domingo, 15 de fevereiro de 2015

Cultura brasileira, Cultura mestiça (por Francisco Weffort)

Francisco Weffort (professor emérito da USP, cientista político e ex-ministro da Cultura







Publicado como apresentação da exposição organizada por Emanuel Araujo sobre o tema “Para Nunca Esquecer”, realizada em 2001.
É fácil perceber, na cultura brasileira, o encontro entre a poesia e o samba. Mais difícil é reconhecer o encontro do negro com as formas culturais ditas eruditas, como a literatura, a música clássica e as artes plásticas. É que o samba é um fenômeno recente, que se mede por décadas, enquanto a presença do negro em nossa história cultural se mede com a escala dos séculos. O samba nasceu às vésperas do movimento modernista, no início do século XX, nas preliminares da urbanização e da industrialização do Brasil, dos nossos esforços, algumas vezes frustrados, de democratização do país (1). O samba já nasceu misturado, tão bonito em Ismael Silva quanto em Noel Rosa, produto de um povo mestiço que, pela primeira vez, começa a reconhecer-se na história. O samba nasceu quase ao mesmo tempo em que o povo brasileiro emergia para a história política.
A presença do negro em formas culturais como a literatura, a música erudita e as artes plásticas vem de muito antes. Vem dos primeiros séculos da colonização, de um Brasil do qual se dizia que era “um país sem povo”. Estávamos imersos na ignomínia da escravidão, da qual sobraram feridas que não pudemos curar inteiramente. Uma das heranças desse passado se revela em um certo desconforto, quando começamos a discutir a presença do negro e de seus descendentes na cultura. (A exceção é, evidentemente, o samba e a sua poesia) .Um desconforto que começa por uma certa indecisão no uso das palavras. Posso falar de “negros” e “mulatos” com o respeito que lhes devo, quando sei que estas palavras foram, durante séculos, tantas e tantas vezes usadas como insulto? Se estamos falando de cultura, não seria melhor adoçar a conversa, inventar outras palavras, fazer de conta que não existem problemas?
“Branqueamento”
É circunstância feliz do Brasil pós anos 20, que possamos reconhecer, por exemplo, em Pixinguinha uma glória da nossa música popular. O que se diz de Pixinguinha pode-se dizer também, a partir dos anos 20, de muitos outros, brancos e negros, que tornaram a ligação do erudito e do popular um dos traços mais felizes da música brasileira. A quem tenha dúvidas, eu lembro que alguns versos da música popular se encontram entre os mais belos da nossa língua.
Não é exceção o famoso verso de uma canção que todos conhecemos, em que o poeta lembra a amada caminhando no chão batido do barraco salpicado de estrelas e diz: “tu pisavas nos astros distraída”. Vejam este verso de um samba de Cartola, sobre um amor que busca desesperadamente não terminar: “Ai, se eu pudesse fingir que te amo, ai se eu pudesse”. Ou ainda: “Devias vir, para ver os meus olhos tristonhos, e quem sabe sonhavas meus sonhos”. Ou este verso de Nelson Cavaquinho: “Tire o teu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”. Mais esperançosa, Dona Ivone Lara diz: “Sonho meu, sonho meu, vai buscar quem mora longe, sonho meu”.
Façamos, porém, um esforço de memória e perceberemos que nem sempre foi tão nítida a presença do negro em nossa cultura. Nem mesmo na música, onde negros e descendentes vêm, de há séculos, dando uma contribuição essencial. Além dos amantes da música erudita, quantos sabem que mestres da música sacra de Minas Gerais, como o padre José Maurício e Lobo de Mesquita, eram descendentes de escravos? Quantos sabem que era de ascendência negra o maestro Francisco Braga, que, aliás, começou, com oito anos de idade, no Asilo dos Meninos Desvalidos, no Rio de Janeiro do II Reinado? (2)
Algo da cegueira e da violência do mundo escravocrata prejudica, até hoje, a nossa percepção e a nossa memória. Mesmo que nos desagrade admiti-lo, pesam sobre nós preconceitos que prejudicam a auto-estima dos negros e descendentes e obscurecem o reconhecimento da nossa identidade como povo. Embora tenhamos mudado desde a Abolição – e estejamos mudando aceleradamente, sobretudo desde os anos 20 e 30 do século XX – a verdade é que andam por aí fantasmas de um passado ignóbil que, se não mais se manifestam com a violência terrível dos tempos da escravidão, são ainda bastante fortes para dificultar a percepção da presença dos negros e de seus descendentes na arte, na ciência e na técnica, prejudicando-os nas demais esferas da atividade humana.
