quinta-feira, 30 de julho de 2020

QUE OS MORTOS NÃO ME OUÇAM


ROGÉRIO ROCHA - Filósofo e poeta
 

O filme Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society), do diretor Peter Weir, lançado no ano de 1989, transformou-se rapidamente num clássico do cinema. Há várias razões para isso, dentre elas o excelente roteiro, uma leva de jovens atores, a direção certeira de Weir e a presença do ator Robin Williams no papel do professor John Keating, em uma de suas melhores atuações na tela grande.

Ambientado em 1959, na Welton Academy, o drama é inspirado na história do professor Samuel Pickering e nas bases de sua prática pedagógica inovadora.

Contratado para lecionar a disciplina de Literatura, Mr. Keating mostra ao que veio logo em seu primeiro contato com a turma. Nele apresenta sua figura emblemática e um método de ensino incomum. E, pasmem, faz isso dentro da estrutura de uma escola tradicional, em que estudam filhos de famílias abastadas e cujo corpo docente é formado, em sua quase totalidade, por educadores à moda antiga, habituados aos esquemas didáticos rígidos e repetitivos.

Assim que encontra sua classe, Keating adentra a sala sorridente para, em seguida, dirigir-se até a porta, convidando os alunos a seguirem-no até um outro ambiente. Rompendo com as estruturas do ensino verticalizado (aquele no qual o mestre fala e os alunos só ouvem), o novo professor apresenta aos jovens o poema metafórico de Walt Whitman “O Captain! My Captain”, feito em homenagem a Abraham Lincoln e aqui reproduzido na força de sua primeira estrofe.

O Captain! my Captain! Our fearful trip is done;
The ship has weathered every rack, the prize we sought is won;
The port is near, the bells I hear, the people all exulting,
While follow eyes the steady keel, the vessel grim and daring:
But O heart! heart! heart! O the bleeding drops of red, Where on the deck my Captain lies, Fallen cold and dead.

Ex-aluno da mesma instituição, o instigante Keating apresenta-lhes também a noção do Carpe Diem (extraído às Odes de Horácio), um verdadeiro leitmotiv de sua pedagogia, exultando a necessidade de se viver o instante e aproveitar o momento fugaz.

Num processo de sedução construído com a alegria do viver, o educador-poeta liberta seus alunos das amarras do conformismo, abrindo-lhes as portas da percepção do belo e da busca apaixonada pelo saber.

Ensina-lhes o que não é perguntado nos testes, o que não vale nota e não reprova. Leva-lhes a refletir sobre o mundo, a vida, seus aprendizados, sobre a literatura e seu fazer real, forjado na marcha dos dias, dos prazeres e das dores. Estimula-os a descobrir novos olhares, a trilhar outros caminhos, a romper com a doutrina dos livros seguidos por seus velhos professores.

Demonstrando ousadia, pede aos alunos que arranquem páginas de um livro obsoleto enquanto sobe na mesa para mostrar-lhes como podemos olhar as coisas por um novo ângulo.

O espanto causado pela forma nada ortodoxa de ensino e as novas rotinas pautadas pelo educador terminam por envolver toda a turma. Ademais, a figura empática do professor Keating toca o coração daqueles jovens ao devotar a eles uma atenção genuína, preocupando-se em extrair de cada um o seu melhor.

Revendo a película, e revivendo as emoções que ela me causa, questiono-me, ainda hoje, sobre o real sentido da educação, sobre as motivações que levam os verdadeiros professores a conduzir mentes e destinos ao aprendizado significativo. Evidentemente, apoio-me na realidade nada cinematográfica para perceber que atores sociais como o representado por Robin Willians, no papel de professor, sempre foram (e continuam a ser) a exceção.

Mestres fora do comum são geralmente rechaçados, vistos como excêntricos, estranhos, esquisitos. A escola não está preparada para eles. Razão pela qual suscitam, ainda, muito mais desconfiança do que aceitação, chegando, por vezes, ao cúmulo de os alunos preferirem professores medianos àqueles capazes de fazê-los despertar de seus estados de apatia.

