domingo, 8 de janeiro de 2012

Quando o Homem-Coelho encontra a Mulher-Gazela


Nova tradução do “Kama Sutra” demonstra que o clássico hindu é bem mais do que um manual de posições sexuais
por Armando Antenore

A série com 12 fotografias mal iluminadas, que não disfarçam o amadorismo de quem as tirou, espalha-se pela internet e, de relance, lembra uma inofensiva história infantil. As primeiras imagens limitam-se a apresentar os personagens da “trama” que se acompanhará em seguida, todos representados por pequenos bonecos de pelúcia. O simpático Ursinho Puff – ou Pooh, como informa a legenda em inglês – lidera a turma. Alaranjado, veste uma singela camisa cor-de-rosa e tem as feições ingênuas que o caracterizam desde 1926, quando o escritor britânico Alan Alexander Milne o inventou. Depois, vêm três amigos de Puff, um mais fofo do que o outro: Leitão (ou Piglet,), Tigrão (Tigger) e Bisonho (Eeyore), o burro. Travessos, os animaizinhos parecem doidos para brincar. De pega-pega? Esconde-esconde? Duro ou mole? Não exatamente... Logo na quinta foto da sequência, Puff surge deitado de costas sobre uma superfície branca e lisa, que remete à maciez de um lençol. Entre as patas traseiras generosamente abertas, aconchega o focinho atrevido de Leitão. Na sexta imagem, Bisonho está de quatro e dá a impressão de não ser nem um pouco bisonho... “Qual o problema?”, você indagará. “Burros estão sempre de quatro.” Estão, mas dificilmente permitem que um ursinho tão sapeca quanto Puff coloque-se atrás deles e se transforme no mais diligente dos garanhões. Da sétima à 12a foto, a baderna esquenta um bocado, demonstrando que a rotina no Bosque dos Cem Acres, onde o quarteto mora, anda bastante movimentada. Ah, sim, a farra recebeu o título de O Kama Sutra do Puff (The Kama Sutra of Pooh).
O nome, dispensável frisar, não prima pela criatividade. Há tempos, os ocidentais associam o Kama Sutra – clássico da literatura hindu – à libidinagem. No mercado editorial, o antiquíssimo compêndio se tornou sinônimo de sexo extravagante e atlético. Ou melhor: de manual fartamente ilustrado, em que casais se contorcem de inúmeros jeitos para driblar o tédio do papai-e-mamãe, como se praticassem uma espécie de ioga obscena. Das nove adaptações que a argentina Alicia Gallotti publicou, por exemplo, a mais nova promete ensinar “101 posições sensuais”. Já a de Nicole Bailey oferece “52 posições ardentes”. Na própria Índia, o termo kama sutra se banalizou e virou marca de camisinha.
O livro original, porém, revela-se bem menos acrobático e nada vulgar. Escrito em sânscrito por volta do século 3, possui 36 capítulos, distribuídos ao longo de sete partes. Deles, só um discorre sobre as posições adotadas pelos parceiros durante o sexo. São 19 no total, muitas triviais e cada uma detalhada exclusivamente com palavras. Não há ilustrações. Tal capítulo pertence à segunda parte, que também descreve outras formas de contatos íntimos: os abraços, os beijos, as mordidas e até os arranhões, tapas ou socos desferidos no auge da excitação. As demais partes abordam diferentes facetas da vida a dois e do cotidiano, nem sempre de cunho sexual.
No Brasil, há décadas, é possível adquirir o Kama Sutra completo, ainda que os exemplares nacionais derivem invariavelmente de edições em inglês. A primeira tradução do sânscrito para o português chega apenas agora às livrarias do país, por iniciativa do selo Tordesilhas, que integra a editora Alaúde. Trata-se, no entanto, de uma versão parcial. Embora ostente o nome Kama Sutra na capa, o volume de 96 páginas abriga unicamente os dez capítulos que compõem a segunda parte do clássico, ilustrados pelo artista portenho Alfredo Benavídez Bedoya (confira alguns de seus desenhos ao longo desta reportagem). Mesmo assim, o lançamento merece toda a atenção. O esforço pioneiro dos tradutores Daniel Moreira Miranda e Juliana Di Fiori Pondian, ambos egressos da Universidade de São Paulo (USP), resultou num texto enxuto, preciso e elegante, que traz expressivas mudanças em relação àqueles oriundos do inglês.
Adeptos do hinduísmo, os indianos contemporâneos do Kama Sutra acreditavam que só mereceriam alcançar o moksha – quer dizer: escapar dos ciclos sucessivos (e dolorosos) de nascimento, morte e reencarnação para atingir a comunhão plena com o Universo – se apoiassem a existência carnal numa tríade: as práticas espirituais (dharma), a aquisição de bens materiais (artha) e o cultivo dos prazeres (kama). As três metas deveriam estar igualmente na mira de qualquer indivíduo. Entretanto, ninguém poderia esquecer que o dharma supera o artha em importância e que o artha supera o kama. “Quem exercitar a tríade desfrutará de felicidade neste mundo e no vindouro”, pregava-se à época.
