sexta-feira, 8 de setembro de 2017

A presidência do inquérito policial e a requisição de diligências

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Márcio Adriano Anselmo*

A presidência do inquérito policial está centralizada na figura do delegado de polícia, cujo modelo se consolidou com a Constituição Federal de 1988, fortalecido pela Lei 12.830/13. Com base nesse formato, busca-se uma dinâmica investigatória que visa sopesar direitos e garantias fundamentais do indivíduo, sem que este novo delineamento acarrete prejuízos à ordem pública, à eficácia da lei penal ou aos interesses da coletividade.

Portanto, ao final de todo o procedimento investigatório, o quadro fático desenhado pelo delegado de polícia deverá se aproximar dos acontecimentos reais, propiciando a responsabilização criminal de uns e a ratificação da inocência de outros, como forma de aplicação dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, impedindo acusações injustas, arbitrárias e desprovidas de necessidade. A investigação criminal atua, portanto, como o primeiro filtro a evitar um processo penal desnecessário.

Nesse cenário, cabe inicialmente estabelecer o papel do órgão ministerial no que diz respeito à sua atuação em relação às investigações conduzidas pelo delegado de polícia, cujo artigo 129 da Constituição Federal aponta como função “VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais”.

A Lei Complementar 75/93, ato normativo primário que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, aponta, no artigo 38, entre suas funções institucionais, “requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, podendo acompanhá-los e apresentar provas”.

Percebe-se que o órgão ministerial, quanto a sua relação com inquérito policial, não tem disponíveis poderes ou funções que o autorizem a atuar como ator principal no inquérito policial. Cabe-lhe, nos termos legais, funções anômalas, estranhas à capacidade investigatória do delegado de polícia. Não se descuida aqui da decisão no Recurso Extraordinário 593.727 MG, que atribui ao Ministério Público poderes investigatórios, mas se busca tratar do papel do delegado de polícia na condução da investigação criminal consubstanciada no inquérito policial.

A requisição de instauração de inquérito policial, o acompanhamento de sua tramitação, o direito de apresentação de provas e, por fim, a requisição de diligências investigatórias são poderes decorrentes da função fiscalizatória que a lei e o texto constitucional atribuem ao parquet.

A Lei 12.830/13 buscou sedimentar o papel do delegado de polícia na condução do inquérito policial, conferindo-lhe as características de discricionariedade, autonomia e exclusividade para a condução da investigação criminal.

Quanto à discricionariedade, tal característica da atuação do delegado de polícia é evidenciada desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal, por meio da redação do artigo 6º, quando coloca, à disposição da autoridade policial, sem caráter de exaustividade ou vinculação, inúmeras diligências investigatórias que, conforme juízo de oportunidade e conveniência, poderão ser adotadas para alcance da apuração de autoria e materialidade. A Lei 12.830/13, por sua vez, dispôs que “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.

O atributo da autonomia da autoridade policial está instituído no artigo 2º, parágrafo 1º da referida lei, quando é colocada como incumbência do delegado de polícia a condução da investigação criminal. O termo “condução” pressupõe a direção, o exercício de toda a atividade investigatória desenvolvida no decurso do inquérito policial, o que implica a inadmissibilidade de interferências internas, dentro do próprio órgão da Polícia Judiciária, ou externas, provenientes de demais participantes da persecução penal, impedindo-os de se imiscuir na esfera decisória do delegado de polícia.

Por fim, no que toca ao atributo da exclusividade, observa-se que a lei atribui ao delegado de polícia a privatividade para o indiciamento por meio da Lei 12.830/13. Ora, se a análise da materialidade e indícios de autoria é privativa do delegado de polícia, somente a este cabe, ao término da investigação, apontar a ocorrência de infração penal e sua eventual autoria.

A condução do inquérito policial, conferido com exclusividade, autonomia e discricionariedade, impede que outros órgãos ou entes se manifestem na fase investigatória da persecução penal de modo a se imiscuir no juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia.

