terça-feira, 27 de outubro de 2020

Entre o real e o imaginário: quem é o público para o qual escrevo?


 Por Rogério Rocha

Escrever é um ato solitário. Em essência, trata-se, ao mesmo tempo, de um ausentar-se do mundo exterior e um abrigar-se no universo que vive no íntimo de cada um de nós
 
Na escrita, trafega-se do fora para dentro e do dentro para fora, num movimento pendular entre momentos de conversa com suas próprias ideias e outras com o mundo da vida, que dele nos convoca a tomar parte. Afinal, é nele que a maioria de nós vai buscar elementos para desfiar suas falas imaginárias, construir seus diálogos, plasmar cenários, personagens, fazer versos.
 
A criatividade também entra nesse complexo de coisas referenciáveis no plano das maquinações do autor. A um fluxo de livres pensamentos, ordenados posteriormente talvez por uma estrutura que acolha alguma lógica ou a pura sensibilidade, somam-se os eventos múltiplos que desfilam diante das visões formadas pela assunção do desejo de algo dizer, contar, expressar.
 
Nessa dinâmica processual, obras vem a lume (para o gosto ou desgosto do leitor). Sim. Aqui está ele! O leitor. O destinatário do objeto final da produção literária. Razão de ser teórica e prática de quem escreve. Afinal, só há livros porque há leitores. E um leitor torna-se o que é justamente por causa da existência do livro.
 
Mas será mesmo que quem escreve tem em mente sempre uma pessoa? E se for, quem é esse outro que me decifra, que me interpreta e que desvela as entrelinhas do que produzo? Esse ele ou ela para quem direciono o que compõe o meu querer dizer o mundo.
 
Há pelo menos três tipos de escritores: os que escrevem para si; os que escrevem para os outros (o público) e os que escrevem para si e para outros.
 
No primeiro tipo temos escritores e escritoras inseguros quanto a suas reais qualidades. Geralmente em formação, temem mostrar suas produções a outrem, com medo da reprovação, da crítica mais pesada ou mesmo do simples desprezo. São tímidos e não conseguem imaginar terem devassadas as suas mais íntimas inquietações, seus devaneios, personalidades, sonhos e loucuras. São autores e leitores de si mesmos – aliás, não nos esqueçamos, o autor é também sempre o seu primeiro leitor. No segundo tipo, ou seja, dos que escrevem para os outros, há os que escrevem para seus pares (autores e autoras) e para os críticos. Esses, decerto, possuem a tarefa mais inglória. Carregam a pedra mais pesada. Serão julgados pela plateia mais exigente e também a mais apta a construir ou destruir reputações. O último tipo, por fim, representaria, a meu sentir, a melhor equalização do problema.
 
Levando em conta tais possibilidades, que não devem deixar de ser sopesadas, podemos nos perguntar, afinal, sobre o peso que essa questão deve ter para uma escritora, um escritor. Nesse sentido, cabe formular o seguinte questionamento: o outro para quem escrevo será sempre alguém real? Ou será na verdade um leitor imaginado?
 
Caberia dizer que, se é certo que não se pode afirmar peremptoriamente que sabemos sempre quem nos lê, é possível, entretanto, prospectar um universo delimitado de potenciais leitores. Gente que de alguma forma pode nutrir um relativo interesse por certas temáticas, certos estilos, certas escolhas artísticas, e arriscar a mira em torno de nichos de mercado.
 
Daí o porquê dos gêneros, e sobretudo dos subgêneros, em literatura, apostarem muito, de tempos em tempos, em certas modas, capazes de chamar a atenção de parcela dos consumidores.
 
Temas como vampiros, o sobrenatural, magia, aventura, mundos fantásticos, distopias, obras oriundas de desdobramentos de filmes, séries, desenhos e peças teatrais, por isso, acabam tendo lugar nas prateleiras de algumas pessoas com mais frequência.
 
No mais, retornando à questão lançada acima, e ampliando-a um pouco mais, diria que todo leitor, de alguma forma, acaba transformando-se também numa ideação. Um leitor que, em princípio, é sempre um anônimo para mim.
 
