quarta-feira, 4 de abril de 2012

Foucault vai contra 'apartheid criminológico'


O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) combateu veementemente todas as formas de exclusão e de opressão. Aluno de Louis Althusser e de Mearleau-Ponty, Foucault foi popular na década de 1960, como membro da “gangue dos quatro estruturalistas”, ao lado de Lacan, Barthes e Lévi-Strauss.

Uma década mais tarde, Foucault alinhou-se aos novos filósofos que haviam se afastado do marxismo e do maoísmo. É hoje autor seminal no contexto da discussão dos problemas de nossa época em vários campos, que transitam da epistemologia para psicanálise, da historiografia para a estética, das teses de biopoder para a criminologia. Nos últimos anos de sua vida, Foucault flertou com o estoicismo e explorou possibilidades de uma nova ética.
Trato muito rapidamente no presente ensaio de um de seus mais instigantes livros, a História da Loucura na Idade Clássica, no qual se tem oportuníssima crítica a criminologia que exclui e que persegue loucos, feios, mestiços e pobres. Trata-se de texto importante que estimula reflexões em assuntos de criminologia.
Em História da Loucura na Idade Clássica, Foucault apresentou inusitada pesquisa sobre a exclusão social dos supostamente insanos. Começou o livro lembrando a stultifera navis, a nau dos loucos, e a exclusão que tais navios realizavam, vinculando comparações com os leprosários e com o regime de reclusão que alcançava esses doentes.
Lembrou-nos Foucault que a lepra fora substituída pelas doenças venéreas, e que todos os doentes reclusos viviam sob a tutela do medo e do horror. Ainda sobre a stultifera navis, escreveu que “um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos” (FOUCAULT, 1991, p. 9).
Uma observação aparentemente estilística invoca percepção da escrita da história. Usando os verbos no indicativo presente, modo que os gramáticos nominam de presente histórico, Foucault transferiu o tempo pretérito para nossa contingência atual, quebrando barreiras temporais de narrativa. De fato, “a intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso: é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente; os fatos humanos são arbitrários” (VEYNE, 1998, p. 239).
Lendo o passado com Nietzsche, Freud e Artaud, Foucault percebeu na loucura, enquanto artefato do pensamento humano excludente, fonte de dilaceramentos, canto que esconde uma “abafada consciência trágica” que não deixou mais de ficar em vigília.
Analisando a loucura em Erasmo, em Cervantes e em Shakespeare, Foucault constatou que a loucura ocupa sempre lugar extremo no sentido de que não há recurso. A loucura seria caminho sem retorno. Encarcerado, o louco fica sob o jugo de soberania quase absoluta, de jurisdição sem apelações, sob a mira de um direito de execução em relação ao qual nada pode fazer, sob a tutela e vontade do diretor de um hospital geral.
No mesmo lugar coloca-se o miserável, a quem se rejeita a outorga de personalidade moral. Desenvolveu-se um mundo correcional, repleto de terapêuticas que revelam paisagens imaginárias, que dão o pano de fundo a convergência operacional entre medicina e moral. E então a loucura passa a referenciar-se e a projetar-se também nos sistemas obrigacionais:
“Enquanto sujeito de direito, o homem se liberta de suas responsabilidades na própria medida em que é um alienado; como ser social, a loucura o compromete nas vizinhanças da culpabilidade. O Direito, portanto, apurará cada vez mais sua análise da loucura; e, num sentido, é justo dizer que é sobre o fundo de uma experiência jurídica da alienação que se constitui a ciência médica das doenças mentais” (FOUCAULT, 1991, p. 130).
Justifica-se, por outro lado, em contrapartida à desoneração obrigacional do louco, a perda da liberdade de movimentos:
“Se, pelo contrário, os insanos são particularmente perigosos, mantêm-nos num sistema de coação que sem dúvida não tem natureza punitiva, mas que deve apenas fixar rigidamente os limites físicos de uma loucura enraivecida, Normalmente são acorrentados às paredes e às camas. Em Bethleem, as loucas eram agitadas, eram acorrentadas pelos tornozelos à parede de uma comprida galeria, (...) num outro hospital, (...) uma mulher era sujeita a violentas crises de excitação: era então colocada num estábulo de porcos, os pés e as mãos amarrados; passada a crise, era amarrada na cama, protegida apenas pela coberta; quando autorizada a dar alguns passos, ajustava-se entre suas pernas uma barra de ferro, fixada por anéis aos tornozelos e ligada a algemas através de uma corrente curta” (FOUCAULT, 1991, p. 149).
Foucault também estudou a mania e a melancolia. Quadros patológicos contemporâneos sugerem equivalência com estados de psicose maníaco-depressiva ou de bipolaridade. Acréscimos e deficiências de autoestima indicam, na teoria psicanalítica contemporânea das neuroses, os referenciais de depressão e de mania (FENICHEL, 2000, p. 379), que Foucault identificou em autores antigos, com alusão a complexo conceitual que transita do mito da química para uma verdade dinâmica do sofrimento pessoal.
A demência é fantasma que nos ameaça. A desrazão é penalidade que decorre do não alinhamento (voluntário ou não) com os protocolos do mundo racional. A desrazão seria também um prêmio pelo esforço centrífugo de não adesão (também voluntária ou não) à racionalidade que caracteriza nossa tradição ocidental.
A loucura alimenta um apartheid criminológico, que também conhece muitas outras versões. Refiro-me a certo darwinismo social (ainda que otimista), a uma tentativa de legitimação da exploração em Spencer, ao racismo de Gobineau, à estúpida tese da degeneração mestiça em Benedit Augustin Morel, à teoria da degeneração em James-Crowles Prichard, à diabólica tese do enfeiamento de Franz-Josef Gall.
Neste último caso, entabulou-se sinistra lógica que afirmava que a fealdade seria um desvalor estético enquanto a maldade seria um desvalor ético (cf. ZAFFARONI, 2011, p. 97). A aproximação negativa de caracteres físicos com psíquicos também fora cogitada por Gian Battista Della Porta. O auge de tais teses ocorreu com a propagação do positivismo spenceriano de Cesare Lombroso, para quem o criminoso seria representante de espécie humana cujo ciclo de evolução materna não se completara (cf. ZAFFARONI, cit., p. 99).
Entre nós, Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), professor de medicina legal na Bahia, crítico feroz de qualquer forma de miscigenação, defensor de formas mais hediondas de exclusão social.
As críticas de Foucault se dirigem a uma criminologia baseada na exclusão, defensora de apartheidcriminológico, que devemos combater, recorrentemente. Nesse sentido, elogiável o humanismo de Foucault, firme na denúncia de todas as formas de opressão e de exclusão, antigas e contemporâneas.
Os cânones da dignidade da pessoa humana, que defendemos intransigentemente, não pactuam com fórmulas ofensivas de exclusão e de perseguição. A crítica filosófica é importante instrumento de conscientização na luta pela libertação humana no combate sistemático a instâncias ideológicas opressoras.
História da Loucura na Idade Clássica, de Foucault, é livro provocante, que desafia o leitor, no sentido de que entendamos que boa parte de nossos problemas não estão na história, mas em nós mesmos, porque, afinal, somos nós que escrevemos nossas histórias, fixamos nossas opções e escolhemos nossos destinos.

Bibliografia
FENICHEL, Otto. Teoria psicanalística das neuroses. São Paulo: Atheneu, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 3ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. 4.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. La palavra de los muertos- Conferencias de Criminologia Cautelar.Buenos Aires: EDIAR, 2011.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é consultor-geral da União, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 1º de abril de 2012

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