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SÃO LUÍS, MARANHÃO, Brazil
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quinta-feira, 11 de setembro de 2025

FIM DE NOITE


Por Rogério Rocha

 

Quando cheguei ao Bar do Léo, o vento morno da madrugada de São Luís envolvia o bairro do Vinais. Aquele leve mormaço, muito comum durante as noites de verão, era um convite para tomar umas cervejas e jogar conversa fora.

Como sempre, lá estavam, nas paredes daquele reduto boêmio da cidade, as famosas capas de discos de vinil, cassetes e caixas de CD's, que se destacavam sob a iluminação fraca que vinha do teto. Aliás, o espaço é cheio de relíquias de vários períodos da nossa música, tendo uma decoração marcada pela presença de uma dezena de itens dignos de serem encontrados num bom antiquário.

Há anos vinha tentando encontrá-lo, mas as nossas vidas não ajudavam. Naquele dia, porém, o vento da sorte soprou a nosso favor. Com o bar estranhamente vazio, encontrei meu amigo sentado em um lugar mais escondido, bebendo uma gelada.

Quando cheguei à mesa, já encontrei a segunda garrafa pela metade. Notei minhas mãos suadas. Talvez pelo nervosismo ou, quem sabe, pela temperatura um tanto elevada para o final da noite. Enfim, não é sempre que se tem a oportunidade de tomar umas com um gênio da música no bar mais cult da cidade.

Dei-lhe um abraço forte, retribuído com um sorriso e um convite para que me sentasse na cadeira ao lado. Ficamos mais de duas horas conversando sobre tudo o que puderem imaginar. De discos voadores a símbolos mágicos, de filosofia a budismo, do Egito aos Estados Unidos, passando pela música, obviamente. Afinal, a música sempre foi a praia dele.

— E então, Rogerito, é verdade que o rock virou uma espécie de servidor público que bate ponto? Tá só mesmice? – perguntou com a voz levemente arrastada.

— Olha... sei lá! Acho que ainda existe uma certa atitude em algumas figuras, mas é algo muito raro. O gênero está perdendo vigor; muitos nomes estão morrendo ou se aposentando. Acho que a música está sendo engolida pelo lixo das playlists do Spotify – respondi.

Meu amigo gargalhou de forma estridente ao ouvir meu comentário.

— Olha, meu rei, vou te contar! Quando comecei, em 1973, a gente gravava num estúdio com mesa de quatro canais e um técnico de som. Mas a coisa era séria. Hoje, é um horror de gente desafinada, qualquer um quer ser cantor. E dá-lhe autotune em toda música sem qualidade.

Nesse momento, o som de um disco de vinil entoou os primeiros acordes de “Tente outra vez”, tocando baixinho. O seu Léo, dono do bar, atrás do balcão, limpava os copos americanos com a destreza de um ourives, enquanto olhava para a gente.

— E as letras das músicas de hoje, meu amigo? Você gosta? – perguntei.

— As letras são descartáveis: cabem num hit de três minutos, não dizem nada, não trazem mensagem... Não fazem minha cabeça nem cabem no meu coração.

Fiquei em silêncio por alguns instantes, saboreando minha cerveja e remoendo nossas reflexões. No ambiente, àquela hora vazio, ecoava a voz do Paul na triste e bela “Golden slumbers”.

De súbito, meu companheiro de mesa virou-se para o balcão e falou:

— Ô, seu Léo! Manda aí qualquer música romântica do Elvis! Deu vontade de ouvir agora.

O dono do bar virou-se lentamente, com expressão de raiva e disse:

— O que é isso? Não, aqui não. Você não leu a plaquinha na parede? É expressamente proibido ao freguês pedir música aqui.

— Como assim, meu senhor?

— Aqui tem lei! Eu faço a lei e crio a regra. O cliente não pede música. Quem manda na seleção sou eu. – reforçou o dono da casa.

Indignados, entreolhamo-nos e balançamos a cabeça, impressionados com a situação. Descontentes com o comportamento daquele tipo autoritário, começamos a contestá-lo.

—Ah, entendi… O mestre põe o que quiser, quando quiser, e o Zé Mané que ouça caladinho. Muito bem! Temos aqui um quartel da ditadura cultural vestido com roupa de cult.” – retruquei num tom debochado.

O silêncio seguiu-se àquelas palavras em tom de revolta. A transgressão verbal pairou no ar como gás procurando faísca para o fogo, quase uma bomba prestes a explodir. Sem demora, o proprietário do bar dirigiu-se ao único garçom ainda na casa, determinando:

— Acabou o expediente! Vamos fechar. Retire esses dois daqui agora mesmo!

Para evitar confusão naquele final de noite, pagamos a conta e saímos sem dizer mais nada. Literalmente escorraçados, como bêbados em uma crise de lucidez.

Lá fora, a cidade seguia o curso da madrugada silenciosa.

Raul acendeu um cigarro, expirou lentamente a fumaça e falou com ironia:

— Por quem os sinos dobram, meu amigo? Será que dobram por nós?

Ouvi aquilo intrigado. A cabeça pesada e o inebriamento alcoólico não me permitiram buscar uma resposta. Restou-me um silêncio sem graça.