Um racismo sutil e manhoso
Dizem alguns que não temos racismo no Brasil. Não temos talvez o racismo virulento de outros países, mas temos, sim, um racismo sutil e manhoso, nem por isso menos maléfico. Uma das suas manhas se acha nisso que Joel Rufino chamou de “branqueamento” (3), para referir-se não à política de “embranquecimento” que também houve no Império e na Primeira República como estímulo à política de imigração, mas ao mundo do imaginário, à maquilagem dos retratos de negros e mestiços, de modo a fazê-los parecer brancos. Uma operação delicada, envolvendo finos embustes e danosas cumplicidades, inclusive com as próprias vítimas. Se se reconhecia talento em um negro ou em um descendente de negro, passava-se a “branquear” sua imagem. Como nos clubes de futebol que, em inícios do século XX, aspergiam pó-de-arroz em alguns dos seus craques porque o time só admitia brancos.
São muitos os exemplos. Juliano Moreira, durante décadas diretor de importante instituto psiquiátrico do país, praticamente desapareceu da nossa iconografia. E por isso, hoje, muitos de nós não sabemos que ele era negro. Os que sabem algo do abolicionismo sabem também que André Rebouças era negro. Ainda assim, a imagem que dele ficou para o público em geral foi “branqueada” pela perda da memória histórica. Dos milhões de brasileiros que passam pela Avenida Rebouças, em São Paulo, e pelo Túnel Rebouças, no Rio, quantos sabem que foi negro o homem que lhes deu o nome? Dos efeitos do “branqueamento” posso dar meu testemunho pessoal. Só muito recentemente vim a saber que era negro o engenheiro Teodoro Sampaio, que dá nome à principal rua de Pinheiros, um dos meus caminhos habituais para a Universidade de São Paulo, onde estudei e trabalhei durante trinta e cinco anos. Não tenho dúvidas de que muitos dos meus estudantes e colegas ignoram até hoje que Teodoro Sampaio era negro.
O caso mais notável está no campo da literatura. É o de Machado de Assis, cujo necrológio, escrito por José Verissimo, abriu uma polêmica com Joaquim Nabuco. Disse Veríssimo de Machado: este “mulato foi, na realidade, um grego dos tempos de ouro”. Era um elogio, mas Nabuco retrucou: “Machado para mim era um branco, e creio que como tal ele se julgava” (4). E, contudo, poderia haver maior motivo de orgulho para os negros e seus descendentes do que dizer, reconhecendo a ascendência negra de Machado, que ele foi tão grande que era – e ainda é – considerado o maior escritor brasileiro? Poderia haver maior motivo de orgulho para os brasileiros conscientes da sua identidade como povo mestiço? Quantos escritores da estatura de Machado existem no mundo?
Nabuco, branco e aristocrata, um dos espíritos mais generosos do seu tempo, foi, como grande abolicionista, um dos primeiros a distinguir entre o negro, como ser humano, e o escravo, ao qual um sistema iníquo negava toda humanidade. Amigo pessoal de Machado, ninguém mais do que ele teria autoridade e estilo para dizer que a origem racial do escritor lhe acrescenta grandeza e que sua glória como artista enobrece a todos nós. E, contudo, tomou algum tempo até que Lúcia Miguel-Pereira nos oferecesse a palavra certa sobre Machado, esse “mestiço que tanto elevou a sua gente e o seu país” (…) “essa personalidade que paira sobre a literatura brasileira, como um símbolo do pensamento e do poder do espírito” (5).
Fascínio da brancura
Se os grandes foram vítimas do branqueamento, que dizer dos pequenos? O branqueamento revela, ainda hoje, uma dificuldade da cultura brasileira em aceitar que negros e seus descendentes podem ser competentes, brilhantes, em atividades que se acreditou, durante muito tempo, estivessem reservadas aos brancos. E deste modo, empana os horizontes generosos de uma cultura que todos queremos democrática, aberta. Trata-se de uma expropriação imaginária das glórias dos negros, apagando, especialmente nos mais pobres, o exemplo de líderes que poderiam sugerir-lhes outros caminhos além da humilhação cotidiana. Nos brasileiros em geral, ajudando a manter a ilusão de uma sociedade branca, que não somos e nunca fomos.
