cabe a exclusividade de atuação investigatória no inquérito policial, excetuando-se, assim, diligências que tenham por objetivo a instrução de procedimentos civis;
II) imprescindibilidade para o oferecimento da denúncia: consiste na diligência que tenha como escopo a identificação da materialidade e autoria delitiva dentro do contexto investigativo;
III) domínio da polícia judiciária: consiste na diligência que tenha como destinatário final a Polícia Judiciária, devendo a requisição, caso assim não ocorra, ser encaminhada diretamente ao órgão que possua a informação, documento ou qualquer outro elemento de informação que seja pertinente.
IV) fundamentação: as requisições de diligências devem ser fundamentadas e não meramente pontuadas no poder requisitório genérico previsto no artigo 129 da Constituição Federal. A fundamentação é elemento essencial a fim de que se possa ser realizado o controle de legalidade do ato. Assim, caso o delegado de polícia entenda incabível a diligência requisitada, por ausência de fundamento legal, deve submeter o feito ao controle judicial de legalidade.
O panorama contemporâneo da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, delineado pelo texto constitucional e pela Lei 12830/13, confere clara função investigatória à autoridade policial, com evidentes marcas de exclusividade, autonomia e discricionariedade. Por outro lado, é dada ao órgão ministerial uma função fiscalizadora, de notável importância, colocando-o como órgão de controle de legalidade da Polícia Judiciária, seja por meio do seu poder requisitório, seja por meio de manifestações posteriores às representações do delegado de polícia, emanados por meio de parecer.
Essa divisão de papéis, pois, é imprescindível para o desempenho de uma persecução penal em completa consonância com os mais basilares preceitos do Estado Democrático de Direito e garantias do indivíduo sujeito à investigação por meio do inquérito policial.
[1] Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 276-277.
[2] Op. Cit., p. 250.
*Márcio Adriano Anselmo é delegado da Polícia Federal, doutor pela Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.
Fonte: Site da Escola Superior da Polícia Civil do Paraná http://www.escolasuperiorpoliciacivil.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=2292&tit=A-presidencia-do-inquerito-policial-e-a-requisicao-de-diligencias
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Rogério Rocha
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