Nao há mais o que acrescentar aos fatos, exaustivamente tratados pela mídia eletrônica e impressa. Logo que as notícias foram divulgadas, deu-se início a uma série de especulações a que se seguiram análises dos especialistas, fala dos escolares e de seus pais, comentários das agências noticiosas, intervenção das autoridades. Muitos escolares foram convocados a falar, tanto os que presenciaram os fatos quanto aqueles que, testemunhas da “cena do crime”, não tinham tido contato direto com o agressor. Embora as informações, atualizadas em curto espaço de tempo, revelassem inúmeras contradições e inconsistências, o certo é que as falas convergiam para um mesmo ponto: como explicar o trágico acontecimento de que foram vítimas fatais doze crianças, a maior parte do sexo feminino, além de outras que se encontram ainda sob cuidados médicos? Quais foram suas causas? A insanidade do agressor? Sua personalidade mórbida, sua interioridade reclusa ou seu desejo de vingança diante do bullying sofrido durante sua infância e adolescência em grande parte vividas na mesma escola onde cometeu esse hediondo crime? Qual é a responsabilidade de pais e educadores? A escola teria relaxado em seus controles de segurança e facilitado a entrada do invasor/agressor? Se o controle de circulação de armas e de acesso a elas fosse efetivo, acontecimentos dessa espécie jamais teriam tido lugar na sociedade brasileira? Por certo, não é fácil responder a todas essas justas indagações. Cada uma, por si, requer considerar inúmeros aspectos enfeixados em torno da segurança pública, do cotidiano das escolas, do universo social e cultural das famílias brasileiras, em especial as de baixa renda, e da saúde mental em nossa sociedade, entre tantos outros. Sentimentos de insegurança grassam em todas as classes e grupos sociais da sociedade brasileira contemporânea, em alguns deles mais intensos e presentes do que em outros. Suas razões são complexas e já têm sido discutidas tanto no debate público quanto no espaço acadêmico. Esses sentimentos são mediados pela cultura política desta sociedade, em especial suas representações e seus valores de justiça, lei, ordem, autoridade, respeito e dignidade do outro, liberdade e igualdade, universalismo e relativismo. Mas são igualmente mediados pelos fatos. É inegável reconhecer que nos últimos quarenta anos a violência e os crimes cresceram em volume, intensidade, ritmo e gravidade como jamais ocorrera na história social e política desta sociedade. Em particular, cresceram os homicídios cujas vítimas preferenciais são jovens do sexo masculino, a maior parte procedente das classes de baixa renda e habitantes das chamadas periferias urbanas das metrópoles. Como demonstram respeitados estudos, elevada proporção dessas mortes está associada a armas de fogo, cujos acesso e livre circulação contribuíram para acirrar as disputas pelo controle de territórios para o comércio ilegal de drogas e para outras atividades ilegais. Posse de arma converteu-se em curto espaço de tempo em fonte e símbolo de poder, ainda mais quando estimula conflitos entre quadrilhas e gangues e exacerba rituais de exibição de masculinidade e de propensão para a guerra que desconhece limites nos direitos de uns em relação a outros. A posse e circulação de armas não são estranhas nos bairros populares ou nas regiões onde as taxas de crime e violência são elevadas. Muitos convivem há muito com o fenômeno das balas perdidas que já vitimaram crianças e adolescentes dentro das escolas. Na mesma direção, há registro de ocorrências em que alunos são surpreendidos portando armas na mochila, não raro exibidas como instrumento de atemorização de colegas. Em alguns deles, disparos, acidentais ou não, produzem vez ou outra vítimas fatais. Sob esse prisma, o caso da escola de Realengo não é um fenômeno tão singular como à primeira vista possa parecer, mesmo que se considerem suas extremas particularidades. O que se deve é então perguntar como e por que a escola veio a ser o locus de fatos tão trágicos. A violência nas escolas tem sido igualmente objeto de pesquisas acadêmicas e estudos proporcionados por instituições públicas e organizações da sociedade civil. Não é, por certo, um fenômeno exclusivamente brasileiro. No mundo todo, há uma verdadeira epidemia de casos, alguns mais graves e com repercussão que atravessa fronteiras. No Brasil, há singularidades que se devem em certa medida à configuração das formas de violência correntes e que alcançam as escolas.