Exemplo da ilusão da sociedade branca é a crítica do mulato, que vem, pelo menos, desde o século XVII, com o talentoso Gregório de Matos, que, saudoso de Lisboa, alimentava o desapreço pela Bahia e pelo Brasil. Tivemos, no período da Independência, um nacionalismo indigenista e antiportuguês, mas permaneceu o fascínio da sociedade branca, exemplificada por Paris e Londres. Na passagem para a República, esse preconceito afetou, até mesmo, um gênio como Euclides que, exaltando o valor do sertanejo – para ele um descendente de índio – desvalorizou o mestiço, descendente de negro. Alguns sociólogos do início do século XX, como Oliveira Vianna, tentaram distinguir entre mestiços bons e ruins, segundo sua região de origem na África. Num triste espetáculo de flagelação (e de autoflagelação) cultural, praticou-se a crítica ao mestiço mesmo quando o crítico era, ele próprio, mestiço.
Do fascínio pela brancura dão exemplo, na literatura do século XIX, A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, e O Mulato, de Aluisio de Azevedo. É certo que estes dois notáveis escritores eram contra a escravidão, e Guimarães, em outro de seus livros, tem a oportunidade feliz de afirmar que “no Brasil, ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja quem não tenha puxado flecha ou tocado marimba” 6. Como entender, então, que a escrava e o mulato daqueles livros de êxito sejam apresentados como brancos? O mulato de Aluisio de Azevedo era filho de um português e de uma negra, mas, por milagres genéticos da arte, nasceu branco e de olhos azuis, e, além disso, permaneceu até o início da maturidade na mais completa ignorância das suas origens. Vejam como Guimarães apresenta Isaura: “A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada… (…) teve excelente educação, e tem uma boa figura, pode passar por uma senhora livre e de boa sociedade”. É a amada de Álvaro, “original e excêntrico como um rico lorde inglês”, um “liberal, republicano e quase um socialista”.
Seria apenas uma questão de preferência estética? Em uma sociedade que contava, mais ainda do que hoje, com maioria de negros, mulatos e cafuzos, uma preferência estética que chega ao ponto de branquear o negro e o descendente de negro, é apenas um outro nome para o preconceito, que dominava à época e se impunha mesmo aos melhores dentre seus escritores. Em homenagem a Aluisio de Azevedo e a Bernardo Guimarães, reconheçamos que, como muitos, em sua época e ainda hoje, também eles vacilavam diante das complexidades étnicas e raciais do Brasil. Em seu romance Rosaura, a Enjeitada, Guimarães apresenta a personagem do seguinte modo: cabelo da cor de azeviche, pele cor de jambo, mestiça de origem irregular, amada por um jovem branco de boa família.
Miscigenação e Cultura Mestiça
Nossas confusões em torno da questão do negro estão na base das nossas confusões sobre a nossa própria identidade como povo. Nossas misturas raciais foram invocadas, por muito tempo, como motivo de pessimismo em relação ao país. Uma visão positiva do Brasil como sociedade mestiça só começou a conquistar os intelectuais, nas primeiras décadas do século XX. Pode-se reconhecer algumas antecipações em Lima Barreto, mas, ainda assim, em determinados momentos, este mestiço talentosíssimo foi levado a ver no mulato em geral, alguém condenado ao fracasso. O reconhecimento do Brasil como país plurirracial, com um vigoroso processo de miscigenação, só começou nos anos 20, com o movimento modernista, em especial com o grande talento de Mário de Andrade, ele próprio um mestiço, e, pouco depois, com Gilberto Freyre. Não será demais lembrar que os anos 20 e 30 são também os da afirmação do samba como música nacional, de todo o país, não só dos morros do Rio. Com Mario e Gilberto, começávamos a perceber que estávamos nos tornando uma sociedade não apenas racialmente miscigenada, mas também culturalmente mestiça. Uma sociedade onde a matriz negra é fundamental. Descobríamos também o sentido nacional do barroco que, como observa Fernando Henrique Cardoso, “fez ver que a nação híbrida que se gestava nos trópicos já era suficientemente madura para produzir soluções autóctones, para dialogar com diferentes matrizes estéticas.” Criação de negros e mestiços geniais, como o Aleijadinho e o Mestre Valentim, o barroco “antecipou no plano artístico a maioridade do Brasil” (7).
O paradigma da sociedade branca durou em nosso imaginário mais do que merecia sua histórica inverossimilhança. Embora nosso catolicismo consagre imagens de santos negros e, em muitos lugares do Brasil, os orixás se liguem aos santos da Igreja, predominou em nosso imaginário o paradigma da sociedade branca importado por uma elite que se envergonhava de um povo em que negros, mulatos e cafuzos eram maioria. Uma elite que se envergonhava, sobretudo, de não ser, ela própria, tão branca quanto gostaria.
