domingo, 22 de março de 2020

Escritor Maranhense escolhe Mirante da Balaiada para lançar seu livro

Confinement #01 - Goguette confinée sur l'air de Tout doucement de Bibi.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

O NEGRO OLHAR SOBRE A SOCIEDADE MARANHENSE

O negro olhar sobre a sociedade maranhense
Rafaela Pereira*
José do Nascimento Moraes (1882-1958) figura como expressão de destaque entre os intelectuais de seu tempo. Seus escritos ficcionais e ensaísticos abordam as contradições vigentes em seu Estado, sobretudo no tocante às questões raciais. Como cidadão, combateu os preconceitos, não se deixando intimidar por aqueles que não reconheciam o valor de seu trabalho. Crítico ferino, não tinha benevolência com os que se utilizavam da literatura como forma de promoção pessoal, posicionando-se, também, contra a hierarquização de culturas e a supremacia da cultura europeia. Marcado por uma perspectiva irônica e mordaz, seu romance Vencidos e degenerados (1915) é considerado uma das narrativas de maior impacto sobre a escravidão no Brasil e suas consequências, tanto no plano individual e psicológico, quanto em termos sociais. Publicou ainda Puxos e repuxos (1910), em que exercita seu talento de polemista; a reunião de crônicas Neurose do Medo (1923); além dos Contos de Valério Santiago, editados postumamente em 1972. Jornalista comprometido com os desafios de seu tempo, Nascimento Moraes teve forte atuação nos periódicos O Maranhão, Diário de São Luís e O Globo. Foi também professor do Liceu Maranhense e presidente da Academia Maranhense de Letras.
Inspirado pela perspectiva de mudanças políticas no país, especificamente no Maranhão, Vencidos e degenerados constrói outra leitura para a presença entre nós de africanos escravizados e seus descendentes, com ênfase no contexto da abolição e em suas consequências. Utilizando-se de uma linguagem voltada para a fala popular daquela época e com personagens representativos, compõe um painel de rara intensidade sociológica sobre a São Luís do final do século XIX. A narrativa se inicia na manhã de 13 de Maio de 1888, na casa de José Maria Maranhense, espécie de quartel general abolicionista, onde várias pessoas aguardavam a chegada do telegrama com a notícia da aprovação da Lei Áurea. João Olivier, personagem central da trama, é um respeitado jornalista que tem como fonte de sustento as crônicas que escreve para um órgão local. Mestiço, posiciona-se a favor dos cativos e é através de seu olhar que as críticas vão sendo tecidas por toda obra em relação à imprensa e à sociedade maranhense. Nesta passagem percebemos a visão do personagem sobre a abolição:
A liberdade dos negros vem contribuir para o desenvolvimento desta terra infeliz, e dar-lhes novas forças, novos elementos, novos aspectos... Esta fidalguia barata virá caindo aos poucos e o princípio de confraternidade virá acabar com supostas e falsas superioridades do ser, que tem sido um dos mais vis preconceitos da nossa existência política. (MORAES, 2000, p. 67).
Em sua fala, a queda da “fidalguia” acontecerá com abolição e com ela se extinguirão os preconceitos oriundos das classes superiores que, para se manterem no poder, fazem uso extremo da hipocrisia. Seu otimismo em relação à libertação dos negros o faz acreditar que o fim do regime lhes daria condições de progresso e a queda daqueles que tinham sede de poder. É também na figura de Olivier que se encontra um “dos maiores elementos contra a escravidão”. É através de sua fala que percebemos as manifestações indignadas sobre os que realmente precisam trabalhar e os que trabalham por vaidade; e sobre a ausência de reconhecimento da sociedade em relação às pessoas esclarecidas. Pai adotivo de Cláudio, tem a intenção de fazer do menino “um homem de luta” pela própria raça, e não um bacharel ou comendador, mas o filho adotivo deixa dúvidas se estava realmente seguindo as intenções propostas por Olivier.
Cláudio era filho de Andreza e Daniel Aranha, ex-escravos. Perseguido pelos professores e pelos colegas por causa de sua cor, o menino tem a proteção do pai adotivo, que cuida de sua educação com zelo. Olivier era descendente de família tradicional, o que explica seu prestígio nos círculos intelectuais. Porém, bastou tornar suas ideias conhecidas para que fosse perseguido a ponto de ter que sair do Maranhão. Tem como mestre Carlos Bento, jornalista e professor, também afastado da imprensa por razões políticas, o que o obriga a viver de aulas particulares. Fora também professor de Olivier e escreve um panfleto no qual faz uma síntese política e social. Com a morte de Olivier, Claudio termina os estudos no Liceu e começa a dar aulas particulares para ajudar na renda familiar. Segue o exemplo do pai adotivo e se torna jornalista, chegando a fundar o periódico O Campeão, que logo encontrou um rival, O Triunfo, criado pela elite local como resposta. Não demorou muito para que Cláudio também fosse atacado. Como a renda do magistério não era suficiente para as despesas, recebia um auxílio de José Machado. Este, ao saber que Cláudio era amante de Armênia, começa a tratá-lo com indiferença até que deixa de lhe fornecer a preciosa ajuda mensal. O jovem passa a ser novamente perseguido e após ser salvo de uma emboscada por Aranha, seu pai biológico, sai do Maranhão e vai para o Amazonas, onde passa a ocupar elevada posição como jornalista. A sua volta acontece no dia 15 de novembro, no momento em que estão comemorando a Proclamação da República.