Escolas como extensão das ruas A violência do crime e das ruas entrou nas escolas. Não se conhece a extensão desse fenômeno, até porque em algumas delas os casos não são denunciados ou nem sequer registrados por qualquer organismo oficial. Vez ou outra surgem denúncias de venda de drogas, conflitos entre gangues, disputas pela posse de bens ou mesmo resolução de desavenças nascidas no mundo do crime, além, é claro, de conflitos envolvendo paixões que resultam em desfechos fatais. Mas isso não é característico apenas das escolas. É observável também em outros espaços de convivência social ou coletiva, como lares, bares, festas, campos de futebol ou outros espaços de lazer. As escolas não podem ser responsabilizadas por acolher episodicamente a violência das ruas. Outras modalidades de violência têm despertado a atenção dos estudiosos e das autoridades escolares. Há ao menos uma década, tem-se observado exacerbação de conflitos entre alunos, entre alunos e docentes, entre docentes e alunos, entre direção e pais. É frequente que esses conflitos se expressem por meio de modalidades verbais, como xingamentos, desrespeitos de toda ordem, ameaças veladas. Porém, não é raro que cheguem às vias de fato: agressões físicas até mesmo com lesões graves. A natureza desses conflitos indica que mudou profundamente a “alma da escola” – seu significado e razão de ser. Concebidas, no passado recente, como passagem necessária para o êxito profissional e para o aprendizado da cidadania, em curto espaço de tempo a escola básica e a secundária deixaram de preencher essas expectativas. Não são garantia de futuro profissional, tampouco de aprendizado dos padrões de comportamento civilizado, próprios de uma sociedade moderna, capazes de incutir valores relacionados ao respeito, à reciprocidade e ao altruísmo, fundamentos de uma ordem social pacificada. É nesse contexto de crise institucional que o bullying vem adquirindo tanta atenção e centralidade nos debates públicos sobre o que se passa dentro das escolas. É certo que o assédio moral não é fenômeno recente. Todos terão à memória casos de colegas que eram molestados por sua altura, compleição física, naturalidade ou nacionalidade, sexo ou gênero, desempenho nos estudos ou nos esportes. Raramente mobilizavam tanta atenção de professores, direção e pais. Era comum que os casos se diluíssem no tempo, seja em virtude do ciclo natural da escolaridade, seja em decorrência do reconhecimento de limites ao assédio e, em contrapartida, às reações agressivas. Não que tais modalidades de assédio não implicassem sofrimento pessoal. Nesse domínio, algo também mudou. As modalidades de assédio tornaram-se mais e mais agressivas; as reações, tanto ou mais violentas. Ultrapassaram o limite da esfera moral e adentraram a ofensa física e psíquica. Insuportáveis, são experimentadas com tal sede de vingança da qual não estão excluídos desejos de eliminação de quem quer que seja responsabilizado pela dor pessoal.
Bullying familiar O bullying não é privilégio das escolas. Famílias também têm sua participação. Em alguns casos, humilhando moralmente aqueles filhos que revelam fraco desempenho escolar, restrita vocação para esportes, ou aqueles dotados de qualidades particulares consideradas depreciativas. Igualmente, quando estimulam filhos a competir agressivamente em quaisquer das atividades próprias do universo juvenil, inclusive nas conquistas amorosas. Aqui também algo mudou no interior do universo social e cultural das famílias. Mudaram as formas de convivência, socialidade e sociabilidade. Mudaram as relações dos filhos com a autoridade dos pais. Mudou a projeção que pais faziam em relação a seus filhos. No passado, os filhos deviam reproduzir o modelo dos pais. No presente, devem ultrapassá-los. As relações são cada vez mais mediadas por gadgets e equipamentos. Não sem razão, o diálogo dos filhos, incentivado pelos pais, é de si para consigo, realizado por meio das redes sociais eletrônicas. O espaço social das famílias é cada vez mais reduzido. Nos apartamentos típicos de classe média, cada filho constrói um universo próprio em torno de seu quarto de dormir. A sala de estar deixou de estar. Nas habitações das famílias de baixa renda, onde o espaço físico é pequeno para abrigar maior número de pessoas, é forte a pressão para socializar-se nas ruas, com os amigos, nas esquinas e nos bares. Não se trata aqui de promover uma condenação moral da insegurança, das escolas e das famílias. Trata-se, sim, de identificar alguns fatos ilustrativos de mudanças sociais em curso no mundo das instituições civis e públicas. Esses traços alcançam distintos indivíduos de modo muito diferenciado, assim como promovem subjetivamente respostas as mais distintas. Não é de hoje que se diz que a depressão é, por excelência, a doença contemporânea. Certamente, especialistas anotariam o narcisismo, entre tantas outras patologias. Os trágicos acontecimentos da escola de Realengo sugerem em sua origem que um mix de todos esses processos estiveram presentes e foram sendo progressivamente acionados em seus mecanismos microscópicos, incidentes em personalidades tão individualizadas como a do agressor. Por isso, qualquer explicação unilateral é simplista e insuficiente. Não foram certamente obullying por si só, tampouco o “desleixo” da segurança na escola (afinal, o que a escola poderia ter feito para barrá-lo, se não havia suspeitas de seu comportamento errático?) as causas principais. Na mesma direção, não é a crise da escola ou da família que encerra o essencial do caso, assim como a suposta ou provável insanidade mental. Muitos adolescentes e jovens submetidos a esses processos não serão levados inevitavelmente a cometer crime idêntico. Por sua vez, a carta-testamento lembra em muito o caso Pierre Rivière, um camponês francês que, na primeira metade do século XIX, assassinou a mãe, a irmã e o irmão. Instado a escrever as razões de seu ato, Rivière escreveu na prisão um surpreendente memorial em que pretendia se justificar. A carta-testamento do agressor da escola de Realengo cumpre função muito parecida. Pretende esclarecer, contudo obscurece. Seu texto revela mais a confusão de suas ideias do que um sentimento de injustiça na raiz da qual se encontraria seu tresloucado ato.
