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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Resenha da obra "Elogio da serenidade e outros escritos morais" (por Heitor Pergher)

Por Heitor Pergher
Norberto Bobbio, em seu trabalho Elogio da serenidade e outros escritos morais aborda um grande conjunto de questões sensíveis ao estudo da Ética e do Direito. A sua análise sobre a moral, ainda que ampla e diversificada, gira em torno da relação entre moral e política. Os questionamentos de Bobbio orbitam, também, questões como religião e moral, preconceito, democracia e racismo. Nesta breve resenha, objetivou-se concatenar os diferentes temas abordados por Bobbio fazendo-se uma análise crítica das principais ideias defendidas pelo autor em seu trabalho. Jugou-se interessante iniciar esta análise avaliando a relação entre política e moral proposta por Bobbio, que é a base para os demais debates expostos na obra.
Sobre essa relação, o autor expõe algumas ideias divergentes, as quais são divididas entre teorias monistas e dualistas. No primeiro caso, defende-se a ideia de que “a moralidade é uma só, mas a sua validade declina em situações excepcionais ou em esferas de atividade especial”, como na política. Ou seja, com base na teoria monista, o código moral aplicável a todas as esferas de atividade social é o mesmo, inclusive à esfera política. No entanto, Bobbio assinala que na política, com base na teoria monista, esse código moral possui eficácia diferenciada. Quer dizer, em alguns casos excepcionais, é permitido ao governante desrespeitar os mandamentos morais. Isso ocorre quando a Razão de Estado exige tal atitude do governante.
Em resumo, essa permissão de se violar o dever moral na política pode ser comparada ao caso em que o agredido mata para se defender. Embora exista a norma moral de “não matar”, nesses dois casos ocorre a derrogação da norma geral para se adequar uma situação excepcional. No caso da política, o governante/soberano não respeita a lei moral geral nos casos em que a defesa da Razão de Estado assim lhe exigir, objetivo este que está acima do próprio código moral. Percebe-se, assim, que, com base na teoria monista, há a redução da moral à política.
A teoria dualista, por sua vez, propõe a existência de uma moral diferenciada para a política – a moral dos princípios e dos resultados. A atuação política deve respeitar a moral dos resultados, enquanto a esfera não política está sujeita à moral dos princípios. Isto é, a ação política, por si só, é meramente instrumental, não cabendo julgá-la com base na moral. Ela serve a um fim, este sim, suscetível ao julgamento de valor. Se o fim é bom, ele é moral, se é mau, é imoral. Em suma, essa teoria expõe a máxima de que “os fins justificam os meios”, frase comumente associada à obra O Príncipe, de Maquiavel.
Segundo Bobbio, temos a impressão errônea de que não existe moral na política, pois acreditamos que o código moral aplicável às relações sociais é o mesmo aplicável à política. No entanto, como demonstrado, o governante age com base na moral. Deve-se salientar, porém, que essa moral é referente somente aos resultados, e não aos princípios. O que importa ao governante, segundo Bobbio, são “os grandes feitos” e não os princípios morais.
Outra questão central analisada por Bobbio é em relação à atual proliferação de governos democráticos e laicos pelo mundo. Tal fenômeno, segundo Bobbio, acaba por reforçar as relações entre os Estados. Essas relações nunca estiveram tão regulamentadas pelo Direito Internacional, havendo verdadeiro poder coercitivo na esfera internacional para que os pactos entre os Estados sejam cumpridos. Entretanto, ainda são perceptíveis fatos que relativizam as afirmações citadas. Muitos eventos ocorridos, nas últimas décadas, fazem parecer que os Estados continuam vivendo no estado de natureza Hobbesiano quando o assunto é as suas relações na esfera internacional. Acontecimentos como a Guerra do Iraque, por exemplo, em que os Estados Unidos desconsiderou a decisão legítima do Conselho de Segurança da ONU sobre o uso da força, demonstra que as organizações nacionais ainda são limitadas pela realpolitik dos Estados.
Mais uma vez, percebe-se que a moral aplicável a esses governos é a moral dos resultados, e não a dos princípios. Ou seja, pouco importa moralmente que os Estados Unidos não tenham cumprido as suas obrigações internacionais (desrespeito ao princípio do pacta sunt servanda). O que importa é que o país agiu em conformidade à sua Razão de Estado (buscando o resultado ideal para os Estados Unidos).
Bobbio defende, assim, que na política, mesmo nas democracias, prevalece o código moral de ação oportuna e inoportuna. Isto é, a moral, nas democracias, também se relaciona ao resultado, como em todas as demais formas de governo. Nos governos democráticos, da mesma forma, as regras morais que regem um grupo existem para que o grupo sobreviva. A máxima “não matar”, por exemplo, garante que a sociedade sobreviva. Fora do grupo, no conflito entre nações, por exemplo, esse princípio não se aplica pela mesma razão. Ou seja, caso o governante democraticamente eleito se veja compelido a defender a nação, ele deverá, se necessário, recorrer à guerra (matar por meio das suas forças armadas) para que seja garantida a sobrevivência da nação.
