Reproduzo aqui um excelente artigo do nosso querido amigo, professor Jorge Leão, acerca de importante reflexão filosófica sobre a fé e a religião em nosso tempo. Saboreiem!
Ainda vigora entre nós um discurso religioso amortecedor das reais implicações da vida. Nos meios católicos e protestantes, estatisticamente os grandes representantes do cristianismo no Ocidente, é possível ainda ouvir-se expressões como “céu, inferno e purgatório” como lugares, dimensões físicas, de caráter póstumo, isto é, espaços geográficos situados além da morte. Vigora ainda a triste idéia de que a morte, por si mesma, seria capaz de amenizar as culpas e máculas de alguém, pelo simples fato de desejarmos que um ente querido, já falecido, esteja na eternidade, ao lado de Deus, como a dar a ele um prêmio automático.
São visões de Deus bastante infantis, que endossam uma relação de profundo distanciamento com a realidade. Muitos segmentos intitulados “cristãos” promovem atualmente uma liturgia sensualista, onde as pessoas precisam de um manto branco, ou de medalhas no peito, ou mesmo das propagadas bênçãos. É impressionante como há bênçãos hoje nos lembretes ao final das liturgias; há bênçãos para tudo, para garganta mal curada, para empresários falidos, para filhos que irão fazer o concorrido vestibular, ritos especiais onde se encontram velas com poderes de expulsar os males que se fincam na casa dos devotos, corredores abençoados por gritos e êxtases, as romarias e caravanas para verem formigas que tecem a face de Maria em folhas caídas pelo chão, peregrinações e sacrifícios a santuários exigindo esforços corpóreos ultra-humanos, e tantas outras proclamações de crença ritualista, que em nada aprofunda o amor e a justiça, os pilares centrais da mensagem de Jesus de Nazaré para a vida concreta, sem disfarces pretensamente imaculados ou estratégias psicológicas de sedução pelas fraquezas ou necessidades materiais de quem neste tipo de crença adentra. Fato este que facilita por demais a entrada neste falso céu geográfico, que nos distancia da mensagem de Jesus de Nazaré.
Isto é, em muitos discursos religiosos de hoje há práticas de alienação patrocinadas por televisão e rádio, que não fazem nada mais que fabricar ilusões e mentiras para o povo, pois, nestes lugares, não interessa a verdade, mas uma manutenção garantida de benesses e privilégios com o poder político constituído. Assim, vemos também denominações religiosas das mais variadas origens proclamando nada mais do que marketing religioso, muito bem elaborado por sinal, apenas com o intuito de ter já aqui na terra o desejado céu sem dívidas, problemas e contradições, como prega há séculos os poderes religiosos que se dizem cristãos. É um céu que o ego fabrica. É ganhar na loteria de Deus. É ter sozinho a mega-sena acumulada por anos e anos de serviços prestados à igreja do Senhor. A recompensa então é o justo prêmio, e um lugar no céu, a vitória merecida.
Mas falar disso em público, e pior ainda dentro das igrejas, amedronta um vasto segmento de prosélitos que julgam e condenam a quem o faça de “herege”, ou de “falso profeta”. A reação hoje é tão violenta quanto nos tempos de Jesus ou na Idade Média, apenas a forma mudou e se aperfeiçoaram os métodos. Não se acendem mais fogueiras, mas se impõe o silêncio àqueles que porventura ousarem transpor os limites da crença institucional e adentrar fundo no Evangelho do Cristo. Proíbe-se a publicação de livros de teólogos considerados desobedientes e perniciosos. Cala-se a voz dos pastores que andam ao lado dos pobres, e contra o poder dominante dos chefes e autoridades que se sentam nas primeiras poltronas dentro das catedrais. Infelizmente, percebemos que permanecer preso a um discurso marcado por interesses humanos estreitos e opressores sempre foi uma marca histórica das religiões cristãs no Ocidente, isso, como sabemos, desde Constantino Magno, no início da falsificação da mensagem do Cristo em doutrina religiosa, com o Edito de Milão, em 312 d.C. Mas, como se sabe pelo Evangelho, o medo só nasce da ignorância, e todo mal se abate àquele que desconhece que a mensagem do Reino de Deus não possui amarras com a ideologia da culpa, da punição ou de um falso céu póstumo. O Mestre já advertira: “Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-vos o Reino!” (Cf. Lc 12, 32), e ainda: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Cf. Jo 8, 32).
