Já no ano de 1863, meados do século XIX, o jurista e político brasileiro, demonstrando estar muito à frente de seu tempo, já mencionava a importância da introdução da ideia de dignidade humana nas leis e no ordenamento jurídico brasileiro. Realidade esta muito comum hoje em dia, elevada que foi tal ideia à categoria de princípio fundamental (dignidade da pessoa humana), tendo sido difundida nas democracias constitucionais do ocidente, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial como reação necessária aos horrores do holocausto. Disse ele em sua obra "O Abolicionismo":
"Já existe, felizmente, em nosso país, uma
consciência nacional - em formação, é certo - que vai introduzindo o elemento
da dignidade humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apesar de
hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronte. Essa
consciência, que está temperando a nossa alma, e há de por fim humanizá-la,
resulta da mistura de duas correntes diversas: o arrependimento dos
descendentes de senhores, e a afinidade de sofrimento dos herdeiros de
escravos. "
Sobre as primeiras tentativas abolicionistas no Brasil:
"A primeira oposição nacional à escravidão foi
promovida tão somente contra o tráfico. Pretendia-se suprimir a escravidão
lentamente, proibindo a importação de novos escravos. À vista da espantosa
mortalidade dessa classe, dizia-se que a escravatura, um vez extinto o viveiro
inesgotável da África, iria sendo progressivamente diminuída pela morte, apesar
dos nascimentos."
Sobre as fases do movimento:
"Em 1850, queria-se suprimir a escravidão,
acabando com o tráfico; em 1871, libertando-se desde o berço, mas de fato
depois dos vinte e um anos, os filhos dos escravos ainda por nascer. Hoje
quer-se suprimi-la, emancipando os escravos em massa e resgatando os ingênuos da
servidão da lei de 28 de setembro. É este último movimento que se chama
abolicionismo, e só este resolve o verdadeiro problema dos escravos, que é a
sua própria liberdade. A opinião, em 1845, julgava legítima e honesta a compra
de africanos, transportados traiçoeiramente da África e introduzidos por
contrabando no Brasil. A opinião, em 1875, condenava as transações dos
traficantes, mas julgava legítimas e honestas a matrícula depois de 30 anos de
cativeiro ilegal das vítimas do tráfico. O abolicionismo é a opinião que deve
substituir, por sua vez, esta última, e para a qual todas as transações de
domínio sobre entes humanos são crimes que só diferem no grau de crueldade."
Novamente o olhar em perspectiva do grande diplomata faz dele quase um profeta da história do porvir nacional. Senão, vejamos o que novamente alertou:
"Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que
representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar,
por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos
anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo
natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante
vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a
nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada
um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra
desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos."
E arremata, ainda nesse mesmo sentido:
"O nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa
organização toda, física, intelectual e moral, acha-se terrivelmente afetada
pelas influências com que a escravidão passou trezentos anos a permear a
sociedade brasileira. A empresa de anular essas tendências é superior, por
certo, aos esforços de uma só geração, mas, enquanto essa obra não estiver
concluída, o abolicionismo terá sempre razão de ser."
"No Brasil, a questão não é, como nas colônias
europeias, um movimento de generosidade em favor de uma classe de homens
vítimas de uma opressão injusta a grande distância das nossas praias. A raça
negra não é, tampouco, para nós, uma raça inferior, alheia à comunhão, ou
isolada desta, e cujo bem estar nos afete como o de qualquer tribo indígena
maltratada pelos invasores europeus. Para nós, a raça negra é um elemento de
considerável importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações
orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo brasileiro. Por outro
lado, a emancipação não significa tão somente a termo da injustiça de que o
escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários,
e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor."
"Não me era necessário provar a ilegalidade de um
regime que é contrário aos princípios fundamentais do direito moderno e que
viola a noção mesma do que é o homem perante a lei internacional. Nenhum
Estado deve ter a liberdade de pôr-se assim fora da comunhão civilizada do
mundo, e não tarda, com efeito, o dia em que a escravidão seja considerada
legalmente como já o é moralmente, um atentado contra a humanidade toda. As
leis de cada país são remissivas a certos princípios fundamentais, base das
sociedades civilizadas, e cuja violação em uma importa uma ofensa a todas as
outras."
Fonte: NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Londres, 1863.