Por Rogério Rocha
Quando
cheguei ao Bar do Léo, o vento morno da madrugada de São Luís envolvia o bairro
do Vinais. Aquele leve mormaço, muito comum durante as noites de verão, era um
convite para tomar umas cervejas e jogar conversa fora.
Como
sempre, lá estavam, nas paredes daquele reduto boêmio da cidade, as famosas capas
de discos de vinil, cassetes e caixas de CD's, que se destacavam sob a iluminação
fraca que vinha do teto. Aliás, o espaço é cheio de relíquias de vários
períodos da nossa música, tendo uma decoração marcada pela presença de uma
dezena de itens dignos de serem encontrados num bom antiquário.
Há anos vinha tentando encontrá-lo, mas as
nossas vidas não ajudavam. Naquele dia, porém, o vento da sorte soprou a nosso
favor. Com o bar estranhamente vazio, encontrei meu amigo sentado em um lugar mais
escondido, bebendo uma gelada.
Quando cheguei à mesa, já encontrei a segunda
garrafa pela metade. Notei minhas mãos suadas. Talvez pelo nervosismo ou, quem
sabe, pela temperatura um tanto elevada para o final da noite. Enfim, não é
sempre que se tem a oportunidade de tomar umas com um gênio da música no bar
mais cult da cidade.
Dei-lhe um abraço forte, retribuído com um
sorriso e um convite para que me sentasse na cadeira ao lado. Ficamos mais de
duas horas conversando sobre tudo o que puderem imaginar. De discos voadores a
símbolos mágicos, de filosofia a budismo, do Egito aos Estados Unidos, passando
pela música, obviamente. Afinal, a música sempre foi a praia dele.
— E então, Rogerito, é verdade que o rock
virou uma espécie de servidor público que bate ponto? Tá só mesmice? – perguntou
com a voz levemente arrastada.
— Olha... sei lá! Acho que ainda existe uma
certa atitude em algumas figuras, mas é algo muito raro. O gênero está perdendo
vigor; muitos nomes estão morrendo ou se aposentando. Acho que a música está
sendo engolida pelo lixo das playlists
do Spotify – respondi.
Meu amigo gargalhou de forma estridente ao
ouvir meu comentário.
— Olha, meu rei, vou te contar! Quando
comecei, em 1973, a gente gravava num estúdio com mesa de quatro canais e um técnico
de som. Mas a coisa era séria. Hoje, é um horror de gente desafinada, qualquer
um quer ser cantor. E dá-lhe autotune
em toda música sem qualidade.
Nesse
momento, o som de um disco de vinil entoou os primeiros acordes de “Tente outra
vez”, tocando baixinho. O seu Léo, dono do bar, atrás do balcão, limpava os copos
americanos com a destreza de um ourives, enquanto olhava para a gente.
— E as
letras das músicas de hoje, meu amigo? Você gosta? – perguntei.
— As
letras são descartáveis: cabem num hit
de três minutos, não dizem nada, não trazem mensagem... Não fazem minha cabeça
nem cabem no meu coração.
Fiquei
em silêncio por alguns instantes, saboreando minha cerveja e remoendo nossas
reflexões. No ambiente, àquela hora vazio, ecoava a voz do Paul na triste e
bela “Golden slumbers”.
De
súbito, meu companheiro de mesa virou-se para o balcão e falou:
— Ô,
seu Léo! Manda aí qualquer música romântica do Elvis! Deu vontade de ouvir
agora.
O
dono do bar virou-se lentamente, com expressão de raiva e disse:
— O
que é isso? Não, aqui não. Você não leu a plaquinha na parede? É expressamente
proibido ao freguês pedir música aqui.
—
Como assim, meu senhor?
—
Aqui tem lei! Eu faço a lei e crio a regra. O cliente não pede música. Quem
manda na seleção sou eu. – reforçou o dono da casa.
Indignados,
entreolhamo-nos e balançamos a cabeça, impressionados com a situação. Descontentes
com o comportamento daquele tipo autoritário, começamos a contestá-lo.
—Ah,
entendi… O mestre põe o que quiser, quando quiser, e o Zé Mané que ouça
caladinho. Muito bem! Temos aqui um quartel da ditadura cultural vestido com
roupa de cult.” – retruquei num tom
debochado.
O
silêncio seguiu-se àquelas palavras em tom de revolta. A transgressão verbal
pairou no ar como gás procurando faísca para o fogo, quase uma bomba prestes a explodir.
Sem demora, o proprietário do bar dirigiu-se ao único garçom ainda na casa,
determinando:
— Acabou
o expediente! Vamos fechar. Retire esses dois daqui agora mesmo!
Para
evitar confusão naquele final de noite, pagamos a conta e saímos sem dizer mais
nada. Literalmente escorraçados, como bêbados em
uma crise de lucidez.
Lá
fora, a cidade seguia o curso da madrugada silenciosa.
Raul acendeu um cigarro, expirou lentamente a fumaça e falou com ironia:
— Por
quem os sinos dobram, meu amigo? Será que dobram por nós?
Ouvi
aquilo intrigado. A cabeça pesada e o inebriamento alcoólico não me permitiram
buscar uma resposta. Restou-me um silêncio sem graça.
Sorri
e segui até meu carro. Perguntei se não vinha comigo, pois já era tarde.
Daria-lhe uma carona.
-
Obrigado, meu amigo, mas vou até a estação. Para onde eu moro, só de trem. Vou
no trem das sete horas. Um abraço e até a próxima! – disse, virando-se e
seguindo pela calçada, subindo a rua.
Despedi-me
dele e percebi que aquele ‘tchau’ tinha um quê de adeus para sempre.