domingo, 29 de novembro de 2015

The Flying Man

sábado, 28 de novembro de 2015

Homenagem ao poeta Nauro Machado em face de sua morte (por Rogerio Rocha)

Minha homenagem ao poeta maranhense Nauro Machado, falecido esta madrugada. Escrito no ano de 2003, imaginava um dia oferecer-lhe como presente ou ler esse poema para ele. Não foi possível. Ainda assim, ficará, desde já, eternizado junto ao seu nome.


Nauro (poema extra)

Nauro, poeta ‘extraordináurio’...
Eu o vejo descendo a pé
A sempre velha Rua de Nazaré...
Os velhos prédios, as velhas pedras
Acenam pra ele no passar infindo.
Leva à mão direita
Um guarda-chuva negro, grande
E pontudo...
Na mão esquerda uma pasta
(que ao poeta nada basta).
Na mão direita seu guarda-chuva
(guarda-preces, guarda-dores, guarda-escárnios),
tal qual bengala, margeia a beira,
feia, fria e dura beira de calçada,
como se escrevesse, como se traçasse,
nela e com ela, uma outra linha,
paralela, imaginária...
ponteando o seu passar.

Nauro desce a Praia Grande.
Seu corpo é um grande copo,
Corpo translúcido, brilhante,
Cabendo no fluxo de um líquido
Profuso que cai no vazio vazante
Do continente, conteúdo que espuma
Da cabeça aos pés e se banha no rio
Do temporário, que o espera sobre
As mesmas mesas dos mesmos bares,
Refúgio presente, pleno sacrário
De tudo que sorve a dor e proclama
Suas relíquias no objeto incendiário.

Nauro, poeta ‘extraordináurio’...
Vejo daqui, desta sacada,
Bem de cima, bem do alto,
Tua cabeça descampada.
Vejo da sacada deste velho casarão.
Tua cabeça é como um vão.
A tua sombra perene,
teus versos enchendo a rua,
subindo aos ares, lambendo o chão,
onde correm passos que varrem
a paisagem, paisagem solene
das pedras que dormem nuas.
Silêncio, silêncio meu poeta!
Estou afeito a curtir pensamentos
Que escrevem mãos caladas.
Vago também pelos vales e valas,
Pelas vagas onde ecoam os berros
De tua voz grave e trágica.
Ecoa no espaço azul do sereno,
Vige ainda no tempo o teu dito.
Oh! poeta, que me ofusca!

Oh! tu, poeta, és quase adivinho,
És quase profeta na encruzilhada.

Tua fala, teu andar desconcertante,
Teu acuro com a essência da palavra,
Prisão ferrenha, destino amargo
e porto incandescente.
Em teu ombro carregas, cansado,
o altar de Apolo.
Mesmo assim, celebras Dionísio.

Oh! tu, amena criatura! Solitário ser
Que transita nossas ruas escuras,
Confiscando as posses desse sítio falido,
Confundindo-se à fauna efêmera
Das desvanecidas multidões,
Que, pouco a pouco, sucumbem
à dilaceração furiosa do teu logos,
semente negra que se espalha
sob os restos de tudo que jaz,
perfumando com ácido aroma
nossa triste e perpétua mortalha.

Dentro de ti, de tua pasta,
Não sei o que carregas.
(Talvez carregue mágoas!)
Talvez nela guardes poemas novos,
poemas velhos, poesias enjauladas...
Na tua pasta (ó, meu poeta!) só cabe a tua alma.
Há pouco espaço para o ser que não és.

Assim vai, descendo o poeta, sempre a pé,
A mais que velha Rua de Nazaré.

Poeta nefasto, poeta nefando...
Música trágica tocando ao fundo,
Qual trilha sonora do meu desencanto.
Uma criatura qualquer, filha das ruas,
Passante sem rumo, o saúda com palavras
Que, à distância, não as ouço dizer,

Vai, rua abaixo, o poeta... sismo ambulante.

Dele saem gotas frias de suor,
Banhando sua carne inquieta,
Sua magnitude metafísica.
Poeta mal-visto, mas poeta que se guarda.
Poeta sem lugar, posto que abarca
O tudo e o nada.

São Luís é pequena... São Luís é parca...
A ilha é pequena, é pouca, esquálida...
Não preenche o vazio de sua estrada,
Pois fenece antes, apodrece em suas mãos,
Sem chegar ao profundo, sem abrir as portas
E adentrar as salas desertas que afloram
no além-palavra.

São Luís, 29/03/03.

Sobre a vida e a morte de Nauro Machado





Tive a honra de participar - em meados dos anos 2000 - de um encontro (na verdade um sarau) com jovens poetas maranhenses, levado pelas mãos de um amigo (também escritor), ocasião em que esteve presente o poeta Nauro Machado (foi quando fui apresentado a ele) e onde pude ler e mostrar-lhe uma de minhas poesias. À época, e nunca me esquecerei, esse grande mestre me honrou com sua generosidade ao elogiar o poema que eu acabara de ler. 

Além dessa, por várias outras vezes encontrei-o a andar pela cidade, geralmente pela parte antiga de São Luís, seu centro histórico. Era uma criatura familiar àquele sítio, confundindo-se mesmo com suas ruas, com as praças, botecos, etc. Ao saudá-lo, como de praxe, me aprazia ouvi-lo responder, de forma sempre carinhosa: "Meu príncipe!" (que era como ele geralmente tratava as pessoas) ou o tradicional "Meu poeta!"

Nauro Machado foi, em minha opinião, o maior poeta maranhense de todos os tempos. Maior até que Gonçalves Dias e Ferreira Gullar (em que pese estes dois terem alcançado reconhecimento e exposição tremendamente maior do que a alcançada por Nauro). 

E falo isso (como sempre falei) não por demagogia ou pelo fato de não o termos mais dentre nós. Falo isso pela densidade, riqueza estilística, pela intensidade e beleza de tudo o que ele produziu. Era um arquiteto das palavras. Um demiurgo da poesia: construindo e desconstruindo coisas e mundos o tempo todo. Sua obra é única, singular (e essencial), tendo alcançado, segundo penso, um patamar de burilamento ontológico incomum. Mas, infelizmente, a maior parte dos nossos conterrâneos pouco ou nada sabe sobre quem era e o teor e importância da obra desse homem, que foi traduzido para o francês, inglês e alemão, escreveu 37 livros e tem ainda obras inéditas que, espero, possam chegar até as livrarias futuramente.

A construção de seus versos, a densidade, a intensidade, o peso dramático, existencial, profético, vivencial, que transborda dos poemas de Nauro Machado, traduzem uma identidade perfeita entre o autor, a vida e a estética do fazer poético. Por isso e muito mais é que esse homem (in)comum, que nos deixou esta madrugada, e que carregava a cidade dentro e fora de si mesmo,  merece ser, por todos os que amam a poesia, eternamente reverenciado. Obrigado, mestre Nauro! Obrigado, meu príncipe! Obrigado, meu poeta!

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