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domingo, 21 de setembro de 2025

ADEUS, FENÔMENO!



Por Rogério Rocha

A morte do poeta Viriato Gaspar (ocorrida na quarta-feira, dia 17 de setembro), tomou de assalto o meu dia seguinte. A notícia, que recebi por intermédio de um amigo, chegou com o impacto de um terremoto.


É difícil aceitar o desaparecimento de um dos mais brilhantes nomes das nossas letras. Figura que surgiu no cenário local como um fenômeno, ganhando importantes concursos em sequência, sendo o primeiro com apenas 17 anos de idade.


Ainda na juventude, Viriato tornou-se um dos membros do Antroponáutica, movimento artístico-literário que definiu o início da pós-modernidade no âmbito da criação artística no panorama da capital. Movimento este que, infelizmente, nunca teve, por parte da nossa intelectualidade, o merecido reconhecimento, resumindo-se às notas de rodapé dos registros históricos, a artigos esporádicos nos jornais e a algumas citações em trabalhos acadêmicos.


Em seu fazer estético, o poeta conjugava, com equilíbrio e clareza inequívocas,  estilo, forma e conteúdo. Também estavam presentes a sensibilidade e apuro técnico no uso da linguagem.


Sempre me impressionou o modo como conseguia fundir características herdadas da tradição literária com a pulsação moderna, erguendo pontes entre o passado e o presente.


Pessoalmente, guardarei comigo os ensinamentos que me deixou e as conversas em que sinalizou caminhos para minha escrita. 

Aprendi com ele a ter coragem diante da página em branco e a não temer os desafios que a vida literária impõe. Em um de seus conselhos disse-me certa vez: “não tenha medo de ser sincero com o peso da tua palavra, mas não esqueça a delicadeza que nos salva”. Lição que nenhum manual poderia me oferecer. 


O legado de Viriato terá a marca do humanismo, da luta contra as injustiças, do senso crítico e da amizade que partilhou com aqueles que tiveram a sorte de com ele conviver.


O Maranhão perdeu, portanto, um de seus modernistas mais ousados, e nós perdemos um referencial no campo da palavra. Reconheço, com gratidão, a importância que ele teve para a literatura do Brasil. 


Obrigado, Viriato Gaspar, pelos gestos de carinho, pelos conselhos e pelo apoio ao meu trabalho. Obrigado por ter nos permitido caminhar ao seu lado. Do fundo do coração, carregarei comigo a honra de ter conhecido o poeta, o amigo e um homem insubstituível.


quinta-feira, 11 de setembro de 2025

FIM DE NOITE


Por Rogério Rocha

 

Quando cheguei ao Bar do Léo, o vento morno da madrugada de São Luís envolvia o bairro do Vinais. Aquele leve mormaço, muito comum durante as noites de verão, era um convite para tomar umas cervejas e jogar conversa fora.

Como sempre, lá estavam, nas paredes daquele reduto boêmio da cidade, as famosas capas de discos de vinil, cassetes e caixas de CD's, que se destacavam sob a iluminação fraca que vinha do teto. Aliás, o espaço é cheio de relíquias de vários períodos da nossa música, tendo uma decoração marcada pela presença de uma dezena de itens dignos de serem encontrados num bom antiquário.

Há anos vinha tentando encontrá-lo, mas as nossas vidas não ajudavam. Naquele dia, porém, o vento da sorte soprou a nosso favor. Com o bar estranhamente vazio, encontrei meu amigo sentado em um lugar mais escondido, bebendo uma gelada.

Quando cheguei à mesa, já encontrei a segunda garrafa pela metade. Notei minhas mãos suadas. Talvez pelo nervosismo ou, quem sabe, pela temperatura um tanto elevada para o final da noite. Enfim, não é sempre que se tem a oportunidade de tomar umas com um gênio da música no bar mais cult da cidade.

Dei-lhe um abraço forte, retribuído com um sorriso e um convite para que me sentasse na cadeira ao lado. Ficamos mais de duas horas conversando sobre tudo o que puderem imaginar. De discos voadores a símbolos mágicos, de filosofia a budismo, do Egito aos Estados Unidos, passando pela música, obviamente. Afinal, a música sempre foi a praia dele.

— E então, Rogerito, é verdade que o rock virou uma espécie de servidor público que bate ponto? Tá só mesmice? – perguntou com a voz levemente arrastada.