O órgão ministerial, por sua vez, deve ser incumbido da função fiscalizatória sobre a investigação criminal, exercendo estritamente um controle de legalidade em todo o decurso da fase apuratória. Esse papel apresenta-se fundamental, sobretudo a fim de evitar-se o nefasto desvirtuamento da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Nesse cenário, assume papel de suma importância o controle externo da atividade policial exercido pelo parquet.

Dessa forma, a interação entre o órgão ministerial, enquanto titular da ação penal e custos legis, e o delegado de polícia, enquanto presidente do inquérito policial, deve observar os contornos de seus papéis em três momentos distintos da investigação criminal:

a) fase anterior à instauração da investigação;
b) fase de tramitação do inquérito policial (da instauração até o relatório);
c) fase posterior à finalização das apurações.

Na fase anterior ao início da investigação criminal, situada entre a prática delitiva e a instauração do inquérito policial, o órgão ministerial desempenha sua função fiscalizatória por meio da requisição de instauração do inquérito policial. Em virtude do princípio da obrigatoriedade, inexiste juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia para decidir se instaura ou não o inquérito policial, salvo se a requisição é manifestamente ilegal.

A requisição da instauração do inquérito policial, como dito, apresenta caráter vinculado, devendo ser atendida pela autoridade policial. Apesar disso, o conteúdo da portaria, peça que formaliza o início da investigação criminal, é campo discricionário e exclusivo do delegado de polícia, a quem cabe definir a capitulação legal e as diligências investigatórias iniciais. É vedado ao órgão ministerial se imiscuir neste campo sob pena de assumir, por via oblíquas, a presidência/condução da investigação criminal, o que encontra expressa vedação na Lei 12.830/13 e na jurisprudência dos tribunais superiores. Eventuais diligências referidas na requisição de instauração, em que pese posição contraria de Aury Lopes Junior e Ricardo Jacobsen Gloeckner[1], devem ser entendidas como sugestões de diligências, sempre submetidas ao juízo do presidente da investigação, a quem compete analisar sua conveniência e oportunidade.

No curso do inquérito policial, compreendido entre a portaria de instauração e a confecção do relatório final, cabe unicamente ao delegado de polícia decidir sobre a diligência investigatória empregada, momento adequado para execução, técnicas de inteligência necessárias e teses jurídicas que se mostrarão úteis para a apuração dos fatos. Essas variáveis localizam-se na órbita do juízo de oportunidade e conveniência do delegado de polícia, campo de mérito administrativo. Cabe destacar que o parquet no curso do inquérito policial, citando novamente Aury e Ricardo Gloeckner[2], tem presença “secundária, acessória e contingente, pois o órgão encarregado de dirigir o inquérito policial é a polícia judiciária”. Caso pretenda dirigir a investigação criminal, deve o órgão ministerial fazê-lo mediante seus procedimentos próprios de investigação (já considerados válidos pelo Supremo Tribunal Federal), e não pelo inquérito policial.

Ademais, as diligências requeridas pelo parquet no curso da investigação devem ser compreendidas à luz do artigo 14 do CPP, que estabelece que “o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”, sob pena de clara afronta ao princípio de paridade de armas, que deve ser aplicado também à fase do inquérito policial.

A requisição de diligências investigatórias pelo órgão geraria, de forma transversa e arbitrária, uma usurpação do papel de condutor da investigação. Em regra, a execução de diligências investigatórias é feita pelo delegado de polícia, seja diretamente ou por meio de seus agentes, independente de manifestação ministerial e de prévia autorização judicial, utilizando-se para isso do poder requisitório, por meio do qual são trazidas aos autos o resultado de perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos, conforme prescreve o artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.830/13.

Em caráter excepcional, no caso de medidas invasivas, a execução de diligências investigatórias pelo delegado de polícia submetidas à prévia autorização judicial, o Ministério Público fiscaliza a regularidade da medida, exarando, para isso, parecer de legalidade da medida.

Por fim, um terceiro momento do inquérito policial se dá com o oferecimento do relatório, que marca o encerramento da atuação da polícia judiciária, uma vez que a autoridade policial reconhece que foram exauridas as diligências investigatórias disponíveis e adotadas as teses jurídicas mais adequadas para a busca do esclarecimento dos fatos. Abre-se, a partir de então, espaço para a apreciação do resultado da investigação pelo órgão ministerial.

