A tese que pretendo expor e defender neste artigo é a de que as classes populares no Brasil – a maioria da população brasileira – são literalmente invisíveis e até hoje muito mal-compreendidas entre nós. Esse resultado foi apenas confirmado pela realização de dois estudos empíricos e teóricos que totalizaram seis anos de trabalho ininterrupto e resultaram em dois livros: A Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive (UFMG, 2009) e Os Batalhadores Brasileiros: Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? (UFMG, 2010). Nesses dois trabalhos foi examinado, tanto na dimensão das práticas sociais como das práticas institucionais, o efeito do abandono secular da maioria esmagadora da população brasileira. Ao mesmo tempo, especialmente no estudo dedicado aos “batalhadores”, foi possível também compreender as razões da extraordinária tenacidade e capacidade de luta do assim chamado “povo brasileiro”. A invisibilidade das classes populares no Brasil é o produto principal de uma “interpretação do Brasil” que logrou institucionalizar-se e incorporar-se em todo brasileiro como uma “segunda natureza”, sobre a qual não mais se reflete e que não mais se questiona. Essa teoria é a tese do “patrimonialismo estatal”. Há que se deixar claro, antes de qualquer coisa, que as ideias não são algo abstrato e abstruso de pessoas que vivem nas nuvens sem qualquer relação com o mundo real. Na verdade, não existe nada no mundo “real” que não tenha sido criado por “ideias” de intelectuais e cientistas. E não me refiro apenas aos carros e computadores de todo dia. Também todas as escolhas institucionalizadas ou não que definem para onde uma sociedade como um todo pode e deve ir são criações de intelectuais. Toda a ação de todos os partidos e tudo que se diz na mídia foram ou são também criação de intelectuais. Os intelectuais não criam, obviamente, o mundo a seu bel-prazer, já que as ideias têm de ser articuladas com interesses econômicos e políticos poderosos para se institucionalizarem e se tornarem “realidade material”.
Patrimonialismo e racismo de classe: A interpretação pseudocrítica dominante no Brasil moderno
Qual, então, a gênese do encontro entre ideias e interesses que construíram o Brasil moderno? Foi na década de 30 do século passado que se gestou a “revolução simbólica do Brasil moderno”. Dois são os protagonistas dessa revolução: Gilberto Freyre e Sérgio Buarque. Freyre transforma toda a percepção negativa e naturalizada do Brasil que vigia desde a independência, fomentada pelo prestígio internacional do “racismo científico” que condenava a sociedade brasileira a não ter nenhum futuro pelo fato de seu povo ser mulato e mestiço. Freyre “inverte” o mestiço como signo de todo o mal, em signo de todo o bem, transformando-o, inclusive, em emblema máximo da “brasilidade” a partir daí. É ele que incorpora a “plasticidade” do português que implica percepção e incorporação da alteridade, do “outro”, e de outras culturas como traço fundamental da luso-brasilidade. O principal adversário aqui é o racismo e a intolerância americanos, de modo que seja possível criar a “fantasia compensatória” que possa dizer: eles são mais ricos e democráticos, mas nós somos mais generosos e humanos. Se a identidade nacional brasileira moderna é construída a partir e contra a ideia do racismo na sociedade americana, a suposta “teoria crítica brasileira”, elaborada por Sérgio Buarque de Holanda no seu livro Raízes do Brasil, é construída por uma apropriação/inversão da tese de Freyre por Sérgio. Buarque não critica nenhum dos pressupostos da análise freyriana, muito especialmente seu “culturalismo”, ou seja, a ideia de que o “brasileiro” é um tipo singular, particularidade esta pensada de modo tendencialmente absoluto. Essa é uma ideia importante para o tipo de unidade coletiva que um “mito nacional” pode produzir, mas ela é simplista e superficial do ponto de vista científico. Cabe à ciência criticar os mitos e não reproduzi-los, maquiando-os com um “charminho de cientificidade” que é, ao fim e ao cabo, o que esta tradição iniciada por Buarque faz. Não se compreende a gênese da “ciência social dominante” no Brasil se não compreendemos seu vínculo íntimo e carnal com o “mito da brasilidade” criado por Freyre. Como todos os brasileiros desse período, Buarque foi influenciado decisivamente por Freyre . Antes de tudo, a ideia de “plasticidade” como herança ibérica. Essa ideia, uma apropriação direta de Freyre, vai ser fundamental para seu conceito de “homem cordial” e, consequentemente, para sua tese do “personalismo” e do “patrimonialismo” – pensado como a consolidação institucional do personalismo – como as marcas fundamentais da cultura brasileira.