Os personagens são construídos através de dualidades: livres e cativos; pobres e ricos; pessoas de famílias tradicionais e pessoas de famílias sem importância social; homens ilustres e homens ignorantes; mulheres de família e mulheres festeiras; entre outros. Os cativos, ao invés de apáticos e submissos, são retratados como homens escravizados que reagem a seu modo às atrocidades praticadas pelas mãos brancas. E são eles que têm amplo desenvolvimento nas ações do romance. São exemplos disso a cena em que D. Amandra, senhora acostumada a aplicar cruéis castigos, leva uma bofetada de sua ex-escrava; das cozinheiras que abandonaram os patrões antes de lhes servirem o jantar; a cena em que os escravos quebram móveis e louças numa expansão de raiva e ódio. Pela figura cômica de Zé Catraia, escravo que é libertado no dia na abolição, o autor ironiza a possibilidade se ser livre mesmo sendo cativo. Catraia é visto por muitos como um bêbado, sem valor, mas tudo vê, tudo ouve e tudo sabe. Era homem de confiança de seu senhor, que sabia de sua inteligência e temia que os seus segredos de contrabando fossem revelados. É através deste personagem que vamos tecendo a imagem de Paletó Queimado, alcunha de José Machado, quando Zé Catraia conta a Cláudio a forma como o português se transformou em homem poderoso. Ex-quitandeiro, torna-se um capitalista por meios duvidosos e figura como representação da corrupção na sociedade. Inescrupuloso e ganancioso, Paletó Queimado representa o arrivismo tão comum naquele momento histórico e, motivado por segundas intenções, chega a oferecer ajuda a Olivier.
Já Carlos Bento – o “intelectual falido” – é afastado da imprensa devido à sua postura ideológica. Por sua fala percebemos a desvalorização do professorado e das pessoas sábias, o parecer sobre a sociedade e a educação, e sua crítica sobre a decadência da lavoura quando descreve a imagem do feitor e analisa o atraso  econômico do Maranhão. Em um diálogo entre ele e João Olivier, este manifesta a sua desilusão quanto a Proclamação da República:
Eu esperava que, depois do 13 de Maio, por que trabalhei tanto; depois do 15 de Novembro, com que me alegrei bastante; esperava que houvesse uma renovação social. Errônea ou acertadamente eu cuidava que a pública administração com luzes mais fortes e puras, tomasse outro caminho que não esse que hoje nos infelicita. (MORAES, 2000, p. 77).
Poucos anos depois da Proclamação da República, Olivier percebe que os negros não melhoraram de condição e continuaram marginalizados socialmente. Para Carlos Bento seria necessário que os ex-escravos e seus filhos fossem alfabetizados, o que lhes permitiria conhecer os seus direitos políticos e saber que mudanças efetivas demoram anos, talvez séculos. Pela fala dos personagens, o romance traça um painel de como ficaram os negros após a abolição, principalmente para aqueles que acreditaram numa possível ascensão econômica e social. Renovação que aconteceu, mas não da forma nem na velocidade como Olivier julgava.
Com refinada ironia o autor apresenta o perfil da sociedade maranhense dos anos iniciais da República fazendo uso de registros próximos do jornalístico. A relação entre o campo literário e o político permite ao autor fazer o retrato de uma cidade onde os letrados, principalmente os que eram negros, não tinham importância devido à sua condição. Para alguns críticos, Vencidos e degenerados se assemelha ao O Mulato, de Aluísio Azevedo, mas é preciso ressaltar as diferenças presentes em ambas as obras, a começar pela forma como se posicionam frente às desigualdades raciais. Pode-se dizer também que tal comparação ocorre devido ao fato de Moraes, em sua obra, abordar uma realidade social, descrever os seus personagens de forma minuciosa, tanto física quanto psicologicamente, discutindo questões que certamente eram polêmicas para a época.
Afinal, quem seriam os vencidos e os degenerados do Maranhão? A respeito do negro na literatura brasileira, sabemos que sua representação, via de regra, o reduz a ser permanentemente subalterno. Todavia, Nascimento Moraes soube muito bem como romper com esta prática secular ao construir uma obra típica de quem pensava à frente de seu tempo. Suas indagações permanecem vivas se inquietam a todos os que procuram as razões e os sentidos das desigualdades contemporâneas. 
Referência
MORAES, Nascimento. Vencidos e degenerados. 4. ed. São Luís: Centro Cultural Nascimento Moraes, 2000.
* Rafaela Pereira é graduanda da Faculdade de Letras da UFMG.