— Olha... sei lá! Acho que ainda existe uma certa atitude em algumas figuras, mas é algo muito raro. O gênero está perdendo vigor; muitos nomes estão morrendo ou se aposentando. Acho que a música está sendo engolida pelo lixo das playlists do Spotify – respondi.

Meu amigo gargalhou de forma estridente ao ouvir meu comentário.

— Olha, meu rei, vou te contar! Quando comecei, em 1973, a gente gravava num estúdio com mesa de quatro canais e um técnico de som. Mas a coisa era séria. Hoje, é um horror de gente desafinada, qualquer um quer ser cantor. E dá-lhe autotune em toda música sem qualidade.

Nesse momento, o som de um disco de vinil entoou os primeiros acordes de “Tente outra vez”, tocando baixinho. O seu Léo, dono do bar, atrás do balcão, limpava os copos americanos com a destreza de um ourives, enquanto olhava para a gente.

— E as letras das músicas de hoje, meu amigo? Você gosta? – perguntei.

— As letras são descartáveis: cabem num hit de três minutos, não dizem nada, não trazem mensagem... Não fazem minha cabeça nem cabem no meu coração.

Fiquei em silêncio por alguns instantes, saboreando minha cerveja e remoendo nossas reflexões. No ambiente, àquela hora vazio, ecoava a voz do Paul na triste e bela “Golden slumbers”.

De súbito, meu companheiro de mesa virou-se para o balcão e falou:

— Ô, seu Léo! Manda aí qualquer música romântica do Elvis! Deu vontade de ouvir agora.

O dono do bar virou-se lentamente, com expressão de raiva e disse:

— O que é isso? Não, aqui não. Você não leu a plaquinha na parede? É expressamente proibido ao freguês pedir música aqui.

— Como assim, meu senhor?

— Aqui tem lei! Eu faço a lei e crio a regra. O cliente não pede música. Quem manda na seleção sou eu. – reforçou o dono da casa.

Indignados, entreolhamo-nos e balançamos a cabeça, impressionados com a situação. Descontentes com o comportamento daquele tipo autoritário, começamos a contestá-lo.

—Ah, entendi… O mestre põe o que quiser, quando quiser, e o Zé Mané que ouça caladinho. Muito bem! Temos aqui um quartel da ditadura cultural vestido com roupa de cult.” – retruquei num tom debochado.

O silêncio seguiu-se àquelas palavras em tom de revolta. A transgressão verbal pairou no ar como gás procurando faísca para o fogo, quase uma bomba prestes a explodir. Sem demora, o proprietário do bar dirigiu-se ao único garçom ainda na casa, determinando:

— Acabou o expediente! Vamos fechar. Retire esses dois daqui agora mesmo!

Para evitar confusão naquele final de noite, pagamos a conta e saímos sem dizer mais nada. Literalmente escorraçados, como bêbados em uma crise de lucidez.

Lá fora, a cidade seguia o curso da madrugada silenciosa.

Raul acendeu um cigarro, expirou lentamente a fumaça e falou com ironia:

— Por quem os sinos dobram, meu amigo? Será que dobram por nós?

Ouvi aquilo intrigado. A cabeça pesada e o inebriamento alcoólico não me permitiram buscar uma resposta. Restou-me um silêncio sem graça.

Sorri e segui até meu carro. Perguntei se não vinha comigo, pois já era tarde. Daria-lhe uma carona.

- Obrigado, meu amigo, mas vou até a estação. Para onde eu moro, só de trem. Vou no trem das sete horas. Um abraço e até a próxima! – disse, virando-se e seguindo pela calçada, subindo a rua.

Despedi-me dele e percebi que aquele ‘tchau’ tinha um quê de adeus para sempre.


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

413



 

Por Rogério Rocha

 

