Nesta entrevista inédita, concedida ao GLOBO há duas semanas, o historiador francês Jacques Le Goff, morto na terça-feira, repassa sua obra, que desmonta lugares comuns a respeito da Idade Média. Com dois livros recém-lançados no Brasil sobre os protagonistas e a economia da era medieval, ele sugere que as origens do capitalismo na Europa da época ajudam a entender a crise do mercado e da democracia no mundo atual
Por Guilherme Freitas
A Idade Média de Jacques Le Goff não é o período de trevas e decadência enraizado no senso comum ocidental. Com cinco dezenas de livros publicados sobre religião, economia, política, artes, lendas, costumes e outros aspectos das sociedades europeias da época, o historiador francês, que morreu na terça-feira, aos 90 anos, afirmou-se como um dos mais reconhecidos medievalistas de nosso tempo. Em mais de seis décadas de carreira, ele se esforçou para destacar os traços criativos e dinâmicos de uma era que, como sempre disse, tem mais ligações com o presente do que se costuma acreditar.
Popular no Brasil, onde parte significativa de sua obra já foi traduzida, Le Goff teve mais dois títulos lançados no país este ano: “Homens e mulheres da Idade Média” (Estação Liberdade, tradução de Licia Adan Bonatti) e “A Idade Média e o dinheiro” (Civilização Brasileira, tradução de Marco de Castro). Em meados de março, o historiador concedeu entrevista ao GLOBO, por e-mail, sobre estes livros, que sintetizam vertentes importantes de sua obra.
“Homens e mulheres da Idade Média” é um volume coletivo, coordenado por Le Goff para a editora francesa Flammarion, com textos de 43 autores sobre figuras de relevo daquele período. Papas, santos, reis e teólogos foram “os grandes personagens” do mundo medieval, escreve o historiador, mas o livro abre espaço também para artistas, que deixam de ser vistos como artesãos anônimos e passam a ser reconhecidos como “autores”, e para o imaginário da época, relacionando mitos pagãos e religiosos, como o rei Arthur, o mago Merlin e Satã.
Já em “A Idade Média e o dinheiro”, Le Goff dá sequência a uma linha de pesquisas que vem desde seu primeiro trabalho, “Mercadores e banqueiros na Idade Média” (1956). O novo livro mostra o surgimento do capitalismo nas cidades medievais, onde o mercado em expansão entrou em atrito com a condenação da usura pela Igreja. O historiador contrasta a busca crescente de Estados e indivíduos por lucro com ícones religiosos da época, como a imagem, recorrente em narrativas e pinturas, de um homem que chega ao Inferno com um saco de dinheiro.
Le Goff foi um dos herdeiros da escola dos “Annales”, que na primeira metade do século XX revolucionou a historiografia deslocando seu foco para as ideias e os processos sociais. Nos anos 1970, foi um dos líderes do movimento conhecido como “Nova História”, que lançava mão de análises abrangentes para traçar a “história das mentalidades”. Em clássicos como “A civilização do Ocidente medieval” (1964) e “Para uma outra Idade Média” (1977), Le Goff buscou iluminar as particularidades daquele período, mas também ressaltar como as transformações ocorridas naquele tempo reverberam até hoje:
— A História é uma sequência de continuidades e mutações. E, raramente, de rupturas — disse Le Goff ao GLOBO.Em “Homens e mulheres da Idade Média”, o senhor afirma que aquele foi um período “criativo e dinâmico”, ao contrário da visão “obscurantista” dominante. Por que ainda temos uma visão negativa da Idade Média? E quais são os elementos mais “criativos” e “dinâmicos” dela?
A visão negativa da Idade Média se manifesta com intensidade a partir do século XIV, quando o poeta italiano Petrarca cria a expressão “Idade das Trevas” [que retratava a Idade Média como uma fase decadente da Europa, entre os períodos “luminosos” do Império Romano e do Renascimento]. Os lugares comuns sobre a Idade Média prosseguiram do Renascimento ao racionalismo do século XIX, apesar da reabilitação iniciada pelo Romantismo, com autores como Walter Scott, Victor Hugo, Augustin Thierry... E esses lugares comuns chegaram até nossos dias. Em todos os setores da sociedade repete-se como se fosse óbvio: “Não estamos mais na Idade Média”. No entanto, uma mudança de atitude dos pesquisadores em relação a essa época foi se consolidando ao longo do século XIX, a partir do esforço de instituições científicas como a École des Chartes e a coleção de estudos medievais “Monumenta Germaniae Historica”. Com a renovação do método e do espírito histórico em torno da revista “Annales”, fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre, o estudo da Idade Média passou por uma revisão. O progresso da economia rural e da economia monetária, a ascensão das cidades, o brilho da criação artística do estilo românico ao gótico nas catedrais, palácios e praças, tudo isso atesta o espírito criativo e dinâmico de uma longa Idade Média.