Talvez por isso – ou seja, talvez porque na própria elite havia, e há, muitos mestiços – alguns acham que não temos um racismo no país. Por isso também, e apesar do fascínio da brancura, nunca tiveram maior verossimilhança no Brasil as estúpidas crenças que sustentam o racismo em outros países, da existência de uma raça branca pura e superior. Nem no povo nem na elite, nunca tivemos como sustentar tais crenças. Somos desde sempre plurais e misturados, e por isso os que chicotearam o negro ou execraram o mestiço também ofendiam a si próprios. Seu racismo não tinha como ir muito longe. Mesmo nos momentos de maior paixão pela brancura, sempre houve quem se lembrasse das flechas e das marimbas dos nossos avós. Ou como dizia o intelectual abolicionista negro Luís Gama, retrucando aos que o insultavam como “bode”: “Aqui, nesta boa terra, marram todos, tudo berra” (8).
A matriz oculta
Quatrocentos anos de escravidão reservaram ao negro um tratamento tão terrível na realidade quanto confuso no plano do imaginário. Somos, por isso, herdeiros de amargos paradoxos. A música barroca dos séculos XVIII e inícios do XIX é, em grande parte, obra de negros, mas é também, e não poderia deixar de sê-lo, de fatura musical européia, isto é, branca. Carlos Gomes era mestiço, neto de uma ex-escrava, mas O Guarani é uma bela obra de idealização do índio. É certo que Carlos Gomes também escreveu música inspirada nos negros, mas este é o lado menos conhecido de sua obra. Mesmo uma ópera como O Escravo, de espírito abolicionista, inspirava-se nos índios e só por exceção foi apresentada por negros. Não obstante a mestiçagem, algo impele nossa cultura a esconder a matriz negra que está em seus fundamentos.
Diz Antônio Cândido que, no século XIX, quando surge o indianismo na literatura, o índio já era o passado, enquanto “o negro era a realidade degradante, sem categoria de arte, sem lenda heróica” (9). Um argumento que se pode estender a boa parte do século XX, permitindo entender como, ao longo da história, se tenha falado tanto do negro como força de trabalho, e tão pouco como pessoa. O negro surge para a literatura, na campanha abolicionista, com dois intelectuais negros, Luís Gama e José do Patrocínio, para ser visto como “problema social”, mais do que como personagem literário (10). Gonçalves Dias, mestiço, permanecerá em nossa memória por seus lindos poemas sobre o índio. Cruz e Sousa, negro, deixou-nos pouca coisa sobre os de sua raça, com exceção das páginas sobre o “emparedado”. Castro Alves, ele próprio mestiço, o mais generoso dos nossos poetas, foi o único no século XIX, diz Antonio Cândido, a alcançar o “milagre literário” de apresentar o negro como ser humano (11).
Um quadro de ausências e paradoxos que só começa a mudar no século XX, com Macunaíma, de Mário de Andrade, Moleque Ricardo, de José Lins do Rêgo, Tambores de São Luís, de Josué Montello, e alguns poemas de Jorge de Lima e de Ascenso Ferreira. E, já neste século XXI, com Saraminda, de José Sarney. Uma lista pequena na qual há que reservar lugar de destaque para muitas das obras de Jorge Amado. De conjunto, porém, fica a impressão de que, ao longo dos séculos, tivemos mais escritores negros, ou descendentes de negros, do que personagens negros e descendentes de negros.
Nabuco dizia que não bastava “acabar com a escravidão”, que era “preciso destruir a obra da escravidão”. Acabamos com a escravidão em fins do século XIX, mas sua “obra” persistiu durante muito tempo e dela persistem, ainda hoje, fortes resíduos. Na segunda metade do século XX, um fenômeno tipicamente moderno como a dramaturgia da TV dá a perceber preconceitos tão ou mais poderosos do que os do romance século XIX. A Escrava Isaura deu origem, nos anos 70, a uma telenovela de sucesso nacional e internacional, permanecendo Isaura tão alva como quando nasceu. Há também casos em que a TV produz o branqueamento de personagens famosos, como a Tieta, de Jorge Amado: mestiça no livro, branca na TV. Do mesmo Jorge, a mestiça Gabriela tornou-se quase branca na TV.