Idealização ingênua dos EUA
Tudo o que era “positivo” em Freyre, a cordialidade, a emotividade e abertura ao “outro”, é transformado em “negativo” por Buarque e causa do atraso relativo brasileiro tanto na economia como na vida política. Começa aí a idealização dos EUA como terra da eficiência, da racionalidade e, acima de tudo, a terra das pessoas incorruptíveis e dignas de confiança, ao contrário dos brasileiros “cordiais” e sempre dispostos a sacrificar o interesse público e a racionalidade fria dos negócios em nome do interesse próprio e de seus amigos. A idealização ingênua e infantil dos EUA como terra da confiança interpessoal e das pessoas incorruptíveis será o contraponto que permitirá se travestir a teoria mais conservadora dos interesses liberais em uma teoria supostamente crítica. A partir de Buarque, autores dos mais influentes de nossa inteligência pseudocrítica, como Raymundo Faoro, Simon Schwartzman, Fernando Henrique Cardoso (inclusive em recente artigo nesta revista), Roberto DaMatta e vários outros, irão simplificar a tese de Buarque e equalizar as virtudes americanas às virtudes do mercado enquanto tal e os vícios brasileiros à suposta influência do Estado na vida social brasileira. Desde Buarque, o ponto fundamental em todos esses autores extraordinariamente influentes é a oposição entre um Estado percebido como causa de todos os males, posto que ineficiente, politiqueiro e corrupto, e um mercado visto crescentemente como o reino de todas as virtudes. Essa oposição é frágil e descabida, já que Estado e mercado formam um sistema interdependente, além do próprio mercado brasileiro, em todas as instâncias, ter sido criado e se desenvolvido à sombra do Estado. Além disso, a última crise internacional deixa clara como a luz do sol a falácia que é o fundamento e o pilar principal da “teoria pseudocrítica” dominante no Brasil moderno: é precisamente o “mercado” internacional que frauda e corrompe, muito especialmente são o mercado e os bancos americanos que maquiam balanços, falseiam relatórios e avaliações, institucionalizam a fraude como fundamento dos negócios e do lucro e dão um baque bilionário no planeta inteiro. Esses são os incorruptíveis e dignos de confiança dos nossos pensadores mais importantes e influentes que vendem até hoje a autoimagem dos EUA sobre si mesmos como “verdade científica”, emprestando o prestígio científico a todo tipo de violência simbólica que legitima privilégios de fato. Assim, como não existe dominação eficiente se o oprimido não incorpora como sua a visão do mundo do opressor, toda a nossa sociologia e ciência política dominante entre nós utiliza até hoje as mesmas categorias que a sociologia da modernização americana utilizou e ainda utiliza para justificar sua dominação fática política e econômica sobre o resto do mundo. É este repertório sociológico superficial e capenga que é usado para compreender o Brasil como “falta” e como “erro moral” pela suposta influência deletéria do Estado. A principal categoria é “moralizante” e refere-se a “confiança interpessoal” como principal característica “cultural” dos americanos e do mercado competitivo moderno. A mesma “confiança” que os grandes bancos americanos têm demonstrado possuir sobejamente na arena internacional, como já comentamos acima. Era isso que Buarque via como faltando ao homem cordial brasileiro, e é esta mesma categoria que está pressuposta no tema do patrimonialismo seletivo, só do Estado, em Faoro, FHC (como fica claro no seu último artigo nesta revista) e Roberto DaMatta. Alguém já imaginou o prejuízo em relações sociais e econômicas desiguais nacional e internacionalmente legitimadas com base nessa farsa? Mais interessante ainda para nossos propósitos é a ligação orgânica entre a tese do patrimonialismo estatal e o racismo de classe contra as classes populares entre nós. Como essa relação seletiva com a “ética” só tem olhos para a corrupção no Estado, as classes populares são condenadas como “antiéticas” por seu apoio ao Estado atuante, permitindo juntar os temas do patrimonialismo e do racismo de classe das classes privilegiadas como fundamento do moralismo seletivo travestido