O senhor defende que o Renascimento dos séculos XV e XVI não representou o fim da Idade Média, como se costuma pensar, mas sim o “terceiro” e mais importante Renascimento da Idade Média. Por quê?
Acredito que o Renascimento inventado no século XIX por Michelet [historiador francês que cunhou a expressão em sua “História da França”, de 1855] não começa nos séculos XV e XVI. E que a “longa” Idade Média dura até meados do século XVIII. O primeiro Renascimento da Idade Média ocorreu nos séculos VIII e IX, com um pequeno núcleo de pensadores e cientistas agrupados em torno do imperador Carlos Magno. O segundo Renascimento, no século XII, é marcado pelo progresso agrícola, pelo desenvolvimento das cidades e pelo início das realezas nacionais. O Renascimento dos séculos XV e XVI é um período importante no campo das artes e na afirmação das nações, mas nos planos econômico e ideológico permanece essencialmente rural e marcado pelo cristianismo, ainda que no século XVI ele se divida em dois ramos: a Igreja Católica e a Reforma.
O senhor escreve que os grandes personagens da Idade Média são “santos, reis, Papas e teólogos”. Que condições permitem a ascensão dessas figuras históricas?
Os santos são uma novidade, uma criação do cristianismo; os reis são uma nova figura de chefe político; os Papas lideram a Igreja cristã; os teólogos substituem os filósofos da Antiguidade. Portanto, Deus como criador da Humanidade e do mundo é o principal mote do pensamento da época. A ascensão dessas categorias foi possibilitada, por um lado, pela cristianização da maior parte da Europa e, por outro, pela constituição de Estados que, ao longo da Idade Média, tornaram-se nações. Se pensamos nas obras que parecem dominar o pensamento cristão medieval, o que vem à mente são as sumas teológicas. E se há uma obra que se afirma como sua coroação, é a “Suma Teológica” de São Tomás de Aquino.
“Homens e mulheres da Idade Média” tem um capítulo sobre Francisco de Assis, que o senhor já havia estudado em outro livro. Na sua opinião, o que significa a decisão do cardeal Jorge Mario Bergoglio de adotar como Papa o nome de Francisco? Como o senhor avalia o papado de Bergoglio?
Acredito que, ao escolher o nome Francisco, o cardeal Bergoglio quis retirar da Santa Sé a imagem de riqueza e poder que ela havia adquirido. O caráter único deste nome na lista de Papas nos faz pensar sobre semelhanças entre a situação de crise no mundo atual, principalmente na Europa, e certos traços do avanço da pobreza na Idade Média, no tempo de Francisco de Assis. O gesto de escolher o nome Francisco é, ao mesmo tempo, o resgate de uma tradição de humildade da Igreja e uma concepção original do pontificado.
Há mais homens que mulheres no livro, uma diferença que o senhor justifica dizendo que isso é também “uma representação do lugar que elas ocupavam”. Que lugar era esse?
Embora a mulher não tenha sido tão depreciada na sociedade cristã medieval como costumamos acreditar, é fato que a Idade Média cristã é uma era masculina. A mulher é vista como um ser degradado pela memória do pecado de Eva, e nem a devoção por Virgem Maria é suficiente para mudar isso. A impossibilidade institucional e espiritual de as mulheres exercerem o sacerdócio as rebaixa a uma categoria inferior à dos homens.
Também há poucos artistas no livro (Dante, Giotto e Bocaccio, por exemplo). Mas há toda uma seção dedicada a personagens imaginários, como mitos de origem histórica (Rei Arthur), figuras religiosas (Satã) e lendas populares (o mago Merlin). O senhor explica que é durante a Idade Média que emergem as noções de “autor” e “artista”. Como? E quais são os traços mais fortes do imaginário das sociedades medievais?