O Kama Sutra nada mais é, portanto, do que uma coletânea de reflexões e conselhos acerca do kama. Literalmente, o título significa “aforismos sobre o amor”. Mas “amor”, no caso, representa toda sorte de gozo: os do corpo, do intelecto e, em consequência, da alma. Afinal, para os hindus do século 3, não havia prazer fora da dimensão religiosa, uma vez que ler poemas, namorar, comer ou beber pressupunha colocar um tijolinho na tríade que conduzia à transcendência.
Papagaios, galos e perdizes
Do sábio que concebeu o Kama Sutra, se conhece muito pouco. É certo que habitava o norte da Índia, que vivia em castidade quando criou o livro e que carregava o sobrenome Vatsyayana. O prenome, infelizmente, se perdeu. Valendo-se de um estilo direto, sem nenhum rebuscamento, procurou fazer um guia francamente didático, repleto de categorizações e quase tão objetivo quanto os que hoje classificamos de científicos ou técnicos. Nos 36 capítulos, trechos em prosa abrem pequenos espaços para explanações em versos. O escritor, além de expor as próprias ideias a respeito dos assuntos que analisa, cita as de vários outros especialistas, como Babhravya e Auddalaki Svetaketu, provavelmente um autor mítico. Depois do Kama Sutra, a Índia presenciou o aparecimento de, no mínimo, seis tratados similares. O mais famoso entre nós, do Ocidente, é o Anunga Runga (O Palco do Amor), redigido pelo poeta Kullianmull durante o século 15 ou 16.
Tudo leva a crer que o trabalho de Vatsyayana tinha por alvo homens e mulheres de elite, cultos e refinados, com tempo e recursos para saborear a vida. Mal começa, o livro recomenda que os leitores o estudem em paralelo à aprendizagem de 64 artes. A simples enumeração delas já atiça a imaginação e os sentidos. A lista abarca desde itens previsíveis – o canto, a dança, a culinária, o corte e a costura, a ginástica, a jardinagem, a pintura, o desenho, a carpintaria e a arquitetura – até a habilidade de resolver enigmas, de pronunciar frases difíceis, de deduzir, de apreciar dicionários, de preparar limonadas, sorvetes e licores, de confeccionar brincos, de arrumar camas, de colorir dentes, unhas, cabelos e roupas, de aplicar essências na pele, de ladrilhar o chão, de produzir flores artificiais, de fazer o algodão parecer seda e de tocar música em copos com água.
O Kama Sutra explicita, ainda, a rotina ideal dos chefes de família. Indica onde devem morar, de que maneira devem dispor adornos e móveis pela casa, quais hábitos de higiene devem adotar, de que modo devem se divertir e quando devem se alimentar ou tirar um cochilo. Entre as tarefas diárias que lhes atribui, destaca-se promover brigas de galos, perdizes ou carneiros e ensinar papagaios a falar.
Mas o melhor do livro está mesmo nos trechos em que Vatsyayana ataca de conselheiro erótico-afetivo (veja quadros). Não bastassem as considerações sobre carícias e posições sexuais, o autor receita afrodisíacos e substâncias capazes de aumentar o pênis ou alargar a vagina. Sugere igualmente uma série de feitiçarias que, num átimo, tornariam irresistível a mais insossa das criaturas. Também classifica os humanos de acordo com a dimensão de seus genitais. Os cavalheiros podem ser “coelhos”, “touros” ou “cavalos”, em ordem crescente de tamanho. As damas, “gazelas”, éguas” ou “elefantas”. Os capítulos que discutem o casamento esclarecem como os homens devem agir para arranjar uma boa noiva ou seduzir a mulher alheia e como as esposas devem se comportar diante dos maridos. Por fim, o Kama Sutra traça um minucioso e intrigante perfil das cortesãs – “aquelas que extraem do sexo o prazer e o próprio sustento”.
A sequência em que Vatsyayana relata os momentos derradeiros de um encontro íntimo é, talvez, a mais bonita do guia. “Tão logo o desejo se apaga”, escreve, “o casal vai para a sala de banhos sem coragem de se olhar. Estão envergonhados. Mas, quando retornam de lá, a timidez desaparece. Os dois se sentam num lugar aprazível e mascam a noz-de-areca. Ele passa óleo de sândalo no corpo dela, diz palavras doces e lhe oferece água. Em seguida, os parceiros se servem de petiscos, sopas, mingau de arroz, grelhados, sucos, mangas, carne-seca e frutas cítricas com açúcar mascavo. Ela se deita no colo dele e contempla a Lua. Enquanto narra histórias para agradá-la, ele lhe aponta estrelas e constelações.