Enquanto isso, nas universidades e no ensino médio, há professores e professoras que lecionam ‘literatura’ do mesmo jeito que ensinavam quando ingressaram no magistério. Com aulas engessadas, conseguem o supremo feito de tornarem pouco interessante uma das matérias mais imaginativas da grade curricular.

Mestres e mestras que preferem optar pelo cientificismo planificado das ementas a terem de buscar conhecer quem são os alunos de carne e osso que sentarão para vê-los e ouvi-los ministrarem sua disciplina.

É verdade, entretanto, que há também alunos pálidos, sem lugar no mundo. Que habitam as aulas com seus corpos pasmados e olhares perdidos. Sem compromisso com nada, sequer com eles mesmos. O que nos leva a indagar: como chegaram a esse ponto? Já eram assim ou tornaram-se isso ao longo de suas vidas? São frutos de professores ruins e escolas piores? Ou crias de um universo familiar pobre de espírito? Deixo no vácuo as respostas.

Voltando, entretanto, ao filme, marco da cinematografia acerca da figura dos grandes professores, vemos, em seu desfecho, que tudo valeu a pena. Apesar das perdas, das tragédias, do sofrimento libertador, pessoas e vidas foram transformadas. E a semente da inquietação, de quem busca com amor o seu verdadeiro destino, enfim foi plantada.

Mesmo na despedida, com a demissão do mestre, percebe-se que seus alunos já não eram os mesmos. Eram outros, mais ávidos, sagazes, melhorados. O professor, aliás, mostrou-se também um capitão. Um capitão da sensibilidade: “Oh Capitão, meu Capitão”

Quanto a vocês, não sei, mas para mim ficaram evidenciadas pelo menos duas lições: a primeira, de que não há maior recompensa do que a que brota da riqueza das almas agraciadas com a descoberta autônoma de suas próprias verdades; a segunda, de que nenhum método avaliativo supera as reflexões vivenciadas na dinâmica das vidas reais, que se entrelaçam na sede do saber. E que os mortos não me ouçam, mas parece haver mais graça em aprender com os arroubos criativos de Mr. Keating e a força poética de Walt Whitman do que com as pregações cansativas de alguns mestres da repetição. 


domingo, 12 de julho de 2020

A ALEGRIA DO SILÊNCIO (ROGÉRIO ROCHA)

Rogério Rocha (filósofo e poeta)