A onomástica no mundo dos artistas durante a Idade Média é um assunto delicado. Por muito tempo, o artista é anônimo ou é considerado apenas um artesão. É a partir da difusão da noção de “beleza”, a partir do século XIII, como bem mostrou Umberto Eco [em “História da beleza”, de 2004], que o personagem do artista adquire em certas cidades italianas prestígio social e profissional. O primeiro a se beneficiar disso foi o pintor Giotto (1266-1337), em Florença. O imaginário de qualquer sociedade humana, em qualquer época, reflete a experiência, o pensamento e o sentimento de seus integrantes. Na Idade Média, acrescenta-se a isso um mundo de maravilhas que recupera parte do que chamamos de “cultura popular”, da qual o cristianismo medieval se beneficiou muito. Ao prestígio do homem como criatura à imagem e semelhança do Deus cristão, juntou-se o prestígio dessa dimensão maravilhosa do humano.
O senhor descreve a universidade como “um novo poder” na sociedade medieval. Quem eram seus personagens mais representativos?
Foram os próprios homens e mulheres da Idade Média que concederam à universidade um status de poder equivalente ao do sacerdócio e da realeza. O intelectual da Idade Média se retira do studium monástico da Alta Idade Média para ser formado ou pelas universidades ou pelas novas ordens mendicantes urbanas, sobretudo os franciscanos, ou “frades menores”, e os dominicanos, ou “pregadores”. O nome desta última ordem sublinha o fato de que na Idade Média a oralidade tinha um papel essencial no mundo intelectual, no qual sermões eram tão importantes quanto exercícios universitários.
O senhor define a cidade como “uma grande criação da Idade Média”. Qual é a herança mais importante da cidade medieval para a cidade contemporânea?
A cidade medieval é um centro de produção econômica, principalmente de artesanato. Além disso, é o centro da emergência de uma classe social que surge disposta a governar a si mesma, a burguesia. Mas, com sua tendência de alastramento da pobreza e do crime, é também centro de miséria e delinquência. É ainda um centro festivo, espaço de sociabilidade manifestada na praça pública. A ideia da cidade como grande centro se reforçou até nossos dias.
Em “A Idade Média e o dinheiro”, o senhor observa que a forma como pensamos no dinheiro hoje é “produto da modernidade”. Mas afirma que foi na Idade Média que a busca de indivíduos e Estados por dinheiro começou a ser legitimada. Como o dinheiro era visto na Idade Média?
O dinheiro começou a adquirir na Idade Média um valor e um uso econômico, insuflados pelas cidades, mas também era visto como incitação ao pecado da usura. A cidade medieval estava dividida entre a prosperidade e a condenação do dinheiro. O desejo de não reprimir o progresso econômico e a marcha dos indivíduos rumo à riqueza leva a Igreja e as instituições urbanas a distinguir entre o que há de legítimo na cobrança de juros pelos credores e o uso ilegítimo que fazem dele os usurários. No que diz respeito à poupança e ao uso do dinheiro, a Idade Média evoluiu da itinerância das feiras à estabilidade dos bancos. Esse processo pode ser visto como uma “sedentarização” da vida econômica, simultânea ao desenvolvimento comercial.
O senhor escreve que até o século XII as sociedades medievais eram divididas entre “poderosos” e “fracos”. Depois disso, surge a distinção entre “ricos” e “pobres”. Quais são as consequências dessa mudança?
No início da Idade Média, as distinções são sobretudo institucionais, como aquelas entre senhor e servo. O fato de possuir terras ou não era o critério essencial. Depois, com o desenvolvimento do comércio e a ascensão das cidades, surge a discriminação pelo dinheiro. O pobre substitui o servo. Essa mudança conduz a uma sociedade dominada pelo capitalismo.
“A Idade Média e o dinheiro” retoma o tema de seu primeiro livro, “Mercadores e banqueiros na Idade Média” (1956). Nele, o senhor analisava a “revolução comercial” promovida por essas duas categorias naquele período. Como a análise das origens do capitalismo na Idade Média pode ajudar a compreender a fase atual do capitalismo?