413: é um número. Marca contabilística, arrojo do tempo. Poeira sobre as ruas, cisco que cai das telhas. O orgulho por arder ainda uma fogueira pelas noites de São João. Carruagens, não! Não mais. BMW’s, BYD's, Celtas, Unos, Palios. Gente espremida nos ônibus, calor dos diabos, buracos com fome de chuva, bueiros sem tampa, motoqueiros malucos, calçadas minúsculas, desespero nas transversais, Rua Grande e Santana, Korea, China, China in Box, never mind. Vejo de binóculos, do alto das casas, do mirante de um banco que faliu, o pregoeiro fantasma, os sons de espingardas, barbudos, barbados, Chagas, Machado. Giro o dial sem parar, mas só estanco na pedra que rola nas ondas de um point da 96. Eu sou assim! Não sei vocês. Ainda guardo algum orgulho. Centro que tomba, gente invisível, patrimônio mudo, camelôs revoltados, juçara-açaí. É isso mesmo, é isso aí! Arrasto as sandálias do pescador, sinto o cheiro dos peixes do mercado, ao lado do trilho, da linha do trem-encantado. VLT, LGBT e o gado com bandeiras nas carreatas. Caras e caretas, mutretas, bravatas. E a estátua da liberdade, quem diria, mocinha de pele alva com a tocha e o livro nas mãos. Fofão fofinho, labubu dos infernos, tribufu do cão. Capoeira de Angola na Liberdade. Pode vir! Saio na mão, quebro o pau, viro bicho. Que maldade, mais um caiu do céu no fim da tarde. Que doideira, um outro atirou-se da ponte pensando besteira. Já era, foi anteontem. Deu para ver das torres gêmeas, no espigão do horizonte. 413, 413, 413, só para lembrar; a memória falha, a alegria engole a tiquira das Tulhas e a batida de maracujá. Reinvento o molejo de uma dança sacana que me ensinaram. Continuo a tropeçar nas mesmas pedras, a urinar nas muradas. Os problemas que me perseguem são os mesmos. Há mil razões para ser quem eu sou, estar como estou, chegar onde cheguei. Comemoro o luxo e a pobreza, a falência e a riqueza, o navio que afundou no banco de areia, o petróleo indo embora na correnteza. Ah, sim! Há razões para comemorar. Quero shows na praça, carnaval, facções detrás das grades, febris arruaças. Quero, com pressa, as soluções inclusivas. A execução efetiva de todos os planos, a exclusão da política do abandono. Leis que não sejam letra morta, Socorrão vazio, plano diretor. Quero caranguejo, sururu. Mocotó, por favor! Doces em compota, via expressa, mente aberta e ruas tortas. Ver desabar o contraste e as carências, as estatísticas policiais das mortes violentas. Quem sabe um dia, o Barreto seja um barato. E comer no Ferreiro seja menos caro. 413 obras, sobras, dobras, temporais. Mas meu corpo líquido, meu corpo pesado, requer cuidados demais. Para que não fiquem expostas as feridas que trago nas costas, o espaço imaginário, a juventude sem escola, a cultura para os cegos, como esmola. Mas como é bom que o meu nome atravesse fronteiras, projete sonhos em novos circuitos. Num outro mundo, Gullar foi Ferreira, aipim foi macaxeira, peixe frito espetado na peixeira. E as projeções viraram Lume nas paredes brancas, pelos olhos de um Frederico. Fez-se um palco muito rico e um repertório de ilusões. E, sustentando tudo isso, sem decreto ou patrocínio, minhas costas largas, meu largo de amor e extermínio. Sou essa luz que comove, no trajeto de um barco que cruza a baía. 413 enganos: permaneço travessia. Festa e cansaço, memória e esquecimento.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O POETA NO CIMO DO ICEBERG


Viriato Gaspar


Entre encanto e espanto, entre engasgo e alumbramento, defronto-me com este testamento poético do meu imenso irmão e mestre Nauro Machado. Aqui sobejam luzes, cintilações, lampejos - em graus supernos - daquela escavação ontológica que o "opus" nauriano, desde "Campo sem Base", de 1957, delimitou e instaurou, na Poiésis da nossa terra.

Nauro é, seguramente, o maior poeta maranhense desde Antônio Gonçalves Dias. A densidade, a envergadura e a amplidão vocabulares, a par da extrema angústia de existir e a busca exasperada de um sentido para a lab(r)uta humana,  colocam-no num patamar de excelência somente alcançada por Poetas de excelsa magnitude. Sem que haja maiores pontos de contato entre as duas poéticas, a não ser a pujança e a dor de existir e resistir no humano, percebo o maranhense Nauro Machado e o paraibano Augusto dos Anjos como duas vozes próximas, embora bastante distantes entre si pelo tempo, características próprias e timbres inconfundíveis, como duas solitárias vozes de mais elevado ressoo na Poesia brasileira dessa dor universal e inexplicável da aventura humana, da busca pelo sentido maior do nosso estar-aqui.

Pela capacidade de colocar nas palavras uma tal voltagem, uma amperagem vocabular crispada e paroxística que chega a doer ao reverberar na alma de quem os lê, entre esmagos, engasgos, soluços e soçobros, dilaceamentos e flagelações.