de ciência da “ordem liberal” no Brasil. São as mesmas categorias que “comprovam” a superioridade moral americana e do mercado sem freios que são usadas até hoje também para mostrar como as classes superiores no Brasil são “éticas” e as classes populares, incapazes de solidariedade efetiva e de “comportamento moral” . Nossa ciência social dominante é masoquista e servil em relação à “ciência” dos mais fortes internacionalmente, para justificar seus próprios privilégios, e sádica e opressiva em relação às classes populares e dominadas de dentro do próprio país. Todo esse arsenal interpretativo está hoje em dia a serviço do (des)conhecimento e do preconceito contra as classes populares no Brasil, tanto em relação ao que chamo provocativamente de “ralé” quanto, também, em relação aos “batalhadores” da chamada “classe C”. É precisamente o obscurecimento sistemático de todo conflito de classes entre nós, em nome da falsa oposição já naturalizada entre mercado e Estado, que abre espaço para um “economicismo liberal” que desconhece a produção sociocultural de indivíduos diferenciais por heranças de classe distintas. A percepção equivocada da “classe C” como classe média, ou seja, como classe privilegiada, mediante mero aumento do potencial de consumo e renda, reflete, precisamente, esse desconhecimento. Os preconceitos que a envolvem, e a negação pura e simples da classe de abandonados sociais,criada por uma sociedade injusta, também decorrem do mesmo contexto. São essas ideias, afinal, que selecionam e constroem um mundo que vai guiar a ação de governo, mídia, mercado, indivíduos e classes sociais. Por conta disso vale a pena criticá-las em detalhe.
A assim chamada “Nova Classe Média”
Os emergentes são a maior novidade econômica, social e política do Brasil na última década. Como é uma classe crescente – desde que mantidas as condições favoráveis – e que foi decisiva para o crescimento econômico brasileiro baseado no consumo interno da última década, sua importância não só econômica, mas também política, é nodal. Ela é a grande novidade social do “Brasil bem-sucedido” dos últimos anos e ainda muito pouco conhecida. Seu apelo é resultado, portanto, de fatores objetivos. Mas essa classe é muito pouco conhecida e existe muito preconceito em relação a ela como, em geral, aos setores populares no Brasil. Na pesquisa que realizamos sobre a classe dos “emergentes”, procuramos nos concentrar nos aspectos “não econômicos” na contracorrente de toda a percepção triunfalista que cerca a (in)compreensão desta classe no debate público brasileiro. O nome que se dá às coisas é muito importante porque traz em si toda uma compreensão singular que é sempre enviesada e mais ou menos distorcida da realidade. Quando se chamam os emergentes de “nova classe média” está se querendo dizer que o Brasil está se tornando um país de primeiro mundo, onde as classes médias e não os pobres formam o grosso da população. Isso, infelizmente, ainda está muito longe de ser verdade. Os “batalhadores”, nome que é uma homenagem a essa classe que se reinventou sozinha sob as piores condições , se assemelham muito mais a uma classe trabalhadora precarizada, típica do contexto social do pós-fordismo, sem direitos e garantias sociais, que trabalha de 10 a 14 horas ao dia, estuda à noite e faz bicos nos fins de semana. Seu potencial de consumo pressupõe extraordinário esforço pessoal, sacrifício familiar de todo tipo, além de todo tipo de sofrimentos e dores silenciadas pelo discurso triunfalista dominante. Essa classe não é só brasileira. Ela é expressiva em todos os países ditos emergentes, com grandes massas dispostas a todo tipo de trabalho sob as piores condições para executá-lo. O outro lado, o lado benigno desta nova classe social, foi sua ascensão econômica e social. O crescimento econômico brasileiro dos últimos anos beneficiou tanto os setores superiores e privilegiados quanto os setores populares. Mas o crescimento mais dinâmico veio da “parte de baixo” da sociedade brasileira, o que mostra o efeito positivo para todos – inclusive para os setores privilegiados que ganham, e muito, com o novo quadro econômico de políticas simples, como