A História é uma sequência de continuidades e mutações — e, raramente, de rupturas. Uma das diferenças essenciais entre a sociedade medieval e a nossa é a industrialização, que alargou muito a base do funcionamento econômico e social, enquanto na Idade Média essa atividade era essencialmente rural, militar e religiosa. A sociedade de classes analisada por Marx no século XIX é muito diferente da sociedade de três estados da Idade Média, composta pelos que pregam, os que lutam e os que trabalham (oratores, bellatores, laboratores). Uma longa mutação conduziu à Revolução Francesa, que inspirou mutações no resto do mundo. A situação social das cidades medievais unia poder político e poder econômico. Hoje, democracia e capitalismo são, acima de tudo, antagonistas.
Popular no Brasil, onde parte significativa de sua obra já foi traduzida, Le Goff teve mais dois títulos lançados no país este ano: “Homens e mulheres da Idade Média” (Estação Liberdade, tradução de Licia Adan Bonatti) e “A Idade Média e o dinheiro” (Civilização Brasileira, tradução de Marco de Castro). Em meados de março, o historiador concedeu entrevista ao GLOBO, por e-mail, sobre estes livros, que sintetizam vertentes importantes de sua obra.
“Homens e mulheres da Idade Média” é um volume coletivo, coordenado por Le Goff para a editora francesa Flammarion, com textos de 43 autores sobre figuras de relevo daquele período. Papas, santos, reis e teólogos foram “os grandes personagens” do mundo medieval, escreve o historiador, mas o livro abre espaço também para artistas, que deixam de ser vistos como artesãos anônimos e passam a ser reconhecidos como “autores”, e para o imaginário da época, relacionando mitos pagãos e religiosos, como o rei Arthur, o mago Merlin e Satã.
Já em “A Idade Média e o dinheiro”, Le Goff dá sequência a uma linha de pesquisas que vem desde seu primeiro trabalho, “Mercadores e banqueiros na Idade Média” (1956). O novo livro mostra o surgimento do capitalismo nas cidades medievais, onde o mercado em expansão entrou em atrito com a condenação da usura pela Igreja. O historiador contrasta a busca crescente de Estados e indivíduos por lucro com ícones religiosos da época, como a imagem, recorrente em narrativas e pinturas, de um homem que chega ao Inferno com um saco de dinheiro.
Le Goff foi um dos herdeiros da escola dos “Annales”, que na primeira metade do século XX revolucionou a historiografia deslocando seu foco para as ideias e os processos sociais. Nos anos 1970, foi um dos líderes do movimento conhecido como “Nova História”, que lançava mão de análises abrangentes para traçar a “história das mentalidades”. Em clássicos como “A civilização do Ocidente medieval” (1964) e “Para uma outra Idade Média” (1977), Le Goff buscou iluminar as particularidades daquele período, mas também ressaltar como as transformações ocorridas naquele tempo reverberam até hoje:
— A História é uma sequência de continuidades e mutações. E, raramente, de rupturas — disse Le Goff ao GLOBO.Em “Homens e mulheres da Idade Média”, o senhor afirma que aquele foi um período “criativo e dinâmico”, ao contrário da visão “obscurantista” dominante. Por que ainda temos uma visão negativa da Idade Média? E quais são os elementos mais “criativos” e “dinâmicos” dela?
A visão negativa da Idade Média se manifesta com intensidade a partir do século XIV, quando o poeta italiano Petrarca cria a expressão “Idade das Trevas” [que retratava a Idade Média como uma fase decadente da Europa, entre os períodos “luminosos” do Império Romano e do Renascimento]. Os lugares comuns sobre a Idade Média prosseguiram do Renascimento ao racionalismo do século XIX, apesar da reabilitação iniciada pelo Romantismo, com autores como Walter Scott, Victor Hugo, Augustin Thierry... E esses lugares comuns chegaram até nossos dias. Em todos os setores da sociedade repete-se como se fosse óbvio: “Não estamos mais na Idade Média”. No entanto, uma mudança de atitude dos pesquisadores em relação a essa época foi se consolidando ao longo do século XIX, a partir do esforço de instituições científicas como a École des Chartes e a coleção de estudos medievais “Monumenta Germaniae Historica”. Com a renovação do método e do espírito histórico em torno da revista “Annales”, fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre, o estudo da Idade Média passou por uma revisão. O progresso da economia rural e da economia monetária, a ascensão das cidades, o brilho da criação artística do estilo românico ao gótico nas catedrais, palácios e praças, tudo isso atesta o espírito criativo e dinâmico de uma longa Idade Média.