Esses fatos levam Bobbio a se perguntar se as relações entre os Estados se dá ainda no Estado de Natureza. Em certa medida, ele defende que sim. Por isso, muitos afirmam que os tratados internacionais ainda podem ser considerados apenas pedaços de papel, sem verdadeiro poder coercitivo, uma vez que não há autoridade capaz de forçar o cumprimento dos pactos firmados na esfera internacional. Ademais, considerando que a moral aplicável aos Estados é a dos resultados, e não a dos princípios, conclui-se que os governantes não são compelidos moralmente a respeitar o pacta sunt servanda. Ainda assim, Bobbio entende que a Democracia é a forma de governo que mais aproxima as exigências morais gerais às decisões do governante.
Prosseguindo a sua análise sobre a moral, Bobbio estuda uma disposição normativa existente em todas as modernas Constituições nacionais, que é a separação entre o Estado e a Igreja. Em uma sociedade em que Estado e religião são instituições separadas, a imposição de uma moral laica é apresentada como um fenômeno central no estudo de Bobbio. Segundo o autor, a percepção geral da existência de um deus julgador infalível, capaz de punir aqueles que não cumprem as normas morais, é um fator coercivo para que a moral seja cumprida.
Em uma sociedade laica, como fazer para que a moral continue sendo cumprida? Esse cumprimento tem como base as teorias laicas da moral. Segundo Bobbio, são quatro essas teorias: 1 – Jusnaturalismo; 2 – Racionalista; 3 – Kantiana; 4 – Utilitarista. Bobbio demonstra que todas as teorias éticas laicas têm problemas fundamentais, assim como a teoria religiosa da moral também os tem. O direito natural (representado pelo jusnaturalismo) é, assim, uma tentativa de fundar uma moral que prescinda da existência de Deus. Segundo Bobbio, o que faz o ser humano cético seguir um código moral são as suas virtudes. Dentre elas, o autor considera duas fundamentais: a serenidade e a tolerância.
Para Bobbio, a moral é um dever interno, diferente da doutrina do Direito, a qual se ocupa do dever externo (aquele que pode ser exigido por meio da coerção). Na esfera interna, o que garante o respeito à moral é a virtude de cada um. Percebe-se, dessa forma, que o autor afirma ser possível a existência de uma moral cética, independente, assim, do medo de um deus julgador infalível. O Deus julgador é fundamental na teoria moral religiosa, uma vez que é ele quem tem o poder de punição máxima. Por isso, o que garante o cumprimento das normas morais na teoria laica, como afirmado anteriormente, é a virtude de cada um.
Ainda que considere a serenidade e a tolerância como as virtudes mais nobres do ser humano, Bobbio dá preferência pela primeira, pois a serenidade não exige reciprocidade; ela é unilateral. A tolerância, ao contrário, nasce de um acordo entre as partes e persiste enquanto durar o acordo (Serei tolerante com a sua moral desde que você aja da mesma forma com a minha.). De qualquer forma, essas duas virtudes são citadas pelo autor como fundamentais para enfrentar os grandes problemas morais das nossas sociedades “modernas”: o preconceito e o racismo.
Bobbio afirma que o preconceito faz parte da esfera do não racional. Ele divide os preconceitos entre individuais e coletivos. Os primeiros pertencem ao foro interno de cada um. São as superstições e crenças de cada um. Esse tipo de preconceito, segundo Bobbio, não é socialmente perigoso. Os preconceitos coletivos, por sua vez, são compartilhados por um grupo social e estão dirigidos a outro grupo social. Os mais comuns são o preconceito nacional e o de classe. Bobbio divide ainda o preconceito entre juízo de valor e juízo de fato.  Afirmar, por exemplo, que uma raça é superior à outra é um juízo de valor. Afirmar que o branco é diferente do negro é julgamento de fato. O primeiro tipo de preconceito é o mais perigoso, pois pode levar ao argumento de que a raça superior tem o direito de dominar a inferior, ou o dever de civilizar a raça inferior (ambos os argumentos foram comumente utilizados na história).
Com base na obra de Bobbio, percebe-se que o autor abordou uma ampla gama de temas, todos interconectados à temática da moral. Sua análise sobre a moral orbitou vários campos da vida social, do mais macro (analisando as relações internacionais e o próprio ato de fazer políticas de Estado), até o mais micro (a moral intrínseca a cada cidadão). Bobbio visou apontar os fatores internos de cada um de nós que fazem com que respeitemos a moral. Esse respeito pode surgir da fé, com o medo de um Deus julgador infalível ou em consonância às virtudes que carregamos dentro de nós, como a serenidade e a tolerância.

Notas e Referências:
BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. 2. ed. – Tradução: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

Heitor Pergher

Heitor Pergher é Mestre em Relações Internacionais e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil.

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