Estamos falando de uns poucos exemplos, em numerosa galeria que começa nos anos 60 com novelas como O Direito de Nascer e a Cabana do Pai Tomás, de 1969, com Ruth de Souza e Sergio Cardoso, um grande ator branco que, para se evitar um ator negro no papel, foi ridiculamente enegrecido pela maquilagem (12). Em 510 novelas estudadas por Joel Zito Araújo, cobrindo o período 1963-1997, o negro aparece como protagonista em apenas duas. Famílias negras aparecem em apenas quatro. Das novelas de uma grande emissora, examinadas de 1980 até 1998, em 29 os negros e descendentes têm menos de 10% de participação e em 28 não têm participação nenhuma. Descontadas exceções como Sinhá Moça e Pacto de Sangue, os negros e descendentes aparecem, quando aparecem, em geral, como subalternos.
Uma lenta e difícil evolução
Uma pintura da primeira metade do século XIX, com o título “A Redenção de Cam”, pode ser tomada, nas artes plásticas, como representativa de uma mentalidade que ficou para trás. Na descrição de Emanoel Araújo, o pintor põe na tela “uma avó negra (que) contempla a filha mulata, ao lado do genro branco, e o pequeno neto já sem sinais de negritude”. A “redenção de Cam” estaria, portanto, não na afirmação do negro, mas no seu desaparecimento. Exemplos de viajantes como Debret e Rugendas, que, em seu tempo, retrataram os negros como parte central da paisagem humana do país, encontraram poucos seguidores até os anos 20. O que significa que a genialidade do Aleijadinho e do Mestre Valentim tomou mais de século para ser reconhecida. A imagem de embranquecimento sugerida pelo “redenção de Cam” só passa a perder relevância a partir do Modernismo. Só a partir de então se faz sentir a presença do negro como modelo, em trabalhos de Portinari, Lazar Segall, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral. Uma tendência que, sob formas diversas, cresceu com Carybé, Mario Cravo, Mestre Didi, Bandeira, Ismael Nery, Rubem Valentim, Emanoel Araujo e tantos outros.
Algo de semelhante ocorre na música popular. Embora tenhamos tido, desde sempre, exemplos de carinho pelo negro e seus descendentes, tivemos também recaídas como na fase em que Nilo Chagas, um cantor do Trio de Ouro, era chamado de “negro de alma branca”. Era a mesma época em que cantávamos, no Carnaval, “Nêga do Cabelo Duro”, “Nêga Maluca”, “O teu Cabelo não nega”, ou mais recente, “O Samba do Crioulo Doido”. Por mais ingênuas que fossem, como não ver nessas músicas o sinal do preconceito? Ao longo do tempo, a influência de inúmeros artistas negros, brancos e mulatos nos permitiu chegar, nos anos 60 e 70, ao feliz momento em que Vinícius de Moraes declarou, com a candura dos poetas, que era o “branco da alma mais preta do Brasil”. Ou, mais recentemente, a alguns belos sambas de Chico, Caetano, Dona Ivone Lara, Cartola, João Bosco, Aldir Blanc, Gil e Martinho, talvez os que mais afirmem os valores mestiços do Brasil entre os nossos sambistas mais recentes.
Com uma trajetória de séculos – de indecisões e de vacilações mas também de luzes -, podemos, e devemos, criticar os clichês mentais que nos sobraram da herança abjeta da “obra” da escravidão. Porque quando se trata do negro, até hoje, como já disse, ficamos um pouco indecisos no uso das palavras. Houve época em que, para contornar o desconforto, substituíamos a expressão “negro” por “gente de cor”, tradução para “colored people”. Eu me pergunto: por acaso os brancos não têm cor? É certo que, também, ganhamos terreno, tanto que alguns movimentos contra o racismo se designam diretamente como “movimentos negros”. Na Mostra do Redescobrimento, realizada em São Paulo no ano passado, Emanoel Araújo trata do nosso tema em exposição com o título: Negro de Corpo e Alma. Ou seja, temos negros que se orgulham de serem negros.
A propósito, se devemos abandonar os velhos clichês, abandonemos também, neste assunto mais do que em qualquer outro, a importação de palavras e conceitos. Quando alguns designam os negros brasileiros como “afro-brasileiros”, eu creio que vacilamos. A expressão “afro-brasileiro” tem a evidente vantagem de lembrar a África, onde, como dizia Jorge Amado, se acha enterrado o umbigo do Brasil. Vale, também, para lembrar uma ancestralidade religiosa digna de memória, até porque a religião foi, no Brasil, a primeira forma de o escravo se reconhecer como ser humano. Mas eu creio que vacilamos se pretendemos com a expressão “afro-brasileiros” identificar os negros brasileiros como uma minoria, à maneira americana. Nos Estados Unidos, o sentido da expressão “afro-americans” está em que lá os negros são uma minoria demográfica – 13% da população – e cultural, pois são parte de um país com uma cultura de predominância anglo-saxônica. Aqui os negros e descendentes são um pouco mais da metade de um país de cultura mestiça, onde a matriz negra é fundamental.