Sorri e segui até meu carro. Perguntei se não vinha comigo, pois já era tarde. Daria-lhe uma carona.

- Obrigado, meu amigo, mas vou até a estação. Para onde eu moro, só de trem. Vou no trem das sete horas. Um abraço e até a próxima! – disse, virando-se e seguindo pela calçada, subindo a rua.

Despedi-me dele e percebi que aquele ‘tchau’ tinha um quê de adeus para sempre.


quarta-feira, 18 de junho de 2025

A LIÇÃO DO MESTRE

Machado de Assis e Rogério Rocha [imagem gerada por IA]

  


Por Rogério Rocha

 

Não tenho certeza de que os fatos que vou narrar são produto da imaginação, de um surto, um sonho ou mesmo se aconteceram do modo aqui descrito. O fato é que uma febre chatinha me atacou recentemente, afetando-me a saúde. Com ela também vieram umas vertigens que, além do mal-estar repentino, costumavam turvar a minha visão durante alguns minutos. Mas juro pela alma de Allan Kardec que nada do que lerão vai passar, no máximo, de um breve delírio.

Era um fim de tarde calorento em São Luís. Eu vagava pelo centro histórico, nas férias, sem nada para fazer. Foi quando parei diante de uma portinha ladeada por colunas de madeira envelhecida. Na fachada pude ler: “Livraria O Alienista”. Morrendo de curiosidade, entrei.

Lá dentro havia um gato angorá preguiçoso, deitado sobre uma pilha de livros, coçando os bigodes e com os olhos semicerrados. As estantes abrigavam nomes imortais que moravam ali: Sousândrade, Cecília Meireles, Susan Sontag, Josué Montello, Ferreira Gullar, Goethe, Schiller e vários filósofos, daqueles que ninguém lê, mas que adoram repousar sobre as prateleiras empoeiradas.

Foi então que o vi.

Estava sentado lá ao fundo, no cantinho da sessão onde ficavam as últimas estantes. Ao me aproximar, percebi que tinha nas mãos uma edição rara de “O elogio da loucura”.

Em princípio, não acreditei! Repentinamente, veio-me outra vez a tal vertigem. Uma tontura enjoativa e os olhos turvos do qual falei. Após alguns segundos, com a visão recuperada, pude notar a figura do homem de pele escura, barba imponente, olhos expressivos e uma bengala escorada na cadeira ao lado, como se fosse o cetro de um monarca.

— Com licença, meu senhor. — murmurei timidamente.

Ele ergueu os olhos como se já aguardasse minha presença.

  Sente-se, meu amigo. Vamos conversar um pouco?

  Sim, senhor! Quem sabe possamos falar sobre os livros que temos aqui.

O velho sorriu, balançando a cabeça em sinal positivo.

— Percebo que você gosta de raridades. Que prefere os mapas aos GPS’s, estou certo?

— Como soube? Sim. Mas também gosto de descobrir novos caminhos!

O velho tamborilou os dedos sobre a capa do livro.

— Pois bem, esta livraria é um mundo para mim. Dentro dela há passagens secretas, janelas misteriosas, vozes guardadas pelo tempo. E o tempo, aqui, transcorre de um modo diferente. Olhe ao seu redor.

Voltei os olhos para os cantos da livraria. Ali estavam, em estantes próximas, Borges, Vinícius, Raquel de Queirós, Cervantes, Aluísio Azevedo; lá no fundo, enciclopédias, fileiras de coleções contendo obras clássicas, versões encadernadas, de capas duras, traduções em outros idiomas.

— Rogério, diga-me uma coisa, falou o mestre, cruzando as mãos sobre a mesa. Por que as pessoas perderam o interesse pela leitura? Por que ninguém tem paciência para entender a importância desse hábito?

— Talvez porque não tenham tempo. Ou porque não aprenderam a ler. E, no fundo, quem não tem tempo nem paciência não aprende a ler.

— É um bom argumento para tentar compreender uma arte quase esquecida.

— A da leitura, não é mesmo?

— A da paciência. A velha e boa arte da paciência. — disse, esboçando um leve sorriso.

— Gostei de conversar com você, mas já é hora de voltar para a minha prateleira.

— Prateleira! Como assim?

Ele apontou para o alto da estante. Lá havia um livro antigo com seu nome na lombada. Enquanto eu olhava para cima, a imagem daquele homem enigmático começou a se dissipar.

Num piscar de olhos, eu estava sozinho na livraria.

Sobre a mesa, pude notar a edição da obra que o velho folheava e um bilhete onde dizia: "Escreva como quem duvida. Publique como quem confessa. Leia como quem suspeita.” Assinado: Machado de Assis.

Levantei-me sem acreditar e, ainda um tanto confuso, dei uma última olhada ao redor. Por fim, saí da livraria como se houvesse acordado de um estado de coma.

Desde então, confesso: toda vez que escrevo um novo texto, escuto uma voz suave, como um sussurro que viesse da minha estante. É quando, por precaução, relembrando os conselhos do mestre, o reescrevo, pacientemente.

 

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