O ÚLTIMO BEIJO
Por
Rogério Rocha.
Sangrava
muito. O tapete do quarto, ao pé da cama, recebia seu sangue como
água. Ajoelhado ao chão, Mário esperava o fim.
Seu
pulso esquerdo, cortado pela faca que agora escapava de sua mão
direita, abria-se na vermelhidão da carne.
A
visão fatal lhe avançava aos olhos. Escurecendo o dia, estava enfim
entregue à pura sorte. Seu intento extremo conhecia o desfecho
almejado. Sua curta existência fechava as cortinas naquele instante.
Um espetáculo trágico que não lhe valia aplausos.
Estava
só, como desde sempre. Estava só. De novo só, como no início. O
começo e o fim tão próximos. Iguais em tudo. Solidão e
melancolia. Um rastro de vida, sem motivos pra comemorar, apagava-se
agora.
Muito
frio pelo corpo. Muito frio, muito frio... um frio intenso se
apossara do jovem entorpecido. Parecia cair sobre ele a bruma gélida
de um inverno nórdico. Inverno que nunca haveria em sua quente terra
natal.
Em
poucos minutos, pensou no que vivera até aquele instante. Por alguns
segundos teve medo, teve dó, piedade de si mesmo. Por breves
segundos sentiu medo. Medo de tudo. Todo tipo de medo, que aqui não
vale nominar.
Sentiu-se
amargo. Amargo sofrimento esse, de quando as coisas terminam.
Entretanto,
e muito estranhamente para ele, naquele instante, de algum modo,
enfim, sentiu-se também profunda e terrivelmente completo. Como se
aquele fosse o seu grande momento.
Já
quase não havia mais luz. Não em seu quarto, pois a luminária
estava acesa. Também quase não havia mais em sua consciência. Era
pouca, tênue, fraca, quase a se apagar.
Cingiu
os punhos, num último esforço, e deixou-se cair para frente. Sua
cabeça bateu forte no chão, como igualmente o resto de seu corpo,
soando um baque surdo por sobre o tapete já rubro e molhado.
O
lado esquerdo do seu rosto colou-se ao chão. Sua boca ficou
entreaberta, com sangue em filete a esvair bem no canto, emoldurando
o que a princípio poderia ser quase um sorriso de vitória.
Os
olhos entreabertos e fixos no vazio relembravam um passeio que a
memória guardara, com as cores, formas e desenhos próprios do mundo
quando num momento de felicidade. E nos flashes da memória, vívida
e dolorosa, a lembrança de uma tarde radiante, do caminho do campo,
das margens de um rio, de sua namorada sorrindo, mãos dadas,
caminhando e falando-lhe sobre coisas que queria fazer na manhã
seguinte quando voltassem para casa.
Ali,
sobre o chão vermelho em que se achava, no mesmo filme da lembrança,
reviveu o momento de um convite para um banho, o lançar-se ao rio
depois de uma corrida breve pra tomar impulso, os dois a cair na água
como pedras lançadas do alto das árvores, ele a subir novamente,
cabeça furando a correnteza, sugando o ar para os pulmões e
novamente alcançando a estabilidade do nado e da flutuação. Logo
depois o espanto, o desespero, a sensação de total abandono, ao não
saber onde estava sua amada.
Muito
depois e bem longe dali, num olhar perdido, naquela mesma tarde,
mirou aquilo que parecia um corpo a deslizar lentamente, seguindo o
curso do rio, já quase a sumir do alcance da visão.
Foi
então quando Mário, imóvel sob a poça de sangue, antes do suspiro
mais profundo que daria em sua vida, no quarto vazio, sentiu um
cheiro de flores invadir o ambiente, seguido de uma brisa macia a
afagar-lhe o corpo e um leve e último beijo a tocar-lhe a face
lívida. A noite então chegara.
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