Uma conquista a realizar
O reconhecimento do Brasil mestiço, iniciado pelos intelectuais a partir dos anos 20, é ainda uma conquista a ser realizada por parte da elite e, talvez, pela maioria do povo. Diz, por exemplo, um testemunho registrado em A Mão Afro-Brasileira: “A minha cor é pálida e o meu cabelo, quando deixo crescer, dá para pentear. Da Bahia prá cima e da classe média prá baixo, posso dizer que sou branco”. Palavras bem humoradas que dão, porém, a medida da nossa confusão de identidade. Temos estatísticas, baseadas em critérios de autoclassificação, que dizem que 54% dos brasileiros se vêem como brancos, 39,5% como pardos e 5,7% como negros. Seríamos tantos os brancos? Seríamos tantos os pardos, seja lá o que esta palavra signifique? Seríamos tão poucos os negros? Assim como temos progressos na cultura, também os temos na política, embora sejam muito recentes as instituições de Estado que se ocupam dos negros. É certo que já nos anos 30, Mãe Aninha, fundadora do Opô Afonjá, conseguiu que Getulio Vargas abolisse leis que consideravam crime o candomblé. Mas foi só em 1976 que o governo da Bahia derrogou dispositivos que exigiam permissão da polícia para a prática do culto. Em todo caso, a conquista de Mãe Aninha pode ser considerada como precursora da Lei Afonso Arinos, de 1951. Mas foi só em 1988 que conseguimos aprovar o princípio constitucional segundo o qual as terras dos quilombos pertencem a seus descendentes. É do mesmo momento a Lei Caó, contra o racismo, e a criação da Fundação Palmares, junto ao Ministério da Cultura.
De 1995 para cá, vamos ganhando terreno, desde que foi criado, pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, o Grupo Interministerial para a Valorização da População Negra. Regulamentada a Lei dos Quilombolas em 1999, a Fundação Palmares já outorgou títulos de posse a dezenas de comunidades, abrindo caminho para resgatarmos um significado fundamental de nossa história. Não se subestime, portanto, a inscrição, em 1996, do nome de Zumbi junto ao de Tiradentes, no Livro dos Heróis da Pátria. É o início de um reconhecimento que já não pode ficar restrito aos historiadores, mas que há de estender-se a todo o povo. Zumbi é o nosso maior herói negro; não, porém, o único. Nem é Palmares o nosso único quilombo. Como explicar as centenas de remanescentes dos quilombos de que temos registro no país, se ignorarmos as lutas dos negros para criá-los?
Eis o maior perigo do branqueamento: limita o papel do negro na história à condição de força de trabalho, ignora suas lutas sociais e seu papel na cultura. Branqueando as imagens dos negros, branqueamos também a história do país. Esquecemo-nos, às vezes, de que antes da Lei Áurea, já houvera a libertação dos escravos no Amazonas, no Rio Grande do Norte e no Ceará, como resultado das lutas de brancos e negros, entre as quais a “greve dos jangadeiros” de 1880, em Fortaleza (13). Não apenas os de cima, também os de baixo, fazem a história da Pátria. E já que menciono os jangadeiros, há que lembrar, 22 anos depois, João Cândido, que também celebramos neste mês de novembro, “o marinheiro negro” que como diz o samba, “tem por monumento as pedras pisadas do cais”. Maiores ou menores, os espaços de liberdade conquistados pelos negros custaram-lhes séculos de sofrimento e luta. Luta que ainda hoje continua.
Negro: literatura e samba
Peço licença para uma palavra ainda, sobre a literatura e o samba. Se, no andar dos séculos, a literatura falou pouco do negro, quando o fez, foi de forma insuperável. Limito-me a dois exemplos de Jorge de Lima, filho de pai branco e de mãe mestiça, e que, nascido em União dos Palmares, em Alagoas, perto da Serra da Barriga, ouvia, ainda menino, histórias sobre Zumbi. Tomo de Jorge de Lima uma palavra sobre uma mulher – e sei que me arrisco a ser mal compreendido – que o poeta eternizou num dos mais belos poemas da língua portuguesa, Essa Negra Fulô.