A partir da apresentação do relatório, o papel de protagonista da persecução penal é transferido do delegado de polícia, presidente da investigação criminal, para o Ministério Público, titular da ação penal, a quem cabe promover a processualização do feito por meio da apresentação da peça acusatória.

Aqui reside o instante em que se mostra cabível a requisição das diligências investigatórias em face do delegado, enquanto presidente da investigação, sem que ocorra disfunção ou desvirtuamento dos órgãos da persecução penal. Não obstante tal autorização, a requisição de diligências investigatórias deve obedecer aos limites legais e constitucionais impostos ao exercício do poder requisitório ministerial, sob pena de ser negada, de forma legítima, pela autoridade policial o cumprimento das diligências.

Estabelecido o momento de seu cabimento no curso do inquérito policial, é necessário definir os limites do poder requisitório a fim de se evitar abusos ou ilegalidades. O artigo 16 do CPP traz uma primeira limitação, tornando a requisição cabível somente quando a diligência for imprescindível para o oferecimento da denúncia:

Sendo assim, nota-se que a diligência deve ter por finalidade a construção da materialidade e dos indícios de autoria relacionados aos fatos sob apuração, já que são esses os requisitos para o oferecimento da denúncia, não sendo cabível o uso da requisição para obtenção de informações destoantes do contexto investigativo ou para instruir indiretamente procedimentos de natureza cível ou administrativa.

Por conseguinte, não é pertinente a requisição para que a autoridade policial expeça ofícios a outros órgãos nem determine a execução de outros atos de natureza cartorária ou sem conexão com a atividade-fim da Polícia Judiciária, sob o risco de tornar ilegítimo o exercício do seu poder requisitório. Observa-se, portanto, que a diligência deve ser imprescindível ao oferecimento da denúncia.

O artigo 47 do CPP impede ainda que parquet faça requisições à autoridade policial quando as informações complementares estejam na posse de outra instituição, vedando que se utilize da intermediação de outra instituição para a obtenção dos elementos de convicção que julgar necessários, sob pena de se causar ônus desnecessário ao órgão de Polícia Judiciária:

Artigo 47. Se o Ministério Público julgar necessários maiores esclarecimentos e documentos complementares ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los.

Outro ponto que carece de análise aqui é a questão da cota ministerial para fins de indiciamento, cujo entendimento pacífico já se demonstra no sentido do não cabimento, uma vez que se trata de ato privativo da autoridade policial, que, da mesma forma, não vincula ao órgão ministerial para o oferecimento da denúncia.

Em síntese conclusiva, em conformidade com o quadro constitucional e legal existente, nota-se que o poder de requisição de diligências do parquet no curso do inquérito policial somente pode ser exercido nos dois momentos bem definidos: anteriormente à instauração do inquérito policial, sem qualquer interferência em outros aspectos discricionários do delegado de polícia; no segundo momento, entre a confecção do relatório conclusivo e a propositura da ação penal. Contudo, as requisições de diligências após essa fase devem apresentar as seguintes características para serem reputadas legítimas:

I) natureza investigatória criminal: consiste em diligências que devam ter a necessária intermediação da Polícia Judiciária, a quem cabe a exclusividade de atuação investigatória no inquérito policial, excetuando-se, assim, diligências que tenham por objetivo a instrução de procedimentos civis;

II) imprescindibilidade para o oferecimento da denúncia: consiste na diligência que tenha como escopo a identificação da materialidade e autoria delitiva dentro do contexto investigativo;

III) domínio da polícia judiciária: consiste na diligência que tenha como destinatário final a Polícia Judiciária, devendo a requisição, caso assim não ocorra, ser encaminhada diretamente ao órgão que possua a informação, documento ou qualquer outro elemento de informação que seja pertinente.

IV) fundamentação: as requisições de diligências devem ser fundamentadas e não meramente pontuadas no poder requisitório genérico previsto no artigo 129 da Constituição Federal. A fundamentação é elemento essencial a fim de que se possa ser realizado o controle de legalidade do ato. Assim, caso o delegado de polícia entenda incabível a diligência requisitada, por ausência de fundamento legal, deve submeter o feito ao controle judicial de legalidade.