O leitor padrão recebe as tintas da suposta mediania, fazendo com que a escritora ou o escritor o crie em paralelo ao que escreveu, imaginando os prováveis olhares que poderão recair sobre suas obras. Deste modo, um acadêmico que publica um livro baseado num estudo realizado na universidade, ou na pós-graduação, partirá do princípio de que os prováveis compradores advirão do mesmo meio no qual transita. Enquanto isso, o autor infanto-juvenil, por exemplo, tem em mira um universo de crianças e jovens em fase de formação (os chamados pequenos leitores), e quase nunca, ou dificilmente, os adultos.
 
Ainda assim, tendo claro ou não o real destinatário de sua obra (ou o mercado que a absorverá, as pessoas que a receberão), o autor literário termina, por certo, tendo que encarar a eterna angústia de não saber onde está e quem é seu público real. E mais: se ele existe, que perfil terá. E se tiver (o que não é impossível), compreender que, para além da face do público que um dia se possa perceber, haverá esse outro reino de mistérios, entre o real e o imaginário, envolto numa quase ficção. A de que existe mesmo “o leitor”, “um leitor”, “as leitoras”, que estão lá, esperando, em algum lugar (que não diviso ao certo). Sei que estão... Ou não???
 
 

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A FILOSOFIA NA OBRA MUSICAL DE BELCHIOR

 

 

Por Rogério Rocha


O modo como a crítica tentava classificar Antônio Carlos Belchior tendia a situá-lo basicamente no interior de dois grupos do cenário musical brasileiro. “O primeiro deles conhecido como “pessoal do Ceará” e que reunia os artistas que, a partir da década de 1970, chegaram ao mercado nacional, sobretudo quando migraram para o Rio de Janeiro e São Paulo. Dentre eles, figuras singulares como Fagner, Ednardo e Amelinha, tidos como seus principais expoentes. O outro grupo dizia respeito à tão propalada MPB, que agrupa artistas dos mais diversos gêneros musicais, todos ligados a uma apreciação valorativa positiva e elitizada da nossa música. Neste grupo encontram-se nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina e outros tantos.

 O compositor Belchior, em sua trajetória dentro da música brasileira, a bem da verdade, não estava (nem queria estar) ligado especificamente a nenhum grupo artístico. Dono de uma inteligência aguda, de um olhar crítico, sensível e profundo, criou um estilo próprio e marcante. Para isso, investiu em alguns interessantes procedimentos discursivos e estilísticos em suas composições, fazendo uso, inclusive, de certos recursos linguísticos que criaram interessantes contrapontos em diálogos polêmicos com músicas de outros compositores e cantores, como Raul Seixas e Caetano Veloso, por exemplo.

 Sua semelhança com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche ia muito além do vasto bigode, que os dois cultivaram a vida toda. Em que pese não a manifestar explicitamente, Belchior certamente sofreu muita influência de alguns dos principais conceitos nietzschianos, dentre os quais as noções de vontade de poder, moral de rebanho, eterno retorno do mesmo e, principalmente, de sua crítica ao mundo idealizado. A relação fica bem mais evidenciada quando analisamos detidamente as letras do cearense.

 Para o filósofo alemão, o juízo moral tem em comum com o juízo religioso o fato de crer em realidades que não existem. Ou seja, no entendimento dele, criamos, com isso, um mundo demasiadamente idealizado que, por outro lado, acaba por negar o mundo real.

 Essencialmente realista e vitalista, o cearense Belchior, na mesma linha das ideias defendidas por Friedrich Nietzsche, via a experiência com a realidade como o verdadeiro espaço da emancipação do ser humano. Vemos isso em “A palo seco”, por exemplo, quando diz: Se você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos, lhe direi: amigo, eu me desesperava. ” Um pé no chão que reaparece também em “Alucinação”, à base de afirmações como: “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, nem nessas coisas do Oriente, romances astrais... A minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é experiência com coisas reais. ”

 Em sua obra, portanto, temos a arte como uma das vias de emancipação humana, ou seja, um instrumento para a libertação dos sentidos que possibilitaria a vivência de coisas novas, cravadas no cotidiano, cantado e contado em suas belas músicas. Na mesma perspectiva, Nietzsche pensava a beleza da arte como um estímulo à fruição da vida. Afirmava que ela só era possível com a manifestação da vontade de potência dos sentidos fisiológicos. O filósofo, portanto, comparava a verdadeira arte a Dionísio, divindade grega da festa, do sexo, da alegria, da liberdade, enfim, dos sentidos do corpo e dos afetos inebriados.