Aos muitos, em geral homens mas também mulheres, que ainda lêem Essa Negra Fulô com desconfiança, sugiro que o leiam de novo e verão que Fulô não é nem a mulatinha espevitada de tantas histórias preconceituosas que conhecemos, nem foi branqueada, como a Isaura, para torná-la aceitável a um suposto paradigma estético da brancura. Fulô é negra e linda. É por isso, porque é negra e linda, que é perigosa. Lembremos de que quem nos conta a história é outra mulher, ferida pelo ciúme. Contada por uma outra mulher, a história de Fulô é emblema de algum momento da vida de todas as mulheres. De todas as mulheres que, em sua suposta fragilidade e submissão, são capazes de conquistar os homens, os quais – em sua tolice – se imaginam seus senhores. Na visão enciumada da sinhá, importa menos que Fulô lhe tenha roubado peças da casa. O essencial é que lhe roubou o coração do senhor.
Sugiro aos homens que leiam (releiam) o poema, mas que evitem declamá-lo para um público, por menor que este seja. Declamado por homens, o poema pode suscitar equívocos. Diante da beleza da Fulô, estaremos os homens, pouco importa se brancos ou negros, sempre tentados pelos nossos próprios preconceitos. Na inevitável insegurança dos machos, difícil abandonar a pose do falso conquistador, que diante de mulher tão linda, pisca o olho para a audiência. Em geral … para outros homens, os únicos que podem entender nosso medo. E, contudo, sabemos que, em algum momento da vida, todos nos apaixonamos pela graça da Fulô, como pelos olhos de ressaca da Capitu, ou pela malícia da Gabriela. Fulô, negra e linda, é uma das mulheres mais notáveis da literatura brasileira.
Em meio a brilhante obra poética, Jorge de Lima nos deixou também versos políticos brilhantes sobre o negro, por exemplo, no poema “Olá Negro!”. Como tudo que é político, podemos divergir aqui ou acolá. Mas são versos que deveriam ser lidos – e estes, sim, também declamados – por todos, homens e mulheres, brancos e negros. Porque falando do negro, falam de todos nós, convocam a todos nós:
“Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos
e a quarta e a quinta gerações de teu sangue sofredor
tentarão apagar a tua cor!
E as gerações dessas gerações quando apagarem
a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!” (14).
Benditos os poetas porque tocam na essência das coisas! “Não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!” Algo ficou, portanto, do que disseram os escritores e poetas que, desde Castro Alves, foram capazes de ver no homem negro e na mulher negra, o ser humano. Nomes do passado, aos quais há que juntar, mais recentes, os de poetas e escritores negros como Solano Trindade, Eduardo de Oliveira, Carolina Maria de Jesus, Oswaldo de Camargo, Abdias do Nascimento, Joel Rufino, Carlos Moura, Dulce Pereira, Marilene Felinto, Adão Ventura, Emanoel Araujo e Nei Lopes, entre outros. Por causa deles, hoje podemos ver melhor.
Se quisermos, como aconselhava Nabuco, destruir a “obra da escravidão”, precisamos apagar a “tatuagem execranda” de que fala Jorge de Lima. Uma tatuagem que, porém, não está na cor da pele, mas nas feridas que herdamos das ignomínias desse passado. Sugere o poeta que despertemos a alma do negro nos mulatos e nos cafuzos. Queremos isso e queremos mais: despertar a alma do negro onde se encontre. Também nos brancos. E até mesmo – quem sabe? – em muitos negros. Temos que despertá-la em cada um de nós.
Finalmente, uma palavra sobre o samba. E uma vez mais, há que bendizer os poetas. Como Cartola quando diz: “Habitada por gente simples e tão pobre, que só tem o sol que a todos cobre, como podes Mangueira cantar?” Como podem os do morro fazer com que cantem os do asfalto? Como podem fazer com que cantem, além dos pobres e dos simples, também os que não são tão pobres nem tão simples? Eis uma indagação que se projeta, para além da Mangueira e para além do samba, sobre séculos da nossa história. Como puderam os negros, ao longo de séculos de tanto sofrimento, construir uma cultura tão poderosa e da qual somos todos herdeiros? Diz o samba: “Pergunte ao Criador quem pintou esta aquarela, livre da senzala e do açoite do feitor, preso na miséria da favela”. Como uma história como a nossa – tão dura e, por tanto tempo, tão brutal – pôde construir uma cultura tão rica? A poesia, uma vez mais, permite reconhecer o essencial, a raiz negra do povo brasileiro que as escolas de samba celebram cada vez que entram na Avenida.
Temos muito a aprender com as Escolas de Samba. Em primeiro lugar, o senso de organização que as leva a dedicarem-se durante meses para realizar na Avenida, no Rio de Janeiro, o maior espetáculo de arte popular do mundo. Depois, a disciplina: em cada Escola são milhares de pessoas, diferenciadas em alas e blocos, que cantam e dançam a mesma música, no mesmo tempo e ritmo, nos espaços e prazos rigorosamente determinados do desfile. As Escolas são, porém, mais do que organização e disciplina.