O panorama contemporâneo da investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia, delineado pelo texto constitucional e pela Lei 12830/13, confere clara função investigatória à autoridade policial, com evidentes marcas de exclusividade, autonomia e discricionariedade. Por outro lado, é dada ao órgão ministerial uma função fiscalizadora, de notável importância, colocando-o como órgão de controle de legalidade da Polícia Judiciária, seja por meio do seu poder requisitório, seja por meio de manifestações posteriores às representações do delegado de polícia, emanados por meio de parecer.

Essa divisão de papéis, pois, é imprescindível para o desempenho de uma persecução penal em completa consonância com os mais basilares preceitos do Estado Democrático de Direito e garantias do indivíduo sujeito à investigação por meio do inquérito policial.

[1] Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 276-277.
[2] Op. Cit., p. 250.
*Márcio Adriano Anselmo é delegado da Polícia Federal, doutor pela Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

Fonte: Site da Escola Superior da Polícia Civil do Paraná http://www.escolasuperiorpoliciacivil.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=2292&tit=A-presidencia-do-inquerito-policial-e-a-requisicao-de-diligencias

sábado, 2 de setembro de 2017

Demain dès l'aube - poème de Victor Hugo (Amanhã, ao amanhecer - poema de Victor Hugo)

Nesse post faço uma homenagem, com um vídeo-poema, ao grande escritor e poeta francês Victor Hugo. Trago para vocês um de seus poemas mais tocantes, chamado "Demain dès l'aube" (Amanhã, ao amanhecer), escrito em memória da filha morta, Léopoldine Hugo. Em complemento, abaixo estão o texto original de Hugo, em sua língua natal, e uma tradução em português, de autoria de JB Xavier.

O vídeo que aqui abrilhanta ainda mais os versos hugueanos, e que vocês certamente gostarão de ver, foi produzido, montado e realizado por Geoffroy Groult, com Nicolas Vincent, Rémi Monedi e Elise Correard. Deleitem-se!


Demain, dès l’aube…

Victor Hugo
Demain, dès l’aube, à l’heure où blanchit la campagne,
Je partirai. Vois-tu, je sais que tu m’attends.
J’irai par la forêt, j’irai par la montagne.
Je ne puis demeurer loin de toi plus longtemps.

Je marcherai les yeux fixés sur mes pensées,
Sans rien voir au dehors, sans entendre aucun bruit,
Seul, inconnu, le dos courbé, les mains croisées,
Triste, et le jour pour moi sera comme la nuit.

Je ne regarderai ni l’or du soir qui tombe,
Ni les voiles au loin descendant vers Harfleur,
Et quand j’arriverai, je mettrai sur ta tombe
Un bouquet de houx vert et de bruyère en fleur.


Victor Hugo, extrait du recueil «Les Contemplations»


Amanhã, ao amanhecer...
Victor Hugo
Tradução: JB Xavier
 
Amanhã, ao amanhecer, quando de branco o campo se banha,
Eu partirei. Sei que você me vê, e sei que espera por mim...
Seguirei pelas florestas e cruzarei a montanha.
Não posso ficar longe de você tanto tempo assim...
 
Marcharei com os olhos fixos em meu pensamento,
Sem desviar minha atenção, sem ouvir qualquer ruído,
Só e desconhecido, costas encurvadas, as mãos num lamento,
Dia triste como a noite para mim, quando eu tiver partido.
 
Nem para o dourado da noite que cai eu olharei,
Nem verei as velas que para Harfleur descem em triste ardor...
E quando eu chegar, em seu túmulo colocarei
Um buquê de verde azevinho e urzes em flor.
 