 Para se afirmar como um dos grandes compositores da nossa música (e um dos mais geniais, ao meu sentir), Antônio Carlos Belchior atravessou terrenos divisórios entre o corpo e a alma, forjando sua discografia sem a sede da fama fácil e da popularidade passageira. Buscou mostrar, para tanto, na crueza da realidade, na sinceridade das coisas, a dor que nos ensina a melhor sorver os momentos de alegria. Afinal, como ele cantava, “a felicidade é uma arma quente.”

 Ademais, o tom das críticas presentes em suas letras mexia com nossas frustrações ideológicas, filosóficas e políticas. Sua música, feita para esse mundo onde nem tudo são flores, despertava em nós uma lucidez luminosa, difícil de encontrar em outros artistas.

 No livro intitulado “Humano, demasiado humano”, Nietzsche aponta para aquele que seria o destino do espírito verdadeiramente livre, afirmando que: “Quem alcançou em alguma medida a liberdade da razão, não pode se sentir mais que um andarilho sobre a Terra e não um viajante que se dirige a uma meta final: pois esta não existe. Mas ele observará e terá olhos abertos para tudo quanto realmente sucede no mundo; por isso não pode atrelar o coração com muita firmeza a nada em particular; nele deve existir algo errante, que tenha alegria na mudança e na passagem. ”




Esta sentença define muito bem quem foi para mim Belchior: além de um grande compositor, um espírito livre. Um ser errante, poeta-músico e filósofo do constante devir, que andou caminho errado “pela simples alegria de ser”. Ser do algum lugar e do lugar nenhum. Afinal, “o mundo inteiro está naquela estrada ali na frente”.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

SEIS LIÇÕES DE VIDA QUE EXUPÉRY ME ENSINOU

 

SEIS LIÇÕES DE VIDA QUE EXUPÉRY ME ENSINOU

 

                                                                                               Por Rogério Rocha

 

 

Antoine Jean-Baptiste Marie Roger Foscolombe, Conde de Saint-Exupéry, nome dado a Antoine de Saint-Exupéry, escritor, ilustrador e piloto de aviões. Simplesmente o autor francês mais lido e traduzido até hoje, tendo obras publicadas em 26 (vinte e seis) idiomas e em, aproximadamente, 260 (duzentas e sessenta) línguas e dialetos. Fato que por si só já bastaria para colocá-lo num lugar de honra na literatura universal.

Parte considerável desse fenômeno tem ligação com duas de suas maiores contribuições à imaginação humana: “O Pequeno Príncipe” (1943), que vendeu 80 (oitenta) milhões de exemplares no mundo, e “A Cidadela” (1948), obra póstuma que é a síntese de suas concepções filosóficas. Dois livros que reputo fundamentais ao Ocidente e cujas qualidades e características ajudaram a moldar pessoas, transformar vidas e influenciar centenas de escritores durante muitas gerações.

Mas o que me trouxe a este texto não foram as obras, mas o homem, a pessoa humana do escritor Exupéry, chamado de Zé Perri pelos moradores de Campeche, comunidade de pescadores na ilha de Santa Catarina, onde, entre 1929 a 1931, por várias vezes esteve, quando trabalhava no serviço aéreo postal francês pilotando os aviões da empresa Latécoère, numa rota monumental que ia de Toulouse a Buenos Aires. Convivência essa documentada em seu livro “Voo Noturno” (1931), que reúne também passagens de sua experiência e amizades com a gente simples daquele lugar.

Movido pela magnitude dessa biografia, e mais que isso, pela força viva da figura simples e sensível de Exupéry, apresento aqui seis lições de vida que ele me ensinou.

A primeira veio da sua infância e está ligada ao irmão François. Criados por muitas mulheres (a mãe, uma tia idosa, amas, governantas e três irmãs), ele e seu irmão (dois anos mais jovem) nutriam uma grande rivalidade. Um dia, contudo, aos 15 (quinze) anos, François adoece. Doença que se arrastaria por um mês, até que em dada noite a enfermeira bate à porta de seu quarto e avisa a Antoine que seu irmão queria vê-lo. Chegando ao quarto do doente, e à beira da cama, ele segura em suas mãos e diz: “Pega um papel e toma nota! Vou morrer! Vou morrer e quero que tomes nota de tudo o que vou te deixar.” Incrédulo, Antoine então diz: “Não, esqueça! Cura-te!” Ainda assim, com a insistência do irmão, toma nota e arrola uma lista de bens. Na mesmo noite, François morreria.

