Por Renata Valério de Mesquita
A polêmica começou com uma denúncia apresentada pela Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério da Educação,
pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) e pelo técnico em
gestão de educação, Antonio Gomes da Costa Neto. A ação judicial defende
que a obra não deve ser comprada pelo governo nacional para ser
distribuída às escolas públicas como integrante do Programa Nacional
Biblioteca na Escola (PNBE) porque, segundo as regras do próprio
programa, as obras selecionadas não devem apresentar “moralismos,
preconceitos, estereótipos ou discriminação de qualquer ordem”.
Apesar do parecer inicial favorável, o então ministro da Educação e
hoje prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad, decidiu não aplicar a
medida, talvez por ser polêmica em época de eleições municipais. “É uma
pena que o Conselho Nacional de Educação (CNE) tenha se submetido à
vontade eleitoral do Haddad”, comenta Humberto Adami, advogado e diretor
do Iara. Em resposta ao descaso, a ação foi elevada ao Supremo Tribunal
Federal. Em setembro, foi realizada uma audiência de conciliação entre
as partes, sem sucesso. Agora, o processo aguarda o fim do julgamento do
mensalão para entrar na agenda do ministro Luiz Fux. Por ironia, o
julgamento será presidido pelo ministro negro Joaquim Barbosa.
A ação judicial trouxe à tona um traço menos conhecido de Lobato e
desagradável para seus fãs: sua firme defesa da eugenia, a ciência que
supostamente estuda as qualidades raciais. Em cartas trocadas com o
amigo Godofredo Rangel, em 1908, o escritor chegou a lamentar a não
existência da Ku Klux Klan no Brasil, utiliza o termo “pretalhada
inextinguível” e, entre outras coisas, afirma que a escrita “é um
processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil,
funcionam muito mais eficientemente”.
“Na época a eugenia era um debate científico. É importante entender
Lobato no seu contexto. A crítica atual é extemporânea e burra”,
argumenta Vladimir Sacchetta, produtor cultural e biógrafo do escritor. É
bom lembrar ainda que, se a Constituição de 1988 passou a considerar
racismo um crime inafiançável e imprescritível, as versões da Lei Magna
nacional de 1934 e de 1937 apresentavam propostas para a educação
relacionadas aos ideais eugênicos, tais como a obrigatoriedade da
educação física.
Os comentários racistas do escritor foram publicados na primeira edição
do livro A Barca de Gleyre, em 1944. “Mas, graças à sua capacidade de
rever posições e pontos de vista, na edição seguinte do mesmo livro
Lobato cortou esse trecho. Ele se revia e se editava o tempo todo. Assim
como tinha coragem de declarar suas posições, tinha coragem de
revê-las”, defende Sacchetta.
Outro exemplo emblemático, aponta o biógrafo, são os três momentos
distintos da construção de outro personagem famoso do autor, o Jeca
Tatu. Primeiro, o escritor define o caboclo brasileiro como “preguiçoso
por determinação genética”; depois de estudar pesquisas na área de
saúde, se desculpa com o personagem e lamenta o efeito da
esquistossomose sobre a população rural; mais tarde, em fase de namoro
com o Partido Comunista Brasileiro, o Jeca Tatu se torna um sem-terra,
vítima do latifúndio.
Mal-entendido subentendido
O debate acirrado entre defensores e críticos de Lobato ganhou um viés
de combate à censura politicamente correta. Humberto Adami garante que
não é essa a intenção da sua iniciativa, apesar de o Iara já ter
começado a investir contra outro livro do autor, Negrinha, também
integrante da lista do PNBE. “Não queremos censura nem banimento.
Queremos que se faça valer a lei do programa; que o livro ganhe uma nota
explicativa sobre a incorreção dos termos e a capacitação dos
professores. Para nós, a obra pode continuar sendo usada nas escolas,
como forma até de se desconstruir o racismo”.
Se for mesmo adotada, a nota explicativa deverá entrar ao lado de outra
nota que trata da atual proibição e punição da caça às onças – o leit
motiv de uma das histórias do livro Caçadas de Pedrinho. “Chamou a nossa
atenção o fato de que a editora tenha feito uma menção sobre a
pertinência da questão ambiental sem precisar de ações judiciais. Quando
se trata do negro, encontramos resistência.”
Para Paulo Vinicius B. Silva, um dos professores responsáveis pelo
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab) da Universidade Federal do
Paraná (UFPR), o politicamente correto, nesse caso, importa menos. A
questão mais grave seria a falta de valorização do personagem negro. Um
estudo da Universidade do Sul de Santa Catarina, que será divulgado em
2013, mostra o impacto do racismo implícito na autoestima das crianças.
“A equipe da Unisul percebeu que os pequenos ficam marcados ao ver
imagens dos negros sempre em situação de inferioridade, mesmo nos livros
didáticos, como, por exemplo, sendo açoitados”, adianta. Para Silva, a
ação na Justiça alvoroçou a opinião pública porque a sociedade
brasileira está acostumada à ilusão de se autoconsiderar antirracista.