Nauro, neste Iceberg gigantesco que põe a navegar pelos nossos olhos quase apagados pelos falsos brilhos deste tempo de imposturas relinchantes, nos conduz pelos sextetos deste poema único, indiviso, denso e pesado, quase claustrofóbico, versos que parecem vomitados do mais imo e mais fundo de um self torturado pela busca quase irrespondível do que salvar de seu naufrágio humano, existencial, poético e visceral.

Não fosse o autor de outros 42 livros de poemas, este Iceberg que Nauro põe a navegar na Praia Grande de sua amada/odiada São Luís, seria o suficiente para colocá-lo como um marco, um farol, um ponto de excelência, altíssimo e altíssono, na prateleira mais alta da Poesia do Maranhão.

Este testamento poético, nessa altitude e voltagem pinaculares, só podem deixar-nos, ao final da leitura, perplexos e maravilhados, angustiados e deslumbrados por esses versos perfurantes e agônicos, crispados e convulsos, quase como bofetadas sonoras em nossa epiderme rasa, anestesiada por simulacros e por selfies que nada mais refletem ou influenciam senão obesos vazios sem tutano.

Viva a literatura maranhense, capaz de ostentar gigantes como este imenso Poeta e seu gigantesco, hercúleo, irretocável Iceberg vocabular. Ninguém passará rasamente acomodado e meão ao ser tocado pela magia agônica deste petardo de um Poeta absurdamente maior.

                                                                                                                       Viriato Gaspar (poeta)


sexta-feira, 8 de agosto de 2025

COMO EM UM JOGO DE ESPELHOS - SOBRE THOMAS MANN (Por Adonay Ramos Moreira)

                                                                Adonay Ramos Moreira


(sobre Thomas Mann)



Carpeaux não está de todo equivocado quando, em seu ensaio O Admirável Thomas Mann, reunido em volume na obra A Cinza do Purgatório, traça um perfil duvidoso de Thomas Mann, em um de seus ataques mais violentos contra o romancista de A Montanha Mágica. É preciso que se compreenda que a unanimidade nem de longe é uma característica dos gênios. Mann não constituiria uma exceção a essa regra, apesar de não merecer todas as investidas apaixonadas do mestre austríaco. Seja como for, o caso é que Carpeaux via naquele célebre alemão qualquer coisa como uma personalidade pesada, um grande filósofo sem ideias, que possuía o inabalável dom de preencher páginas e mais páginas com uma filosofia de segunda ordem, que não resistiria a um olhar mais atento.

A crítica tem lá certa fundamentação. Como quase todos os autores alemães, Mann de fato possuía uma atração irresistível ao pensamento e à necessidade de filosofar. Desse mesmo mal sofreram Goethe e Hölderlin, e mesmo um romancista aparentemente místico como Herman Hesse não deixa de possuir em seus romances verdadeiros tratados filosóficos, alguns visivelmente morais, como O Lobo da Estepe e O Jogo das Contas de Vidro, obras nas quais, ao lê-las, sente-se um certo sabor de advertência moral, que impõe às conquistas da inteligência ocidental qualquer coisa como uma repreensão.

Mann, portanto, não é um cavaleiro solitário nesse vasto campo de batalha. O século XIX foi mesmo prolífico em autores cujos trabalhos encerram verdadeiras doutrinas. E não é senão como doutrina que podemos ler obras como O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Judas, o Obscuro, de Thomas Hardy, Guerra e Paz e Anna Karenina, de Tolstói, Madame Bovary e Bouvard e Pécuchet, de Flaubert e, sobretudo, os verdadeiros sistemas filosóficos de Dostoiévski, cujos personagens, assim como os de Shakespeare, na maioria das vezes funcionam como ilustrações para uma grande ideia, e seus diálogos socráticos, que certamente fariam inveja a Platão, chegam por vezes a verdades tão profundas que serviram de modelo a muitos dos pensadores que a ele se seguiram. Não é senão a uma lamentável representação do famoso sonho de Raskólnikov em Crime e Castigo que se deve aquele desesperado ato de Nietzsche de se jogar em Turim, em 3 de janeiro de 1888, sobre um pobre cavalo que, açoitado, agonizava ante as investidas de seu dono, episódio que, segundo Ricardo Piglia, confirma de uma vez por todas o bovarismo do grande filósofo alemão.

