Por Helio Gurovitz
Nesta semana será lançado aqui no Brasil Quando a máscara cai, livro em que o escritor americano Walter Kirn – conhecido como roteirista do filme Amor sem escalas, com George Clooney e Vera Farmiga – narra sua insólita amizade de mais de dez anos com um homem que se identificava como Clark Rockefeller e, depois, revelou-se um falsário, farsante e assassino. É uma história espetacular, cujos ingredientes de suspense e mistério têm tudo para fazer dela um sucesso. A questão suscitada pelo caso de Rockefeller é: como alguém pôde enganar tantos por tanto tempo? A melhor resposta foi dada por Kirn, mas num livro anterior, ainda sem tradução no Brasil: Lost in the meritocracy (Perdido na meritocracia). Nele, Kirn narra sua própria trajetória de enganador. Conta como desenvolveu um talento incomum para responder exatamente aquilo que seus professores queriam ouvir e tornou-se um especialista em todo tipo de prova, teste de aptidão e entrevista – sem reunir conhecimentos sólidos sobre coisa alguma. Seu sucesso sem nenhum mérito, como ele mesmo reconhece, revela não apenas os limites do competitivo sistema americano de ensino. Mostra também o equívoco de basear a educação exclusivamente na classificação dos estudantes por meio de notas, grifes, insígnias ou degraus cada vez mais altos e inacessíveis – que conduzem a lugar algum.
Kirn se descreve como um “filho natural da meritocracia”. Meritocracia é aquele sistema que avalia alunos, professores e escolas em provas, depois premia quem se sai melhor. Procura conferir, por meio de métricas e números, mais objetividade aos critérios de avaliação. Em princípio, nada mais justo. O efeito colateral é, nas palavras de Kirn, valorizar quem, como ele, demonstra “aptidão para mostrar aptidão”. “Eu vivia para prêmios, placas, citações, estrelas e nem pensava em algum objetivo, além da minha aparição nas listas de honrarias”, escreve. “Aprender era secundário, ser promovido era primário.” Desde os 5 anos, Kirn foi a mascote dos professores. Concursos de ortografia, debates simulados, sinônimos e antônimos, o tempo de encontro de caminhões trafegando em direções opostas – todo tipo de desafio era visto como mais um passo na escalada que o conduziu de uma fazenda no interior do Minnesota à renomada Universidade Princeton. Lá, passou a dominar o uso de um vocabulário cifrado, de significado obscuro, e desenvolveu uma competência inigualável para a embromação acadêmica. Descobriu então, na marra, que o mundo era mais complexo. O primeiro choque foi social. Suas origens humildes o depreciavam naquele ambiente de patrícios. Ele se atirou a um universo de drogas, vandalismo, sexo e pretensões artísticas duvidosas, que o levou ao colapso nervoso e à afasia. Kirn só se recuperou após um verão de trabalho ameno na biblioteca. No final de seu curso em Princeton, sofreu a primeira derrota na infindável escala meritocrática: foi preterido na concorrida bolsa de estudos Rhodes, para cursar pós-graduação em Oxford, Inglaterra. Mesmo assim, acabou por lá graças a uma outra bolsa, menos conhecida. Só então Kirn diz que começou a estudar por prazer, não pela ambição de reconhecimento. Seu maior aprendizado em Princeton, aquilo que faz dele um excelente escritor, veio de fora das classes. “Não é o que aprendemos na aula que determina o que nos tornamos, são nossas experiências.”
Seu livro nos coloca diante de uma reflexão fundamental em matéria de educação. A palavra “meritocracia” tem sido adotada como mantra por todos aqueles que defendem a reforma no sistema de ensino brasileiro, sobretudo por fundações e institutos mantidos pelo capital privado. Não é que eles estejam errados. É preciso mesmo vencer a resistência corporativa dos sindicatos de professores, encastelados em seus privilégios e avessos a qualquer sistema de avaliação de suas competências. Mas de nada adianta idolatrar os modelos coreano, chileno e finlandês, ou alimentar uma casta de doutores que dominam conhecimentos esdrúxulos em inglês, alemão, chinês – se nosso problema real é ensinar português e matemática às crianças brasileiras da periferia. Apenas a meritocracia não dará conta de transpor o fosso social ou de romper nossa singularidade cultural, que resiste a aceitar o valor do conhecimento – ou alguém aí viu algum vídeo de algum ex-presidente no Facebook sobre os últimos livros que leu ou os últimos desafios de matemática que resolveu? Para um aluno aprender, o mais importante são os exemplos, atitudes, valores. Os sistemas meritocráticos não se preocupam com isso. Inspirados em técnicas de avaliação empresarial, eles só atuam sobre aquilo que é possível para medir; transformam o talento numa espécie de moeda, acumulada aos milhões e bilhões. Só que, em educação, é verdade que dá para medir muita coisa – menos o que importa.
Fonte: Revista Época Online - Sessão colunas e blogs