“As questões que expõem como somos uma sociedade racista incomodam
muito.”
Já J. Roberto Whitaker Penteado, diretor da Escola Superior de
Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM), autor do livro Os Filhos de
Lobato, considera que a herança deixada pelo escritor não passa por aí.
Baseado em estudos desenvolvidos em sua tese de mestrado, Penteado
afirma que Lobato transmitiu valores mais importantes, como o
inconformismo com as ideias dominantes e com os poderes constituídos, o
espírito crítico e a importância da iniciativa individual, assim como o
valor das escolhas pessoais e da liberdade de expressão, em sentido mais
amplo.
“Além disso, ele defendeu, em todas as ocasiões, a inteligência contra a
burrice e a abertura intelectual contra a intolerância. Os valores
preconizados por Lobato continuarão a ter um imenso valor, depois que
nós tivermos morrido, assim como todos os burocratas do MEC e de outras
instituições governamentais”, desabafa.
Pontos polémicos
Em Caçadas de Pedrinho, há dois trechos principais que fundamentam a
ação judicial. O primeiro é o momento em que a tia Nastácia quer fugir
dos animais da floresta: “...esquecida de seus numerosos reumatismos,
trepou na árvore que nem uma macaca de carvão”, compara o autor. A
espécie a que o autor faz referência aqui responde oficialmente pelo
nome monocarvoeiro ou muriqui (Brachyteles arachnoides). O maior primata
do Brasil, originário da Mata Atlântica, é, realmente, muito ágil.
Curiosamente, seu pêlo corporal é claro, mas ficou famoso porque os
índios acreditavam que pintava a cara com carvão.
O segundo trecho é um comentário de Emília sobre o perigo da onça feroz
solta pelo Sítio: “Não vai escapar ninguém, nem Tia Nastácia, que tem
carne preta.” Emília, em outro momento, ainda chama a cozinheira de
“negra beiçuda”. A insolência parte de uma boneca caracterizada pela
língua solta. A personagem sempre foi conhecida por ser o alter ego do
autor. Era uma espécie de porta-voz de todas as coisas que ele tinha
vontade de dizer.
Apesar das má-criações da boneca de pano, Tia Nastácia era amada pelas
crianças do Sítio do Picapau Amarelo e é protagonista do livro de
Lobato, Histórias de Tia Nastácia. “Ela, o Tio Barnabé e o Saci Pererê
eram propagadores da cultura e da sabedoria popular brasileiras, numa
época em que se lia nas escolas coisas como Porque Me Ufano do Meu País e
outras patriotadas”, nota Penteado.
O ponto de vista não é simpático para os olhos de Adami. Para o
militante do Iara, faz parte do “racismo cordial brasileiro” o princípio
“afetuoso” de que somos todos iguais, contanto que os negros fiquem
sempre em lugar subalterno: na cozinha.
Na última história do livro, Tia Nastácia levanta a bandeira da
igualdade. Quando quer andar no carrinho puxado pelo rinoceronte
Quindim, recém-incorporado à turma do Sítio, a cozinheira diz a Dona
Benta: “Agora chegou a minha vez. Negro também é gente, sinhá.” Esse
trecho, entretanto, não é citado pela acusação.
Capítulo à parte
Na tentativa de acalmar os ânimos, Ziraldo tomou partido de Monteiro
Lobato e, em Fevereiro de 2012, ilustrou a camiseta do bloco
carnavalesco Que Merda é Essa? com o escritor abraçado a uma mulata, o
que só aumentou as reações contrariadas da comunidade negra. A escritora
Ana Maria Gonçalves dirigiu ao artista uma longa carta aberta
esmiuçando a posição racista declarada de Lobato e o racismo implícito
na comunidade brasileira. No final, assinou “negra, escritora, autora de
Um Defeito de Cor”.
A carta, aparentemente, funcionou. Ziraldo pediu desculpas em público e
confessou que desconhecia o fato de que Lobato apoiava a eugenia. “Foi
uma mudança profunda da postura do Ziraldo. Lobato era um racista
confesso. Esse viés do autor não costuma aparecer nem em biografias, mas
isso não desmerece a obra dele como um todo”, afirma Adami.
Mais do que questões legais, a polêmica relacionada ao escritor parece
ter a ver com a sua aceitação. O pai da literatura infantojuvenil
brasileira não era só um vanguardista defensor de ideias profundas como a
brasilidade, a natureza e o petróleo nacional. Também ajudou a formar e
a educar crianças que antes eram “bichinhos calados”, diz Sacchetta.
Deu voz, direito de pensar e senso crítico aos pequenos. Mas não era
perfeito. Se as crianças, hoje idosos, adultos ou adolescentes,
aprenderam bem terão discernimento para resolver a questão e crescer com
o debate.
Fonte: Revista Planeta - Edição 483 - DEZ12/JAN13