o Bolsa Família, o microcrédito e a ação da religiosidade tardia como fonte de autoconfiança e estímulo, compensando o abandono familiar e social típico de várias frações das classes populares no Brasil. Foram precisamente as classes desprezadas e abandonadas secularmente no Brasil que mostraram incrível poder de reação e de capacidade de trabalho. Mas essa classe não tem nada das classes médias privilegiadas e estabelecidas. Para compreender esta questão é necessário, antes, “compreender” como se formam as classes sociais e seus interesses, precisamente o que o foco universal na renda mais esconde do que esclarece. Não é apenas o conceito de classe média que é problemático em si por sua heterogeneidade. É o próprio conceito de classe social que é sempre percebido superficialmente no debate público. Isso se deve ao fato de que uma adequada compreensão do processo de formação das classes sociais permite a crítica do princípio social mais importante para a legitimação de todo tipo de privilégio injusto das sociedades modernas, que é o princípio da “meritocracia”. O privilégio injusto nessas sociedades é admitido e travestido como justo apenas porque ele é percebido como fruto do “desempenho individual extraordinário”. A compreensão liberal dominante que associa classe à renda só é tão dominante precisamente porque corrobora e mantém essa ilusão do “milagre” do mérito apenas individual, ao focar no “resultado econômico” do pertencimento de classe, e nunca nas suas pré-condições sociais. Quando se atenta não só para o seu resultado fortuito, como a renda, mas se percebe também a formação diferencial de tipos humanos com chances muito distintas desde o nascimento, de sucesso tanto na escola quanto no mercado de trabalho, o “milagre” do mérito individual, então, pode ser desmascarado como sendo, em grande medida, pelo menos, “socialmente construído” pela socialização familiar – muito distinta em cada classe – privilegiada. A base do privilégio individual moderno é injusta, posto que transmitida pelo “sangue”, por assim dizer, como na Idade Média, ou em qualquer sociedade pré-moderna. Afinal, não existe “culpa individual” por se ter nascido na família “errada”, nem, muito menos, mérito em se ter nascido na família “certa”. Uma correta percepção dos “emergentes”, portanto, exige que percebamos o “tipo humano” – com dramas, tragédias, sonhos e capacidades singulares – específico desta classe, e não apenas quantificar sua renda como normalmente é feito. É necessário, também, compará-la tanto com as classes médias “verdadeiras”, sua contraparte “acima”, quanto com os desclassificados sociais – que chamamos provocativamente, em outro estudo recente, de “ralé” para denunciar seu abandono – como sua contraparte “para baixo” da escala social. Os “emergentes”, que preferimos chamar no nosso estudo de “batalhadores” ou “nova classe trabalhadora”, não possuem nenhum dos privilégios de nascimento da classe média verdadeira. Muito especialmente, o “tempo livre”, que permite a apropriação de “conhecimento útil e altamente valorizado” – chamado por Pierre Bourdieu de “capital cultural” – é que caracteriza a classe média verdadeira. Se a apropriação privilegiada de “capital econômico” marca as classes altas, é a apropriação privilegiada de “capital cultural”, seja técnico ou literário, o que marca tipicamente as classes médias modernas. Os “batalhadores”, na sua esmagadora maioria, tiveram de trabalhar desde muito cedo, estudaram em escolas públicas, e estudam, quando estudam, em universidades privadas à noite. Sem acesso aos conhecimentos altamente valorizados que permitem a reprodução do mercado e do Estado – que garantem bons salários e muito reconhecimento social e prestígio às classes médias – os batalhadores “compensam” esta falta com extraordinário esforço pessoal, trabalhando sob condições penosas, sem garantias sociais, em atividades muitas vezes informais, sem pagamento de impostos. O que explica essa persistência e capacidade de resistência é a construção de uma sólida “ética do trabalho” que pressupõe a incorporação de disposições como disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo, onde