Entretanto, para muitos líderes religiosos ditos “cristãos”, seduzidos pela situação cômoda de gozar de um status social privilegiado, não seria interessante proclamar a verdade às claras. Isso desmoronaria um castelo de cartas armado há séculos para enganar as massas, inviabilizando a elaboração de uma liturgia dominical repleta de sensacionalismos, como a dizer: “esperem mais um pouco, rebanho obediente, Jesus já está chegando”. Enquanto isso, nós, como Pedro em suas negações, covardemente esquecemos que este mesmo Jesus causou divisões em seu tempo (Cf. Lc 12, 51; Mt 10, 34), a começar pela própria estrutura religiosa do templo de Jerusalém (Cf. Jo 9, 13-41; Mt 23, 13-32), responsável pela conspiração de seu assassinato (Cf. Mt 26, 1-5). Mas, como se observa hoje, é mais cômodo dizer que Jesus veio ao mundo para padecer por nossos pecados, como ovelha obediente aos seus algozes, do que trazer uma mensagem de libertação integral ao ser humano, a partir do livre-arbítrio de cada um, e da responsabilidade em assumir tal decisão, a que Jesus chama de “carregar a sua cruz” (Cf. Lc 14, 27). É mais fácil proclamar o martírio do cordeiro (como o fez Paulo de Tarso em sua carta aos Romanos, ver Rm 5, 8-10) do que caminhar passo a passo com ele rumo ao Gólgota. Assim, entra ano e sai ano e os discursos sobre a morte e paixão de Jesus se repetem para manter o mito oportuno do bode expiatório. É importante que alguém morra para amenizar nossas culpas e nos livrar do inferno. É oportuno administrar a mentira, para receber um prêmio celestial depois da morte, onde todos os que proclamaram e seguiram a mesma mentira se encontrarão, segundo o seu desejo, para dizer: “viram como foi necessário todo aquele suplício na terra? Afinal de contas, onde estamos agora? No céu... E aqueles arruaceiros, os hereges, inimigos da igreja? Todos no inferno, que é o lugar dos que desobedecem a Deus e aos seus santos ministros!”...
Enquanto isso, na periferia do mundo o diabo anda solto, e o povo empobrecido permanece excluído das igrejas em seus cultos dominicais, com sua voz calada pela fome, pelo tráfico de drogas, pela morte de crianças por desnutrição, pela falta de escolas públicas e hospitais que atendam às suas necessidades materiais míninas, por doenças estrategicamente proclamadas como “incuráveis”, enfim, por calçadas invadidas pelo esgoto mal-tratado de nossas orações dominicais. Vejamos, então, que tipo de pregação nós estamos a seguir em nossos encontros dominicais. Não percamos de vista que “não existe discípulo superior ao mestre, nem servo superior ao seu senhor” (Cf. Mt 10, 24). Por isso, toda garantia de um céu exclusivista, fechado em seus dogmas e em suas colunas de bronze e calçadas de mármore, serve justamente para distanciar a mesma massa faminta da raiz de seus problemas, a saber, o egoísmo humano, manifestado historicamente pelo sistema capitalista, dominante a partir das grandes navegações européias, empreendidas com o aval do catolicismo romano e depois pelo vínculo sócio-econômico com o protestantismo, a partir do século XVI, vindo a dizimar povos, culturas e tradições em nome de um falso Deus.