O senhor defende que o Renascimento dos séculos XV e XVI não representou o fim da Idade Média, como se costuma pensar, mas sim o “terceiro” e mais importante Renascimento da Idade Média. Por quê?
Acredito que o Renascimento inventado no século XIX por Michelet [historiador francês que cunhou a expressão em sua “História da França”, de 1855] não começa nos séculos XV e XVI. E que a “longa” Idade Média dura até meados do século XVIII. O primeiro Renascimento da Idade Média ocorreu nos séculos VIII e IX, com um pequeno núcleo de pensadores e cientistas agrupados em torno do imperador Carlos Magno. O segundo Renascimento, no século XII, é marcado pelo progresso agrícola, pelo desenvolvimento das cidades e pelo início das realezas nacionais. O Renascimento dos séculos XV e XVI é um período importante no campo das artes e na afirmação das nações, mas nos planos econômico e ideológico permanece essencialmente rural e marcado pelo cristianismo, ainda que no século XVI ele se divida em dois ramos: a Igreja Católica e a Reforma.
O senhor escreve que os grandes personagens da Idade Média são “santos, reis, Papas e teólogos”. Que condições permitem a ascensão dessas figuras históricas?
Os santos são uma novidade, uma criação do cristianismo; os reis são uma nova figura de chefe político; os Papas lideram a Igreja cristã; os teólogos substituem os filósofos da Antiguidade. Portanto, Deus como criador da Humanidade e do mundo é o principal mote do pensamento da época. A ascensão dessas categorias foi possibilitada, por um lado, pela cristianização da maior parte da Europa e, por outro, pela constituição de Estados que, ao longo da Idade Média, tornaram-se nações. Se pensamos nas obras que parecem dominar o pensamento cristão medieval, o que vem à mente são as sumas teológicas. E se há uma obra que se afirma como sua coroação, é a “Suma Teológica” de São Tomás de Aquino.
“Homens e mulheres da Idade Média” tem um capítulo sobre Francisco de Assis, que o senhor já havia estudado em outro livro. Na sua opinião, o que significa a decisão do cardeal Jorge Mario Bergoglio de adotar como Papa o nome de Francisco? Como o senhor avalia o papado de Bergoglio?
Acredito que, ao escolher o nome Francisco, o cardeal Bergoglio quis retirar da Santa Sé a imagem de riqueza e poder que ela havia adquirido. O caráter único deste nome na lista de Papas nos faz pensar sobre semelhanças entre a situação de crise no mundo atual, principalmente na Europa, e certos traços do avanço da pobreza na Idade Média, no tempo de Francisco de Assis. O gesto de escolher o nome Francisco é, ao mesmo tempo, o resgate de uma tradição de humildade da Igreja e uma concepção original do pontificado.
Há mais homens que mulheres no livro, uma diferença que o senhor justifica dizendo que isso é também “uma representação do lugar que elas ocupavam”. Que lugar era esse?
Embora a mulher não tenha sido tão depreciada na sociedade cristã medieval como costumamos acreditar, é fato que a Idade Média cristã é uma era masculina. A mulher é vista como um ser degradado pela memória do pecado de Eva, e nem a devoção por Virgem Maria é suficiente para mudar isso. A impossibilidade institucional e espiritual de as mulheres exercerem o sacerdócio as rebaixa a uma categoria inferior à dos homens.
Também há poucos artistas no livro (Dante, Giotto e Bocaccio, por exemplo). Mas há toda uma seção dedicada a personagens imaginários, como mitos de origem histórica (Rei Arthur), figuras religiosas (Satã) e lendas populares (o mago Merlin). O senhor explica que é durante a Idade Média que emergem as noções de “autor” e “artista”. Como? E quais são os traços mais fortes do imaginário das sociedades medievais?
A onomástica no mundo dos artistas durante a Idade Média é um assunto delicado. Por muito tempo, o artista é anônimo ou é considerado apenas um artesão. É a partir da difusão da noção de “beleza”, a partir do século XIII, como bem mostrou Umberto Eco [em “História da beleza”, de 2004], que o personagem do artista adquire em certas cidades italianas prestígio social e profissional. O primeiro a se beneficiar disso foi o pintor Giotto (1266-1337), em Florença. O imaginário de qualquer sociedade humana, em qualquer época, reflete a experiência, o pensamento e o sentimento de seus integrantes. Na Idade Média, acrescenta-se a isso um mundo de maravilhas que recupera parte do que chamamos de “cultura popular”, da qual o cristianismo medieval se beneficiou muito. Ao prestígio do homem como criatura à imagem e semelhança do Deus cristão, juntou-se o prestígio dessa dimensão maravilhosa do humano.