A prevenção O que fazer? Como então prevenir acontecimentos tão trágicos? Como evitar a repetição? Políticas de prevenção, para serem eficazes, demandam conhecimentos sólidos a respeito dos fatos em que pretendem intervir. Nos Estados Unidos esse conhecimento está em construção. Dada a sucessão, em uma década, de um número razoável de casos, foi possível observá-los com cuidado e extrair conclusões ainda que prévias. É preciso aprender com esse conhecimento acumulado, mas não esquecer as profundas diferenças de raízes históricas e organização social entre a sociedade norte-americana e a brasileira. Basta apenas lembrar que, nos Estados Unidos, sob certas condições, a posse de armas é um direito do cidadão protegido pela Constituição do país. É até mesmo um direito estimulado e defendido ferozmente em alguns estados da federação. Nunca é demais ressaltar que a cultura política da sociedade norte-americana é extremamente alicerçada no individualismo de inspiração puritana. Por isso, o conhecimento acumulado pela literatura especializada dos Estados Unidos não pode ser transferido sem mais para a sociedade brasileira. No Brasil, o massacre da escola de Realengo, por sua extensão e repercussão nacional e internacional, é único e certamente o primeiro. Não temos conhecimento prévio acumulado, ainda que aspectos aqui relacionados, como circulação de armas e violência nas escolas, já contem com um razoável acervo de estudos e pesquisas. Foi surpreendente, se não chocante, constatar que um jovem adulto, dotado de comportamento tão voltado para si, hostil ao mundo social em seu entorno, que evitou o quanto pôde contato social e se mostrou alheio às formas coletivas de sociabilidade, tivesse acumulado saber pessoal a ponto de chegar até as armas que utilizou no crime cometido. Do mesmo modo, é estranho que tivesse tido por sua conta e risco treinamento para atirar e sobretudo para manejar carregador de munição. Esses fatos, associados à comprovação, em pesquisa científica, de que proporção elevada de homicídios é cometida com o concurso de armas de fogo, sugerem que políticas de desarmamento da população – isto é, de recolhimento de armas ilegalmente em poder de civis – e de rigor na concessão de licenças para porte dessas armas e no fluxo do uso de armamentos sob a responsabilidade das Forças Armadas e das polícias militar e civil devem ser planejadas e executadas. Não pode ser uma iniciativa pontual, em momentos de comoção nacional, e sim uma política de Estado visando assegurar o direito constitucional à segurança e à proteção da integridade física de quem quer que seja, independentemente de sexo, gênero, geração, poder, riqueza ou etnia. Como tal, são políticas permanentes, tais como as políticas de vacinação e de proteção de todos contra epidemias e endemias, por exemplo. O bullying é outra questão a ser enfrentada. Ela requer o concurso de vários atores, em especial educadores e famílias, pois são representantes das instituições mais presentes ou que maior tempo ocupam na vida de crianças e adolescentes. Estar preparado significa associá-la não apenas ao sofrimento pessoal, mas sobretudo ao sofrimento social. Todos são alcançados por tais modalidades de humilhação moral, razão por que é preciso se libertar dessas práticas. Porém, não é certamente uma tarefa fácil. Ela impõe o reconhecimento de regras de civilidade, pelas quais se considere vergonhoso submeter outros à humilhação. Enquanto uns e outros não representarem essas modalidades de ação como sintomas de fraqueza de caráter, muito pouco pode mudar. As estratégias a serem adotadas dependem de certa dose de imaginação e criatividade. Este é seguramente um desafio para a escola brasileira no século XXI, principalmente em seus ciclos básicos: reinventar-se a si própria, resgatar suas funções clássicas de aprendizado, como também voltar a ser um lugar de prazer, de encontro, de crescimento pessoal. Para tanto, é preciso recolocar no horizonte da política a revalorização profissional do educador, tarefa capaz de habilitá-lo para detectar problemas antes mesmo de sua ocorrência e de suas prováveis consequências.
Sérgio Adorno é professor titular de sociologia da FFLCH/USP, coordenador do NEV-Cepid/USP e da Cátedra da Unesco para a Paz, Tolerância e Direitos Humanos da USP. Foi representante da área de sociologia na Capes (2005-2007).
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