Ora, como se observa, o discurso sobre o céu geográfico constitui apenas uma das inúmeras facetas de domínio ideológico religioso contemporâneo, que é muito mais violento que a morte na fogueira medieval, pois passa sutil e silenciosamente de geração em geração, a cada novo discurso mentiroso que se fabrica dentro das igrejas, reproduzindo, a partir das crianças, a imagem de uma recompensa final todo o bem que fizermos aqui na terra. Com isso, a liberdade de proclamar a verdade foi perdida, e hoje se encontra completamente calada, no momento em que se optou pelo poder político, e por todos os privilégios advindos dos anéis de ouro nos dedos e da cruz pendurada na parede de nossas repartições públicas. É bem mais interessante para o ego, que é alimento pelo poder, pelo ter e pelo prazer (Cf. Mt 4, 1-11; Lc 4, 1-13), ser aclamado como autoridade e representante oficial de Deus na terra, e como vínculo de aproximação com o próprio Deus, por ter um cargo dentro de uma hierarquia eclesiástica. Isso sempre encheu os olhos dos que se deixam seduzir pelas tentações do deserto do ego, afastando-se do Mestre de Nazaré, que, como nos diz o Evangelho, “não tinha onde reclinar a cabeça” (Cf Mt 8, 20), e que enxugou os pés de seus discípulos, e proclamou: “se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos” (Cf. Mc 9, 35). Essas verdades, para serem libertadoras, precisam partir de alguém que não tenha compadrio com o dinheiro, com o prestígio e com a imaculada bajulação das autoridades farisaicas que continuam esperando seu lugar no céu, certamente, pela última reforma no teto da catedral da cidade. Vejamos e escutemos o Evangelho do Cristo, estando atentos à voz do Mestre: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Cf. Mt 6, 24a).
Por isso, assim como nos ensina o Evangelho, o céu é um estado de espírito, de nossa consciência, e está dentro de cada um de nós e no meio de nós (Cf. Lc 17, 20-21), pela nossa livre adesão ao amor e à justiça, assim como o inferno de nossas culpas e pecados. Nós mesmos criamos nosso inferno, e nós mesmos saímos dele. Nós mesmos criamos condições de céu, e nós mesmos as desfazemos. O estado de céu só terá real valor se for compreendido a partir de nossas atitudes e de nossas ações, quando dizemos sim ao amor, à justiça e à fidelidade ao projeto de Jesus de Nazaré. Por isso, o Mestre proclama o amor a Deus e ao próximo como a si mesmo, como os pilares de toda aproximação com o Reino de Deus (Cf. Mc 12, 28-34). Não nos iludamos com o infantilismo de um céu pronto em algum lugar pós-morte, pois ele é construído pela consciência do indivíduo transformado e pelo seu vínculo com a comunidade, que atende ao chamado de seguir e proclamar como irmãos o Reino de Deus, com todas as implicações que tal decisão oferecer, pois seremos conhecidos pelos frutos que dermos (Cf. Mt 7, 20) e pelo amor com que nos amarmos (Cf. Jo 13, 35).
Em Jesus, o Reino de Deus inicia-se com a santificação do Nome de Deus, e se manifesta pelo cumprimento de sua vontade, tanto na terra como no céu (Cf. Mt 6, 9). Ele não é feito de ritos ou imagens externas, para satisfazer a vontade de acolhimento daqueles que se sentem abandonados ou mal-amados pelos outros, pelo simples fato de desejarem que todos reconheçam que ele ou ela é cristão ou cristã, pelo simples fato de estar ligado a alguma igreja institucional. Deus vê a intenção em segredo (Cf. 6, 16-18), não o calo dos joelhos em dias de procissão. Deus é conhecido no silêncio de nossa conversão diária, não nos gritos evasivos de nossos choros e alaridos psicológicos. O Reino de Deus é dom gratuito, não exige sacrifícios, longas caminhadas ou feitos mirabolantes, para chamar atenção de quem sobrevive de holofotes (Cf. Lc 11, 39-48). O céu de Jesus, não aquele fabricado por muitos discursos dominicais de hoje em dia, é o céu do serviço, que não se importa em propagar em rede de televisão curas milagrosas, mas de verdadeiramente promover uma mudança radical de atitude no interior de cada pessoa. Por isso, a mensagem de Jesus de Nazaré se fundamenta na morte do grão de trigo (Cf Jo 12, 24), isto é, de nosso velho homem, ainda aprisionado e controlado pelo desejo de posses e reconhecimento social. A purificação da alma somente ocorre com a transformação da mente. E a isso chamamos de Reino de Deus entre os homens e mulheres de boa vontade. Portanto, as ações fecundadas pelo amor serão naturalmente as conseqüências dessa adesão, livre e consciente, ao projeto de Jesus de Nazaré. A isso então chamamos de “céu”.
Jorge Leão
Professor de Filosofia do IFMA e membro do Movimento Familiar Cristão em São Luís – MA.