O senhor descreve a universidade como “um novo poder” na sociedade medieval. Quem eram seus personagens mais representativos?
Foram os próprios homens e mulheres da Idade Média que concederam à universidade um status de poder equivalente ao do sacerdócio e da realeza. O intelectual da Idade Média se retira do studium monástico da Alta Idade Média para ser formado ou pelas universidades ou pelas novas ordens mendicantes urbanas, sobretudo os franciscanos, ou “frades menores”, e os dominicanos, ou “pregadores”. O nome desta última ordem sublinha o fato de que na Idade Média a oralidade tinha um papel essencial no mundo intelectual, no qual sermões eram tão importantes quanto exercícios universitários.
O senhor define a cidade como “uma grande criação da Idade Média”. Qual é a herança mais importante da cidade medieval para a cidade contemporânea?
A cidade medieval é um centro de produção econômica, principalmente de artesanato. Além disso, é o centro da emergência de uma classe social que surge disposta a governar a si mesma, a burguesia. Mas, com sua tendência de alastramento da pobreza e do crime, é também centro de miséria e delinquência. É ainda um centro festivo, espaço de sociabilidade manifestada na praça pública. A ideia da cidade como grande centro se reforçou até nossos dias.
Em “A Idade Média e o dinheiro”, o senhor observa que a forma como pensamos no dinheiro hoje é “produto da modernidade”. Mas afirma que foi na Idade Média que a busca de indivíduos e Estados por dinheiro começou a ser legitimada. Como o dinheiro era visto na Idade Média?
O dinheiro começou a adquirir na Idade Média um valor e um uso econômico, insuflados pelas cidades, mas também era visto como incitação ao pecado da usura. A cidade medieval estava dividida entre a prosperidade e a condenação do dinheiro. O desejo de não reprimir o progresso econômico e a marcha dos indivíduos rumo à riqueza leva a Igreja e as instituições urbanas a distinguir entre o que há de legítimo na cobrança de juros pelos credores e o uso ilegítimo que fazem dele os usurários. No que diz respeito à poupança e ao uso do dinheiro, a Idade Média evoluiu da itinerância das feiras à estabilidade dos bancos. Esse processo pode ser visto como uma “sedentarização” da vida econômica, simultânea ao desenvolvimento comercial.
O senhor escreve que até o século XII as sociedades medievais eram divididas entre “poderosos” e “fracos”. Depois disso, surge a distinção entre “ricos” e “pobres”. Quais são as consequências dessa mudança?
No início da Idade Média, as distinções são sobretudo institucionais, como aquelas entre senhor e servo. O fato de possuir terras ou não era o critério essencial. Depois, com o desenvolvimento do comércio e a ascensão das cidades, surge a discriminação pelo dinheiro. O pobre substitui o servo. Essa mudança conduz a uma sociedade dominada pelo capitalismo.
“A Idade Média e o dinheiro” retoma o tema de seu primeiro livro, “Mercadores e banqueiros na Idade Média” (1956). Nele, o senhor analisava a “revolução comercial” promovida por essas duas categorias naquele período. Como a análise das origens do capitalismo na Idade Média pode ajudar a compreender a fase atual do capitalismo?
A História é uma sequência de continuidades e mutações — e, raramente, de rupturas. Uma das diferenças essenciais entre a sociedade medieval e a nossa é a industrialização, que alargou muito a base do funcionamento econômico e social, enquanto na Idade Média essa atividade era essencialmente rural, militar e religiosa. A sociedade de classes analisada por Marx no século XIX é muito diferente da sociedade de três estados da Idade Média, composta pelos que pregam, os que lutam e os que trabalham (oratores, bellatores, laboratores). Uma longa mutação conduziu à Revolução Francesa, que inspirou mutações no resto do mundo. A situação social das cidades medievais unia poder político e poder econômico. Hoje, democracia e capitalismo são, acima de tudo, antagonistas.
Fonte: Blog Prosa Online