Fontes e referências:
geoffroy-groult.com Canal do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=lwVWtPzTFIU
Poema em tradução portuguesa por JB Xavier em http://www.jbxavier.com.br
Poema em francês retirado do site: www.poetica.fr

Ednardo - Terral (Pessoal do Ceará)

domingo, 27 de agosto de 2017

Agonia e esperança (por Marco Antonio Villa)

Marco Antonio Villa

O governo Michel Temer agoniza. Na nossa história não será o primeiro Presidente da República que encerra melancolicamente seu mandato muito antes do término do período determinado pela Constituição. A diferença é que Temer ao assumir o cargo — em um cenário de desmoralização das instituições — sinalizou que seria o presidente das reformas, que moralizaria a administração pública e conduziria à retomada do crescimento econômico. Acabou estimulando otimismo em um país abalado pelo impeachment de Dilma Rousseff.
Estas expectativas duraram cerca de um ano, até a noite do dia 17 de maio, quando o Brasil tomou conhecimento da delação premiada da JBS. O impacto das revelações aprofundou a crise ética do governo — já abalado por várias denúncias de corrupção que atingiram o círculo íntimo do Presidente — e aumentou a impopularidade de Temer, chegando ao patamar mais baixo de avaliação negativa dos últimos trinta anos. Pior: fez com que a base parlamentar no Congresso Nacional fosse erodida. Desde então, qualquer votação tem resultado incerto, fazendo com que a negociação de cargos e favores se transformasse em política de governo.
Michel Temer chegou ao governo por um dispositivo constitucional. Era o Vice Presidente da República. Simplesmente compôs a chapa. No primeiro mandato de Dilma Rousseff pouco apareceu. Dedicou-se a manter o controle do PMDB, sempre lutando contra a bancada do Senado, que desejava partilhar os ganhos obtidos na intermediação de nebulosos negócios públicos. Insatisfeito com as nomeações controladas pelo PT, divulgou uma carta-manifesto que caiu no vazio. Isto porque não exigia o cumprimento de princípios políticos. Pelo contrário, reclamava que seus amigos do PMDB não estavam sendo contemplados no saque organizado pelo projeto criminoso de poder petista.
O fracasso do governo Temer acabou atingindo os brasileiros que imaginavam que o país poderia enfrentar a corrupção e voltar a crescer. O cenário de desânimo é a cada dia mais presente no cotidiano. Como se não adiantasse fazer política — ou, ao menos, acompanhar os acontecimentos. No ar fica a sensação de ausência de rumo, como se tivéssemos condenados a viver em meio à corrupção e com uma elite política insensível. O desafio é evitar que a agonia do governo Temer não atinja a esperança da mudança almejada pelos brasileiros.
Fonte: Revista IstoÉ Online
http://istoe.com.br/agonia-e-esperanca/

"O crime se globalizou antes das nações" (Entrevista com o sociólogo Hugo Acero Velásquez)