Sua maior beleza – creio – é a alegria e o orgulho de serem o que são. Alegria e orgulho que se expressam nas cores que adotam e no toque das baterias. Nas Escolas, o tambor ancestral chega a uma extrema sofisticação que se percebe desde o momento em que a bateria toma posição no recuo da Avenida. É como um movimento militar que, contudo, não se faz marchando mas sambando, cada bateria com seu estilo. “Todo mundo te conhece ao longe, pelo som dos teus tamborins e o rufar do teu tambor”. Através da complexa e disciplinada manobra da bateria entrando na Avenida, o povo identifica a sua Escola, antes mesmo que possa vê-la. “Quando ouvirem esta batida é a Mangueira que chegou”.
Ninguém se surpreenda, portanto, se ao cantar a sua escola, o poeta invocar os céus, os santos e os orixás. Se invocar a “graça divina”. Se discorrer sobre os grandes temas da história, do Brasil e do mundo. Se disser de sua Escola que “vista assim do alto mais parece o céu no chão”. Se cantar, por exemplo, o nome de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e os grandes heróis da Pátria. Ninguém se surpreenda se o poeta olhar as cores da sua Escola o manto azul da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, abrindo a “procissão do samba”. “Salve o manto azul e branco da Portela, desfilando triunfal sobre o altar do Carnaval”. A propósito, deve haver alguma boa razão para o fato de que tenhamos escolhido para Padroeira do Brasil a imagem de uma Nossa Senhora negra.
É assim que as Escolas afirmam as suas raízes e a sua identidade. E quando o fazem, afirmam também as raízes e a identidade do Brasil. A nossa negritude e a nossa mestiçagem, a nossa mulatice e a nossa brancura, a nossa riqueza cultural e os nossos dramas sociais, as nossas lutas como povo em formação. Vindo do povo mais humilde do Brasil, as Escolas afirmam a vocação dos brasileiros, de todos os brasileiros, para a grandeza. E o fazem com a dignidade e a elegância de quem oferece ao mundo um belo exemplo de humanidade.
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Referências
1- Cabral, Sergio, “Música brasileira é coisa de negro”, in Araújo, Emanoel, A Mão Afro-Brasileira, Tenenge, São Paulo, 1988, pág. 321. Ver também Negro Brasileiro Negro, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 25, IPHAN, Ministério da Cultura, Rio de Janeiro, 1997, e Vianna, Hermano, O Mistério do Samba, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1999.
2- Cf. Araujo, Emanoel, A Mão Afro-Brasileira, op. cit.
3- Rufino, Joel, in Araujo, Emanoel, A Mão Afro-Brasileira, “Prefácio”, pág. 7.
4- Stegagno-Picchio, Luciana, História da literatura brasileira, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997, pág. 276.
5- Miguel-Pereira, Lúcia, Machado de Assis-Estudo crítico e biográfico, Companhia Editora Nacional, 1936, São Paulo, pág. 338.
6- Citado em Bosi, Alfredo, História concisa da literatura brasileira, Editora Cultrix, São Paulo, 1994.
7- Cardoso, Fernando Henrique, “Apresentação”, Brésil Baroque – entre ciel et terre, catálogo editado pela União Latina, de exposição sob o mesmo título realizada no Petit Palais, Musée des Beaux-Arts de la Ville de Paris, em 1999, pág. 27.
8- Gonçalves, Magaly Trindade et alli, Antologia da Poesia Brasileira, Musa Editora, São Paulo, 1995, pág. 203.
9- Mello e Souza, Antônio Cândido, Formação da literatura brasileira, Editora Martins Fontes, São Paulo.
10- Idem
11- Mello e Souza, Antônio Cândido, Formação da literatura brasileira, Editora Martins Fontes, São Paulo.
12- Araújo, Joel Zito, A Negação do Brasil – O Negro na Telenovela Brasileira, São Paulo, 2000, Editora Senac. Ver também o documentário realizado pelo Autor, sob o mesmo título.
13- Agradeço essas informações a Almino Affonso e à Prefeita de Mossoró, Rosalba Ciarlini Rosado.
14- Lima, Jorge de, “Olá! Negro”, in Jorge de Lima – Poesia Completa, págs. 315-316, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997. Ver também Freyre, Gilberto, “Poemas Negros”, idem, págs. 90-94.
Fonte: http://weffort.com.br/2014/11/04/cultura-brasileira-cultura-mestica/

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