4º Ciclo | Os tambores de São Luís: 40 anos da obra-prima de Josué Montello

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A CHAMA PLURAL (por Eduardo Lourenço)






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'Não se pode dizer de língua alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais exacto. É ela que nos inventa. A língua portuguesa é menos a língua que os portugueses falam, que a voz que fala os portugueses. Enquanto realidade presente ela é ao mesmo tempo histórica, contingente, herdada, em permanente transformação e trans-histórica, praticamente intemporal. Se a escutássemos bem ouviríamos nela os rumores originais da longínqua fonte sânscrita, os mais próximos da Grécia e os familiares de Roma. Juntemos-lhe algumas vozes bárbaras das muitas que assolaram a antiga Lusitânia romanizada, uns pós de arábica língua, que espanta não tenham sido mais densos, e teremos o que chamámos, com apaixonada expressão, o “tesouro do Luso”.

Na nossa Idade Média o estatuto da língua era, como o das outras falas cristãs, um “falar” sem transcendência particular. Com o Renascimento, abertura sobre o universal segundo o modelo greco-latino, paradoxalmente, os “falares” europeus tornam-se “língua”, e a língua, signo privilegiado de identidade. Nascem os discursos hagiográficos da língua nacional, da bela língua italiana para Bembo, da altiva fala castelhana para Nebrija, da polida língua francesa para Du Bellay, da nossa nobre e suave língua portuguesa para Fernão de Oliveira, Barros, António Ferreira que a converte em objecto de culto e de orgulho. Diz-me que língua falas, dir-te-ei o estatuto que tens. Nenhum destes endeusamentos ou apologias da dignidade das línguas nacionais é inocente. Fazem parte do processo histórico em que culmina o sentimento nacional.

Descobre-se que a língua não é um instrumento neutro, um contingente meio de comunicação entre os homens, mas a expressão da sua diferença. Mais do que um património, a língua é uma realidade onde o sentimento e a consciência nacional se fazem “pátria”.

Ainda vem longe o tempo em que para cada uma das línguas dominantes da cultura europeia se torne também claro que uma língua não é um dom do céu, destinado à vida eterna, mas um tesouro que deve ser defendido da usura do tempo e das pretensões das outras a ocupar os espaços sem defesa.

A língua é uma manifestação da vida e como ela em perpétua metamorfose. Não há expressão mais melancólica que a tão comum e tão pouco meditada de “língua morta”, nem maravilha maior que a da sua ocasional ressurreição. Como o universo, uma língua viva deve estar em perpétua expansão, ao menos no seu espaço interior, sob pena de se tornar ainda em vida “língua morta”. Essa vitalidade não releva apenas da mera ordem voluntarista ou do ritualismo conservador de academias ou profissionais das nobres ciências da gramática, ou da filologia. É, sobretudo, obra dos que a trabalham ou a sonham como exploradores de um continente desconhecido: romancistas, dramaturgos, poetas, sobretudo, que não apenas os que assim se chamam mas todos os que na quotidiana vida inventam sem cessar as expressões de que precisam para não se perder tempo que passa, do mundo que se renova e transfigura.

É de supor que os homens se tenham inventado como seres falantes por um acto mágico, por um “fiat” ainda hoje misterioso que cada palavra recomeça como se o fogo de hoje se ligasse ao fogo original por uma cadeia de chamas que se ateassem umas às outras. Essa magia original é ao mesmo tempo um desafio e um exorcismo. O destino de cada cultura está intimamente ligado a esses dois papéis que toda a língua encarna. As culturas que o esquecem são as que têm já, dentro de si, as primícias do seu esgotamento. Por graças da História, a língua portuguesa encontrou-se, em dado momento, em condições de elevar esse desafio, esse exorcismo conaturais a toda a fala, a exercício, quase se podia dizer, a missão vital, amalgamando como poucas o destino da sua cultura ao destino da sua língua. Essa aventura podia ter sido, como outras europeias, apenas um exemplo mais da violência colonizadora clássica. Foi também isso, mas foi algo mais e mais importante.