O sociólogo colombiano Hugo Acero Velásquez virou uma autoridade em segurança pública após encabeçar iniciativas bem-sucedidas em seu país, que resultaram na queda de índices de violência. Ele chega ao Rio de Janeiro nesta semana para dar sua contribuição ao Reage, Rio, movimento lançado pelos jornais O Globo e Extra, que promove um debate na quarta-feira, dia 30, e na quinta-feira, dia 31, no Museu de Arte do Rio (MAR), com o intuito de discutir propostas para o estado em diversos setores. “É preciso um trabalho integrado para enfrentar organizações criminosas complexas, cujas estruturas vão muito além dos territórios das favelas”, aponta Velásquez em entrevista a ÉPOCA, por telefone, diretamente da cidade de Medellín, onde ele assessora a prefeitura e a polícia local.
Hugo Acero no Brasil.Ele vêm ao Rio para debater soluções para a crise de segurança (Foto: Newman Homrich)
ÉPOCA – No Rio de Janeiro, algumas favelas contempladas com programa de pacificação voltaram a sofrer com o narcotráfico. É possível reaprumar o projeto de pacificação?
Hugo Acero Velásquez  – 
Estamos falando de um tema complexo, que não se restringe à distribuição de drogas. A droga que chega ao Rio de Janeiro não ingressa quilo a quilo, grama a grama, mas, sim, em grandes quantidades. Estamos diante de estruturas complexas do crime organizado. Portanto, é um problema que não diz respeito somente ao prefeito ou ao governador. É necessário um trabalho conjunto, que deve ter o envolvimento do governo federal, das polícias Federal e Militar, do Ministério Público, todos trabalhando em equipe. É preciso um trabalho integrado para enfrentar organizações criminosas complexas, cujas estruturas vão muito além dos territórios das favelas.
ÉPOCA – Que estruturas criminosas vão além das favelas?
Velásquez  – 
O narcotráfico é um problema anterior às favelas, e de ordem mundial. Há um segundo tema, que não diz respeito somente ao narcotráfico. No interior das favelas há o fenômeno da extorsão. Há também milícias que em alguns casos dizem combater os traficantes, mas terminam por se associar a esse negócio. O narcotráfico é um tema muito mais complexo. Ele é como uma grande franquia, que se espalha por vários negócios. É narcotráfico, mas é também sicariato [ação de pistoleiros], assassinato, extorsão, sequestro, e em alguns casos incrementa outros delitos, como o furto, pois os usuários que consomem drogas necessitam de dinheiro para comprá-la. Como se vê, é uma cadeia mais ampla, de maior complexidade.
ÉPOCA – Há poucas instituições do estado intervindo nas favelas?
Velásquez  – É necessário haver uma intervenção integral. O setor público tem de articular as investigações com base na inteligência policial, mas só isso não basta. O estado possui outras ferramentas. Não se trata só de entrar e deter os delinquentes. Não é apenas uma questão de polícia e Justiça. É preciso também melhorar as condições de vida. São crianças, jovens, homens e mulheres que terminam no narcotráfico ou em negócios ilegais por não terem outras possibilidades. As intervenções sociais não transformaram as favelas.
ÉPOCA – Estamos vendo no Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, o aumento do uso de armamentos pesados, como fuzis. Como acabar com esse problema?
Velásquez  – A incidência da violência com armas mais sofisticadas, como fuzis, e não só pistolas e revólveres, mostra que se está diante de estruturas criminosas que não podem ser combatidas apenas com ações de transformações sociais. Essas estruturas criminosas não nasceram devido ao fenômeno da desigualdade social. Elas nasceram porque o negócio é rentável. Esses grupos atuam e se armam porque o narcotráfico rende muito dinheiro, e é importante reconhecer isso para enfrentá-lo. A intervenção deve ser feita para que os bandidos não controlem territórios. Mas, infelizmente, o negócio das drogas não vai acabar. Enquanto houver consumo, haverá venda.
ÉPOCA – Proibir o porte de arma por decreto, como ocorreu em Bogotá, seria uma boa medida para o Brasil?
Velásquez  – O delinquente não se importa se há ou não restrição. Ele circula por esses territórios com plena liberdade, exibindo fuzis. Se a autoridade está disposta a combater, não é só uma questão de inteligência e Justiça, é necessário enfrentamento. As estruturas são muito mais complexas do que aquelas que cercam os jovens nas favelas. Outros líderes muito grandes estão à frente do negócio.