o futuro e a busca por uma vida melhor compensam qualquer sacrifício no presente. A “ralé” – nome provocativo em uma sociedade que nega e maquia todos os seus conflitos principais – que discutiremos abaixo, perfaz ainda quase 1/3 da população brasileira, é tão abandonada e desprezada socialmente que tem de cuidar do pão de cada dia tornando-a prisioneira do “aqui e agora” que é a negação de qualquer perspectiva ou cálculo de futuro. O que é retirado da “ralé” – por uma sociedade injusta que a explora como mão de obra barata em atividades corporais para que a classe média possa se dedicar a estudos e empregos rentáveis e prestigiosos – é qualquer perspectiva de “futuro”. Existem classes literalmente “com futuro” e outras “sem futuro”, o qual precisa ser cuidadosamente calculado e planejado para acontecer. É esse tipo de “incorporação” de certas capacidades e virtudes que realmente separa as classes uma das outras, e não a renda, que é mero resultado da presença ou da ausência desses pressupostos. Assim, os “batalhadores” – ainda que vários sejam também pequenos empresários – possuem um “estilo de vida” que se assemelha muito mais ao das classes trabalhadoras – que são sempre classes incluídas na esfera econômica e política – do que ao das classes médias que pressupõem a incorporação sutil e invisível para o senso comum de uma série de disposições – capacidade de pensamento abstrato técnico ou literário, conhecimento de línguas, socialização que ajuda na produção de relações pessoais vantajosas, etc. – que, juntas, produzem a vida privilegiada. Diferentemente da “ralé”, por outro lado, esses novos trabalhadores a “céu aberto” possuem sólida ética do trabalho e perspectiva de futuro, produto tanto de famílias melhor estruturadas, ainda que pobres na sua maioria, quanto de socialização religiosa tardia, religiões essas tão pouco compreendidas pelas classes médias estabelecidas.
A “ralé” de desclassificados e abandonados sociais
A sociedade brasileira construiu e reproduz até hoje, também, uma classe de abandonados e desclassificados sem qualquer chance de participação na competição social em qualquer esfera da vida. Existe uma “luta de classes” intestina e inegável, que permite que toda uma classe que não consegue, pelo abandono social e político, incorporar conhecimento útil para participar no mercado econômico competitivo, possa ser explorada como mão de obra barata – reduzida a dispêndio muscular pela ausência da incorporação de conhecimento valorizado pelo mercado competitivo – nas funções de empregada, faxineira, babá, zelador, prostituta, motoboy, porteiro, e todo tipo de trabalho, perigoso, sujo ou pesado, de modo a poupar tempo das classes média e alta para estudo e trabalho de funções prestigiosas e rentáveis. Mas essa é uma contradição da qual nunca se fala. A falsa contradição pseudocrítica que opõe mercado e Estado é o limite do debate público brasileiro. Quando esta classe chega ao noticiário é quase sempre pela oposição bandido-polícia, despolitizando os conflitos sociais e criando estigmas contra os mais fracos. Em nossa pesquisa empírica e teórica sobre esta classe, realizada entre 2005 e 2008, levada a cabo em diversas regiões brasileiras, desenvolvemos um método empírico original baseado nas pesquisas de Pierre Bourdieu na Argélia e de Bernard Lahire na França. O aproveitamento consequente de uma metodologia de pesquisa empírica autorreflexiva e crítica nos permitiu, por meio do aproveitamento das lacunas e das contradições do discurso dos indivíduos dessa classe, “reconstruir” – apesar do autoengano compreensível de quem não tem defesa contra a própria humilhação social de que se é vítima – o sentido da vida em condições extremas de exclusão social em que vive cerca de 1/3 da população brasileira. Esse sentido parece ser construído, em primeiro lugar, na reprodução da “família desestruturada”, fruto da cegueira do debate científico e público dominante e do consequente abandono político dessa classe. A naturalização do abuso sexual dos mais velhos e mais fortes em relação aos mais novos e mais fracos – especialmente das meninas, mas, também, dos meninos – chocou todos os