Num mundo povoado de estímulos audiovisuais, distrações e barulhos, é cada vez mais raro encontrar quem se volte a uma prática de imensa simplicidade, quase esquecida pelas pessoas de nosso tempo: a experiência do silêncio.
Se nos perguntássemos agora o quanto do tempo de nossas vidas dedicamos à nossa interioridade, às reflexões mais íntimas, à meditação feita na paz de um cuidado, a maioria certamente responderia que muito pouco ou quase nada. Mas, afinal, o que há de tão importante na cultura do silêncio? Que benefícios pode nos trazer o mergulho nas profundezas dessa disposição vivencial?
Em tempos de furiosa confusão de imagens, sons e ideias desconexas, numa civilização pautada no que é “novo”, efêmero e fugidio, o ritmo acelerado de nossas existências é preenchido com toda espécie de coisas (menos as fundamentais). Algumas necessárias e quase obrigatórias, outras totalmente dispensáveis e até mesmo sem sentido.
Na sociedade da informação massificada, polarizada em discussões odiosas em torno da política e suas ideologias, fundada na objetividade hipermoderna, na velocidade e no cansaço, no pragmatismo e no padrão universal de comportamentos guiados por necessidades artificiais, forjadas na base de um mundo de fazeres e afazeres, distrações e construtos direcionados ao consumo rápido e rasteiro, a vida silenciosa da interioridade é um tema excluído do rol de interesses de nossa mais exacerbada mundanidade.
Pelo contrário, é o destaque frenético do(s) barulho(s) que verdadeiramente impera. Do som dos artefatos externos aos nossos corpos e do pensamento (acelerado) que transborda no verborrágico.
Os muitos sons que nos cercam dão prova disso. As vociferações radiofônico-televisivas, o palavrório sem fim das futilidades midiáticas, das redes (anti)sociais, de quem só fala e não ouve, dos que só escrevem e não leem, a massiva urgência de novos e mais estrondosos meios de chamar atenção (e para isso os megafones, as poderosas estruturas sonoras, etc.), os paredões das radiolas, das pick-ups dos playboys sertanejos e a música feita e consumida por gente com déficit de sensibilidade estética povoam nossos ouvidos fragilizados.
Decibéis de ruídos citadinos são produzidos no desassossego dos ambientes privados ou públicos, nas ruas, praças e centros de circulação de pessoas. Com isso, paulatinamente, vamos sendo dragados para dentro de um caos de sonidos no envoltório do cotidiano. Pouco a pouco, somos vencidos, entregamos nossas almas. Pouco a pouco, também, nos esquecemos de cultivar os instantes de solidão positiva, de paz amena. Instantes nos quais deveríamos nos devotar ao exercício pleno de um silêncio necessário.
Pois é na serenidade do silêncio que buscamos o reencontro com nossa essência, nossa verdade última. É no íntimo de uma prece sem palavras, de um canto sem frases, de uma música sem melodia, de uma reflexão sem arroubos de tagarelices, que podemos fazer brotar os segredos perdidos, blindar a mente da loucura e da angústia das relações extenuantes.
As culturas ancestrais, as escolas de mistérios, as seitas iniciáticas, as grandes filosofias do Oriente, as religiões primitivas e os mestres sapienciais, há muito nos ensinam a importância do saber calar-se, do não dizer, do mover-se para dentro, com ouvidos plenos ao que está para além do plano dos meros fenômenos.
Os monastérios, como lugares de profundo burilar da interioridade, calcados sobretudo no silêncio dos que oram e laboram. A calma imensa dos claustros, a paz intensa dos vastos campos, dos desertos, dos cemitérios, dos templos vazios, a nos conduzir a uma viagem interior, reflexiva, de um intenso desvendar de saberes, de um descortinar de véus, ideias, visões.
Só a prática silenciosa de uma escuta atenta pode nos conectar com o universo que existe dentro e fora de nós.
A meditação silente nos treina para a profundidade dos sentidos não lidos e não expressos na linguagem ensurdecedora dos ruídos do dia a dia, que destroem os raros momentos de contemplação. A distração contemporânea de uma vida voltada aos barulhos nos tolhe de experimentar o gosto de uma paz constantemente negligenciada.
Até mesmo os que oram, nestes tempos de estridência, preferem os brados ecoantes das igrejas abarrotadas ao sossego de uma prece muda, porém sincera, intensa, introspectiva, feita no recesso de um quarto, em consonância com as mais puras vibrações divinas.
Enfim, o ato do silêncio (sua procura, seu existir) está na gênese de toda questão, no âmago de todo espanto, no brotar de cada acontecimento.
Grandes ideias surgiram do pensamento que escutava apenas seus próprios sussurros. Os iluminados atingiram a perfeição que buscavam justo nas longas jornadas ao centro de seus íntimos temores, de suas dúvidas, seus anseios e aspirações.
O silêncio tem sempre algo a nos dizer. Traz em si muitos ensinamentos. Equilibra, harmoniza e potencializa nossas capacidades. Energiza nosso ser. Vincula-nos a algo maior e sagrado.
Não custa nada experimentar alguns momentos dessa paz. Reservar instantes para calar as palavras em nossos pensamentos. Desfrutar, sem pressa, da viagem que nenhuma agência pode ofertar.
Por isso, faço um apelo aos que ainda podem ouvir. Em meio ao triste caos contemporâneo, mergulhemos na alegria do silêncio.

Rogério Rocha escreve às sextas-feiras para o Textual, coluna do blog de literatura Os Integrantes da Noite.

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