ÉPOCA – Até agora, o Rio de Janeiro atingiu a marca de quase 100 policiais mortos em 2017. Por outro lado, verifica-se também o aumento de criminosos mortos em confronto. Como deter essa escalada de violência?
Velásquez  – 
Isso é possível se, e somente se, as autoridades, as diferentes polícias, os setores de inteligência e de investigação criminal, tanto federal quanto estadual e municipal, trabalharem em conjunto. É preciso haver organização para fazer frente a essa estrutura.
ÉPOCA – No Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, a impressão que temos é que o combate à violência é como enxugar gelo. Há solução a curto prazo que nos dê esperança de dias melhores?
Velásquez  – 
Há que ter esperança, mas é necessário trabalhar duro. Há muitos anos venho trabalhando em várias cidades colombianas e obtendo bons resultados. Em Medellín, onde trabalho agora, temos problemas, que estamos enfrentando. Chegamos a registrar 20, 30 mortes diárias. Em 2002, Medellín teve uma taxa de 186 homicídios para cada 100 mil habitantes. Esse índice caiu para 34 homicídios em 2007, nos dois anos seguintes subiu para 94, e desde 2010 vem baixando, a ponto de hoje estar na casa de 21 homicídios para cada 100 mil habitantes.
"A legalização das drogas é uma das soluções, ao lado de ações no âmbito de segurança pública e Justiça"
ÉPOCA – O Primeiro Comando da Capital (PCC), uma facção de São Paulo, assumiu as ações na fronteira com o Paraguai. Que risco isso representa?
Velásquez  – 
O PCC cresceu, em parte, porque o Estado não está completamente organizado para enfrentá-lo. O narcotráfico é um negócio transnacional. A droga que chega ao Rio de Janeiro é cultivada na Colômbia, no Peru. A Colômbia chegou a ter dois cartéis dos mais poderosos do mundo, o de Cali e o de Medellín. A máfia colombiana, que chegou a ser a primeira do mundo em determinado momento nos anos 1980 e 1990, hoje é a quarta ou a quinta, já não tem tanto prestígio. Hoje a máfia mexicana está no Brasil, na Argentina, assim como a máfia russa, que atua no continente de maneira muito forte. Os primeiros que vieram com a globalização foram os delinquentes. O crime organizado se globalizou antes mesmo das nações. Ele tem mais dinâmica que os Estados. Os Estados são mais burocráticos, têm de fazer acordos, convênios, pactos, e tudo isso demora.
ÉPOCA – O tráfico de drogas cresce na Amazônia. O que explica esse evento?
Velásquez  – 
Na Colômbia, a área de cultivo de folha de coca se multiplicou por três. E não é só com a folha de coca. Aumentou também o cultivo de papoula, para a fabricação de heroína, devido ao crescimento da demanda. Ambas são cultivadas perto da fronteira com o Brasil, país que se tornou um ponto na rota da droga que vai para a África e a Europa. Ela é embarcada em portos convencionais, onde as máfias atuam.
ÉPOCA – É somente uma falsa percepção ou a insegurança de fato cresce no continente?
Velásquez  – 
As más notícias não podem ser atribuídas aos meios de comunicação. Há países sul-americanos e centro-americanos que conseguiram reduzir substancialmente seus índices de violência. A situação está estável no Peru, Equador e Chile. Por outro lado, há nações, como a Venezuela, onde a violência tem crescido muito. Por uma decisão política, resolveram armar as pessoas para fazer a revolução, e elas agora podem estar roubando e assaltando. Argentina e Paraguai também têm problemas.
ÉPOCA – O senhor defende, não é de hoje, uma articulação de alcance mundial para a legalização das drogas. Esse debate ganhou força?
Velásquez  – 
A legalização não é a única saída para o problema. Mas é uma das soluções, ao lado de ações no âmbito de segurança pública e Justiça. Nos Estados Unidos, a maconha já é legalizada em alguns estados. No Uruguai, começou um experimento interessante por iniciativa do presidente José  Mujica. É um debate que está avançando muito. Há uns anos ganhou o impulso de ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso e César Gaviria. Há exatamente seis anos, nosso atual presidente, Juan Manuel Santos, levantou esse debate num encontro antidrogas. O tema, que era discutido por acadêmicos, intelectuais e investigadores, passou a ser uma posição de governo
Fonte: revista Época Online
http://epoca.globo.com/brasil/noticia/2017/08/hugo-acero-velasquez-o-crime-se-globalizou-antes-das-nacoes.html