pesquisadores envolvidos na pesquisa. Esse tema é um tabu quase nunca veiculado pela mídia, o que apenas favorece a sua perpetuação no tempo. De um modo mais geral, uma atitude abertamente instrumental de todos em relação a todos no interior das famílias dessa classe não é incomum . As feridas na autoestima e na autoconfiança dos indivíduos dessa classe, resultantes dessa prática que se transmite de geração a geração, cuidadosamente ocultada por um acordo silencioso entre vítimas e algozes, não são difíceis de serem imaginadas. Também os papéis sociais de pais e filhos com as obrigações recíprocas da família burguesa de classe média são apenas precariamente reproduzidos. Nesse contexto, adquire todo o sentido a retomada por Axel Honneth da importância das relações afetivas e emotivas familiares como pressuposto para o exercício de toda função pública, seja como produtor útil seja como cidadão . O abandono social e político das famílias marcadas pelo cotidiano da exclusão parece ser o fator decisivo para a reprodução indefinida dessa classe social no tempo. Outro fator fundamental ligado ao problema discutido acima é o não aprendizado de habilidades e capacidades fundamentais para a apropriação de capital cultural de qualquer tipo. No relato de vários de nossos informantes, não faltou a presença da instituição escolar. No entanto, era muito comum a observação de que, quando crianças, eles ficavam fitando o quadro negro durante horas sem nada aprender. Com a repetição desse tipo de relato, que nos desconcertou no começo, aprendemos a perceber que o problema em jogo era a ausência da incorporação afetiva da “capacidade de se concentrar”, algo que os indivíduos de classe média tendem a perceber como uma “habilidade natural”, como se simplesmente nascêssemos com ela, como acontece com a capacidade de enxergar ou de ouvir. Como faltavam exemplos afetivos em casa, tornados possíveis pelo processo de identificação paterna e materna, essa capacidade ou disposição a se concentrar não era desenvolvida. Mesmo nas famílias mais bem estruturadas dessa classe, onde os pais permaneciam juntos e se esforçavam para ter uma relação afetiva e de cuidado com os filhos, as marcas do abandono social se mostraram presentes. Como nunca se vê o pai lendo um jornal, mas apenas fazendo serviços braçais e brincando com os filhos com os instrumentos desse tipo de trabalho, que tipo de sucesso escolar pode-se esperar dessas crianças? Ou quando a mãe os instava para estudar, dizendo que apenas a escola poderia mudar a vida para melhor; que efeito possui esse tipo de exortação se a própria mãe, que havia passado algum tempo na escola, não havia conseguido mudar a própria vida? Percebemos claramente com nossos informantes que não são os “discursos”, proferidos da boca para fora, mas apenas as “práticas” sociais efetivas, moldadas por exemplos efetivos, os verdadeiros instrumentos de mudança individual e social. A instituição escolar nesse contexto é ineficiente, porque essas crianças já chegam como “perdedoras” nas escolas, enquanto as crianças de classe média já chegam “vencedoras” pelo exemplo e estímulo paterno e materno afetivamente construído. Mas não apenas isso. A instituição escolar pública – precária no Brasil e crescentemente também nos países ditos avançados – passa a ser marcada pela “má-fé institucional”, no sentido que Bourdieu e Foucault utilizam esse termo, de tal modo que prometem a redenção dessa classe pela educação enquanto, na verdade, possibilitam transformar, com o carimbo do Estado e anuência de toda a sociedade, o abandono social em “culpa individual” de alunos supostamente burros e preguiçosos. Em nossa pesquisa abundam declarações tocantes de jovens que se imaginam incapazes de estudo, sem inteligência e incapazes de concentração por culpa própria. Constrói-se a partir disso um contexto onde tanto na dimensão intersubjetiva da interação social face a face dos sujeitos, quanto também na dimensão das práticas institucionais de todo tipo, sejam elas policiais, médicas ou escolares, o desvalor objetivo dos indivíduos dessa classe despossuída existencial, moral e economicamente é reafirmado cotidianamente.