A celebrada alma portuguesa pelo mundo repartida, de camoniana evocação, foi, sobretudo, língua deixada pelo Mundo. Por benfazejo acaso, os portugueses, mesmo na sua hora imperial, eram demasiado fracos para “impor”, em sentido próprio, a sua língua. Que ela seja hoje a fala de um país-continente como o Brasil ou língua oficial de futuras grandes nações como Angola e Moçambique, que em insólitas paragens onde comerciantes e missionários da grande época puseram os pés, de Goa a Malaca ou a Timor, que a língua portuguesa tenha deixado ecos da sua existência, foi mais benevolência dos deuses e obra do tempo que resultado de concertada política cultural. Sob esta forma, um tal projecto seria mesmo anacrónico. Nenhum autor português, nem estrangeiro, escreveu acerca da nossa acção uma obra como “a conquista espiritual do México”, pois não tivemos nenhum México para conquistar e lusitanizar.

O derramamento, a expansão, a crioulização da nossa língua foram como a das nossas “conquistas”, obra intermitente de obreiros de acaso e ganância (da terra e do céu) mais do que premeditada “lusitanização” como nós imaginamos – porventura enganados – que terá sido a romanização do mundo antigo ou a francisação e anglicisação dos impérios francês e britânico.

Quiseram também as circunstâncias – na sua origem pouco recomendáveis – que a nossa língua europeia, em contacto com a africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na sua versão caseira, para tomar esse ritmo aberto, sensual, indolente, do português do Brasil ou o tom nostálgico da de Cabo Verde.

A miragem imperial dissolveu-se há muito. Da nossa presença no mundo só a língua do velho recanto galaico-português ficou como elo essencial entre nós, como povo e como cultura, e as novas nações que do Brasil a Moçambique se falam e mutuamente se compreendem entre as demais... Uma língua não tem outro sujeito que aqueles que a falam, nela se falando. Ninguém é seu “proprietário”, pois ela não é objecto, mas cada falante é seu guardião, podia dizer-se a sua vestal, tão frágil coisa é, na perspectiva do tempo, a misteriosa chama de uma língua.

Mas como duvidar que a longa cadeia dos mais exemplares e ardentes dos seus guardiães, aqueles que tornaram sensível o que nela há de imponderável, de Fernão Lopes a Gil Vicente, de Camões a Vieira, de Castro Alves a Pessoa, de Machado de Assis a Guimarães Rosa, ou de Baltazar Lopes a José Craveirinha, se apague ou se estiole? Houve épocas de depressiva configuração em que não era possível pensar no futuro da nossa plural e una fala portuguesa, sem alguma melancolia.

Hoje, não temos motivos para imaginar que, em prazo humanamente concebível, o seu destino seja o dos famosos versos da Tabacaria de que o tempo apagará o traço e a memória. A pluralizada língua portuguesa tem o seu lugar entre as mais faladas no Mundo. Isso não basta para que retiremos dessa constatação empírica um contentamento, no fundo, sem substância. Se contentamento é permitido, só pode ser o que resulta de imaginar que esse amplo manto de uma língua comum, referente de culturas afins ou diversas, é, apesar ou por causa da sua variedade, aquele espaço ideal onde todos quantos os acasos da História aproximou, se comunicam e se reconhecem na sua particularidade partilhada. Não seria pequeno milagre num Mundo que sonha com a unidade sem alcançar outra coisa que o seu doloroso simulacro.'


'Eduardo Lourenço (São Pedro de Rio Seco, 1923) é um professor e filósofo português. Entre 1953 e 1965, foi leitor de Cultura Portuguesa na Alemanha e em França. Começou como maître assistant na Universidade de Nice, até que se tornou jubilado pela mesma, em 1988. Em 1989, assumiu funções como conselheiro cultural junto da Embaixada Portuguesa em Roma e, desde 1999, ocupa o cargo de administrador da Fundação Calouste Gulbenkian. Ganhou o Prémio Pessoa em 2011 e, da sua obra, destacam-se: Heterodoxia (1949); Nós e a Europa ou as Duas Razões (1988) e Os Militares e o Poder (2013).'


In Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/antologia/a-chama-plural-/678 [consultado em 17-02-2020]

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