”Na opinião da acadêmica norte-americana Wendy Doniger, estudiosa do hinduísmo e do sânscrito, o Kama Sutra surpreende por não se mostrar tão machista como outros livros do período. Há, sim, trechos em que Vatsyayana preconiza ações violentas contra as mulheres. Um dos mais gritantes: se uma virgem não aceita “contrair núpcias”, o autor afirma que, após esgotar as tentativas de conquistá-la, o pretendente pode raptá-la e deflorá-la. Em contrapartida, o texto rejeita a tradição já no terceiro capítulo da primeira parte, quando Vatsyayana aconselha às jovens lerem sempre o Kama Sutra, ainda que “alguns sábios” as desautorizem e aleguem que não lhes cabe aprender “qualquer tipo de ciência”. Do mesmo jeito, aceita que as moças façam sexo oral, apesar de “os mestres” proibirem o ato, sob o pretexto de as infratoras levarem a desgraça àqueles que as beijarem. Também aprova o lesbianismo em determinadas circunstâncias e se preocupa com o orgasmo feminino. Ensina, inclusive, os homens a proporcioná-lo e reconhecê-lo. De quebra, no capítulo 8 da segunda parte, não vê problema em as amantes assumirem as rédeas de uma transa e incorporarem o papel masculino, ficando por cima do parceiro.
Lingam e yoni
Foi o lendário sir Richard Burton (1821-1890) quem trouxe o clássico hindu para o Ocidente. Célebre por descobrir as nascentes do rio Nilo na África e traduzir As Mil e Uma Noites, pérola da literatura árabe, o explorador e linguista britânico desafiou a rígida moral da Era Vitoriana e lançou a versão inglesa do Kama Sutra em 1883. Embora a assine sozinho, sabe-se que três indianos o ajudaram a destrinchar o compêndio. Praticamente a totalidade das edições brasileiras advém do trabalho deles. Nadando contra a corrente, os paulistanos Daniel Miranda, 41 anos, e Juliana Pondian, 28 – que, entre 2003 e 2006, dividiram a mesma classe de sânscrito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP – utilizaram apenas o original de Vatsyayana para empreender a tradução da segunda parte. A tarefa lhes tomou cinco meses.
A versão de ambos se distingue da britânica em poucos, mas eloquentes aspectos. O principal: no século 13, um autor de nome Yasodhara escreveu o livro Jayamangala, que disseca cada parágrafo do Kama Sutra. Burton conhecia tal análise. Por isso, quando transpôs o texto de Vatsyayana para o inglês, acrescentou-lhe alguns comentários de Yasodhara sem deixar claro que o fizera. Daniel e Juliana também citam trechos do Jayamangala, só que de maneira explícita, em notas de rodapé.
Outras distinções interessantes:
• Sempre que precisava mencionar “pênis” ou “vagina”, Burton evitava os equivalentes em inglês. Preferia trocá-los respectivamente por lingam e yoni. No hinduísmo, as palavras em sânscrito se referem à genitália do deus Shiva e de sua segunda mulher, Parvati. Ocorre que Vatsyayana nunca usa o termo yoni e raramente emprega lingam como sinônimo de “pênis”. Em geral, para designar os órgãos sexuais, lança mão de um substantivo neutro, jaghana, que significa pélvis ou quadris. Os tradutores de São Paulo optaram por redigir “pênis” e “vagina” quando necessário.
• Originalmente, o Kama Sutra chama os homossexuais masculinos de “pessoas do terceiro sexo”. Daniel e Juliana agem de modo idêntico e avisam, numa nota de rodapé, que a qualificação identifica tanto os gays travestidos de mulher quanto os não travestidos. Burton, porém, substituiu “pessoas do terceiro sexo” por “eunucos”.
• Vatsyayana diz que, durante o coito com homens, as moças podem se valer de “instrumentos artificiais” caso queiram usufruir de mais prazer. A dupla paulistana mantém o sentido da frase. Já o britânico traduziu “instrumentos artificiais” como “drogas”.
O que explica as diferenças? “Possivelmente, Burton censurou por conta própria as expressões que julgava menos palatáveis para os europeus do século 19”, arrisca Daniel. De qualquer maneira, tal qual os brasileiros, o explorador inglês preservou intacto um trecho que resume à perfeição o espírito de todo o Kama Sutra: “O terreno dos manuais serve enquanto o desejo é baixo. Mas, quando a roda da paixão gira, não há regras nem ordem”.
O LIVRO
Kama Sutra, de Vatsyayana. Tradução de Daniel Moreira Miranda e Juliana Di Fiori Pondian. Selo Tordesilhas, 96 págs., preço a definir.

Fonte: Bravoonline

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