“Pobres honestos”
O mesmo contexto de reprodução da miséria material e simbólica é o que explica, mais uma vez, a impotência política dessa classe de desclassificados. Notamos em nossa pesquisa que existe um verdadeiro abismo entre os chamados “pobres honestos” – aqueles que aceitam vender sua energia muscular a preço pífio – e aqueles percebidos como “pobres delinquentes” – aqueles que se revoltam reativamente de modo pré-político contra a estrutura que os condenam. Em nenhum estrato social essa diferença é tão importante e decisiva quanto na “ralé” pesquisada. O drama cotidiano da imensa maioria das famílias da “ralé’” – muito especialmente das mais estruturadas dentre elas – é precisamente o tema da “honestidade” percebida como a fuga do destino de bandidos para os meninos – ou do destino de “bêbados” para os adultos masculinos – e do destino de prostituta para as meninas. Essas são as figuras paradigmáticas da delinquência nessa classe que está, por sua fragilidade e pobreza, especialmente exposta aos riscos e seduções da vida desviante. Constrói-se com isso uma divisão insidiosa e virulenta dentro dessa classe, tornando especialmente difícil qualquer forma de solidariedade interna dessa camada negativamente privilegiada. Como praticamente toda família ou vizinhança tinha exemplos de vidas que “optaram” pela delinquência no sentido exposto acima, abundaram os relatos de mães que exploravam economicamente a filha prostituta ao passo que a acusavam pela escolha de vida, ou ainda de irmãos que não se falavam por terem optado por caminhos diferentes nas únicas duas opções possíveis para membros dessa classe. A hierarquia valorativa dominante, que pode ser exposta nos termos que viemos utilizando na oposição “digno”/”indigno” não só transfere a culpa da “indignidade” de todos ao próprio indivíduo, mas também quebra e separa a classe como um todo e, dentro dela, cada família, cada vizinhança e, no limite, cada indivíduo em dois inimigos irreconciliáveis. O “moralismo seletivo” da tese do patrimonialismo não vê qualquer problema “ético” na reprodução de abandonados sociais sem qualquer culpa na própria miséria. A percepção fragmentária dessa classe na mídia e no debate público distorce e impede a percepção de sua origem e destino provável comuns. Seja no tema segurança pública, no gargalo da mão de obra qualificada, no debate sobre a escola pública e mais dezenas de temas semelhantes, o que está em jogo é unicamente a origem e o destino desta classe muito mal-compreendida entre nós. Esta não é, entretanto, uma classe “condenada” para sempre. Parte dela pôde ascender socialmente nos últimos anos, ainda que certamente sua redenção efetiva exija muito mais que estímulos econômicos passageiros. Faz-se necessário uma reforma das ideias e dos espíritos no Brasil. É tempo de reconstruir consensos naturalizados no nosso país que permitam a reprodução de uma maioria superexplorada e humilhada, cujo sofrimento e dor sequer podem ser percebidos pela violência simbólica de interpretações que de críticas e de “éticas” nada possuem. O debate de ideias é a primeira trincheira do debate público verdadeiramente comprometido com a mudança estrutural e com a reforma social.
JESSÉ SOUZA , 51, é potiguar de Natal/RN. Doutorou-se em Sociologia na Universidade Heidelberg, Alemanha. Fez pós-doutorado em Filosofia e Psicanálise na New School for Social Research, de New York. É livre-docente em Sociologia pela Universidade de Flensburg, Alemanha. Escreveu 22 livros em várias línguas sobre teoria social crítica e análises empíricas e teóricas da desigualdade e das classes sociais no Brasil. Atualmente, é professor titular de Sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora. |