O impacto da perda prematura do irmão pesou forte em sua alma. A partir desse dia, Exupéry aprenderia a jamais ser um materialista. A vida (ou a morte) lhe ensinara a compreender a força dos mais belos e profundos laços humanos.

A segunda lição extraio da sua passagem pela Latécoère, empresa que levava o nome do homem que imaginou o que poderia fazer com aviões (invento que, à época, ainda engatinhava). Com ele é criada a primeira companhia de correio postal aéreo da França. Uma ideia a que fora desaconselhado e que se imaginava irrealizável. Talvez por isso, seu criador então afirmava: “Só nos falta uma coisa: realizá-la.” E com ele, lá estava Antoine, um destemido piloto, apaixonado pelo voo, a realizar viagens transoceânicas, num avião com poucas aparelhagens, sem itens de segurança e durante longos trechos à noite, ensinando àqueles que ouvem os que dizem que suas ideias não podem ser realizadas o seguinte: mãos à obra, ajam!

A terceira lição de vida que aprendi com ele vem do deserto. Sim, o deserto em Saint-Exupéry tem uma presença decisiva. É forte, brilha, fala, envolve, aquece, acolhe, silencia e amedronta. Está no encontro do pequeno príncipe com o aviador solitário (inspirado no próprio autor, por certo). Está nos contos, histórias, imagens e memórias poético-filosóficas da sua “A cidadela”, apresentada em linguagem alegórica, quase bíblica. Afinal, para unir os homens e carregar mensagens, em suas cartas e postagens, sobrevoava o Saara, correndo risco de ser abatido pelos egípcios. Os mesmos egípcios com quem passara muitas noites a conversar, construindo laços de amizade com pessoas que antes eram meras desconhecidas. O deserto, portanto, até poderia matá-lo, mas serviu-lhe de inspiração, evocando, em toda sua aridez, o oposto, a humanidade de quem pretendia apenas tentar compreender o diferente de um outro modo.

A partir deste aprendizado, ensinou-me ainda mais. Uma quarta lição, conexa à anaterior: a tolerância. Tolerar o diferente é um exemplo de imensa humanidade. Justamente um dos traços que melhor caracterizavam a personalidade do fascinante escritor francês, que ainda hoje muito nos diz. Aqui prefiro que ele mesmo fale. Ouçam! “Se és diferente de mim, irmão, em vez de me prejudicares, tu me enriqueces. É essa diferença que faz a minha riqueza. E é a minha riqueza que faz a tua diferença.”

Chego agora ao quinto ensinamento, certo de que sua grande dor era escrever. Escrever não era um bálsamo. Era tormenta. Antoine reescrevia quinze, vinte, trinta vezes seus textos. Era um artífice obstinado, demiurgo onipotente em suas lindas histórias, pensamentos e palavras. Buscava, talvez por isso, uma linguagem universal. Escrevia para as gerações futuras. Até porque, como ele mesmo dizia, “o importante é o invisível”. O invisível do porvir, dos sentimentos ainda não revelados, dos projetos humanos, de tudo que ainda não é. O invisível do alcançar, do desbravar. Voava à noite quando não existiam instrumentos para isso. Voava às cegas. Olhava para onde queria ir e os meios apareciam. Apareciam os caminhos no ar. Era a vontade, só a vontade o que contava. Cruzava desertos, terras e oceanos. E conseguia. Ele conseguia. Afinal, o que é preciso dizer aos homens para que sejam homens? É preciso dizer-lhes sobre a essência das coisas. Sobre a natureza das coisas, sobre o inefável. Porque o invisível aos olhos só é visto pelo coração. E o que é do íntimo do coração, só se vê ao fechar os olhos.

Mas abro os meus novamente, respiro fundo e chego ao fim desse trajeto de aprendizados, dessas lições, desse imenso voo noturno sobre o meu próprio Saara, carregado de pesadas esperanças e guardando em meu coração (único lugar onde isso tudo poderia caber) a sexta lição que o mestre Saint-Exupéry me ensinou, e que aqui sintetizo numa frase: “Não esperes nada do homem se ele só trabalha para sua vida e não por sua eternidade.”

Obrigado Antoine, mestre inspirador! Professor de superação de si mesmo.

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