Ao que parece, Mann não inaugura nenhuma escola. É o legítimo herdeiro de uma cultura para a qual as ideias, sobretudo as complexas, são um lugar-comum e uma necessidade. Sua prosa possui aquele mesmo peso que encontramos nos sistemas filosóficos de Kant e Hegel, mas, ao contrário deles, foi capaz de inserir no tom eminentemente professoral de sua tradição certa leveza, mas uma leveza possível a seu tempo. Um leitor desavisado pode facilmente encontrar em seus romances certas dificuldades, mas elas são facilmente superáveis e quase sempre voluntárias.

Leitor de Schopenhauer, Thomas Mann nem de longe pode ser considerado seu fiel continuador. Como quase todo artista alemão, Mann possuía quase uma fascinação doentia pela estética, mas esse seu amor se deve menos à influência de Schopenhauer do que a certa propensão natural alemã à estetização, como vemos nas composições de Wagner, na poesia de Goethe, nos quadros de Albrecht Dürer, no teatro de Bertolt Brecht e na filosofia de Nietzsche. É desse último, inclusive, que Mann descende. Ao contrário do que a princípio se possa imaginar, é sobretudo a Nietzsche que o célebre romancista alemão deve sua filosofia da decadência. E não poderia ser diferente. A presença de Nietzsche significou um verdadeiro divisor de águas na história da cultura ocidental moderna. E igualmente se fez sentir na literatura alemã. Carpeaux chega a apontar, em sua célebre História Concisa da Literatura Alemã, que à Bíblia de Lutero e à tradução de Shakespeare por Christoph Martin Wieland, publicada entre 1762 e 1766, deve-se a renovação da literatura alemã. Não se estaria cometendo nenhum equívoco ao se acrescentar o nome de Nietzsche a essa dupla.

É dele, ao que parece, que Mann herdou seus temas mais caros. Não é em vão que em seu romance mais célebre, A Montanha Mágica, Hans Castorp só consegue encontrar o conhecimento através da enfermidade e da vida nas alturas, dois símbolos eminentemente nietzschianos. Assim como o Zaratustra de Nietzsche, Castorp precisa subir a montanha para encontrar a verdade, como, aliás, fizeram grandes personagens. É no Monte Tabor que Cristo empreende, ante João, Tiago e Pedro, a sua transfiguração. E é igualmente no Gólgota que ele se entrega como o mais santo dos cordeiros. De igual forma, é a enfermidade uma das formas da razão no pensamento nietzschiano, e em mais de uma passagem de sua obra, sobretudo em seu Ecce Homo, ele deixou isso claro. É exatamente a enfermidade que, ao obrigar Hans Castorp a permanecer no sanatório Berghof, em Davos, permite-lhe ver melhor a realidade que o cerca.

É igualmente de Nietzsche que Mann herda essa certa sensualidade estética presente em livros como Morte em Veneza. Tadzio é a própria beleza que se fez carne, a adoração que o personagem Gustav von Aschenbach sente por ele é a mesma adoração que um esteta pode sentir pela arte, tal como Nietzsche via essa mesma imagem da beleza nos romances de Dostoiévski ou na Carmen de Bizet. Mann segue, em grande medida, esses mesmos passos, sem, contudo, aspirar ao estilo aforístico de seu oculto mestre.

Um artista frequentemente disfarça as suas mais caras influências quando possui erudição suficiente para fazê-lo. Ou então elas lhe são de tal modo poderosas e íntimas que chegam a se tornar inconscientes, quase involuntárias. No caso de Thomas Mann, o mais sensato é classificá-lo no segundo caso. Ao se olhar no espelho, não é Schopenhauer quem o mira, mas Nietzsche, ainda que ele possa tentar nos convencer do contrário. Como em um jogo de espelhos no qual o jogador acaba sempre malogrado, Mann foi um continuador silencioso e competente de alguns dos temas mais caros a Nietzsche, ainda que, conscientemente, acreditasse cultivar aquela estética da decadência representada pela filosofia de Schopenhauer. E seus romances mais célebres são quase ilustrações de certas ideias significativas daquele polêmico pensador de Röcken, e foi com elas que ele traçou algumas das imagens mais poderosas do século XX, o qual, assim como Hans Castorp e Nietzsche, sofria de uma grande enfermidade.

Carpeaux talvez achasse extravagante tudo isso. Mas mesmo um grande crítico pode falhar. Sua virulenta e impiedosa crítica a Thomas Mann constitui uma prova disso. E, até que se prove o contrário, livros como Morte em Veneza, A Montanha Mágica e Doutor Fausto seguirão sendo lidos continuamente, pois esta é exatamente uma das funções da grande arte: atravessar incólume a escuridão dos séculos.



Adonay Ramos Moreira

Escritor e advogado