Arqueólogos israelenses descobrem mosaico de 1.500 anos


quinta-feira, 27 de julho de 2017

As águas do tempo: a história do banho

Por um tempo, o hábito se tornou tão incomum, que algumas civilizações tomavam apenas um banho por ano

Bruno Vieira Feijó

 A obra barroca 'The Bathing Pool' | <i>Crédito: Wikimedia Commons
A obra barroca 'The Bathing Pool' | Crédito: Wikimedia Commons

A humanidade melhora com o passar dos séculos, certo? Nem sempre. Prova disso é o que ocorreu com um de nossos hábitos mais comuns, o banho. Durante a Idade Média, os ocidentais abandonaram os sofisticados rituais de limpeza da Antiguidade e mergulharam numa profunda sujeira. Principalmente por causa da religião, o homem medieval comum achava suficiente tomar um banho por ano. Foi preciso muito tempo – e alguns bons exemplos dos povos orientais e indígenas – para que voltássemos às nossas asseadas origens.
Acredita-se que todos os povos, desde tempos imemoriais, tenham praticado alguma forma de higiene pessoal. Os primeiros registros do ato de se banhar individualmente pertencem ao antigo Egito, por volta de 3000 a.C. Os egípcios realizavam rituais sagrados na água e tomavam ao menos três banhos por dia, dedicados a divindades como Thot, deus do conhecimento, e Bes, deus da fertilidade.
“Mais do que limpar o corpo, eles presumiam que a água purificava a alma”, diz o egiptólogo francês Christian Jacq, fundador do Instituto Ram­sés, em Paris. “A crença valia tanto para a realeza, cortejada com óleos aromáticos e massagens aplicadas pelos escravos, quanto para as populações mais pobres, que recorriam inclusive a profissionais de rua quando não conseguiam tratar da própria beleza.” O apreço pela higiene é o motivo ao qual arqueólogos atribuíram a sobrevivência dos egípcios às pragas e doenças que assolaram a Antiguidade.
A Grécia foi outro local em que os banhos prosperaram. Em Cnossos e Faístos, na ilha de Creta, os palácios de 1700 a.C. a 1200 a.C, surpreenderam por suas avançadas técnicas de distribuição da água. “Todo banquete que precisava ser luxuoso incluía uma sessão de banho para os convidados”, explica Georges Vigarello, professor de Ciências da Educação da Universidade de Paris-5.
Embora os gregos tenham iniciado a prática dos banhos públicos no Ocidente, os pioneiros nos balneários coletivos foram os babilônios. A diferença é que, na Grécia, o banho não era motivado apenas pela higiene e espiritualidade. Entre 800 a.C. e 400 a.C., o esporte, particularmente a natação, era um dos três pilares da educação juvenil – ao lado das letras e da música. Bom cidadão era aquele que sabia ler e nadar, como comprovam imagens presentes em centenas de vasos de cerâmica pintados naquela época.
Os romanos herdaram muito da cultura da Grécia, incluindo a adoração pelo banho. Mas, entre eles, esse hábito tomou proporções inéditas. Enquanto construíam um dos maiores impérios de todos os tempos, os romanos levavam a suntuosidade de suas termas (enormes balneários públicos) aos mais diversos lugares. Por causa disso, algumas cidades europeias ganharam nomes que incluem, literalmente, a palavra “banho” – é o caso de Bath, na Inglaterra, Baden Baden e Wiesbaden, na Alemanha, e Aix-le-Bains, na França. Mas as maiores termas ficavam mesmo na capital do império, Roma: eram as de Caracala, inauguradas em 217, e as de Diocleciano, do ano 305. Esses edifícios, cujos nomes homenageavam imperadores, tinham capacidade para receber, respectivamente, 1.600 e 3.200 pessoas.
Romanas nas termas da Pompéia / Wikimedia Commons
A engenharia romana teve que se desdobrar para acompanhar o frenesi dos banhos. Na onda das termas surgiu o hipocausto, uma espécie de assoalho construído sobre câmaras de gás subterrâneas. Esse sistema ajudava a esquentar os cômodos e mantê-los climatizados. Cada salão das termas era decorado com estatuetas e mosaicos. Ao redor de um pátio central, havia uma espécie de sauna, um vestiário e piscinas de água quente, morna, fria e ao ar livre. Os complexos de banho do Império Romano tinham ainda jardins, bibliotecas e restaurantes (como se fossem antepassados dos spas e resorts de hoje).
As visitas diárias às termas tinham fundo religioso, já que o banho público era um ato de adoração à deusa Minerva. E o costume não era restrito às classes mais abastadas. Boêmios, prostitutas, imperadores, filósofos, políticos, velhos e crianças, todos se banhavam no mesmo espaço, sem constrangimento. Ponto de encontro e de troca de informações, era o lugar onde um aristocrata podia medir sua popularidade de acordo com a quantidade de cumprimentos que recebia. “Em épocas de plebiscito, os plebeus nem precisavam pagar a pequena taxa que geralmente era cobrada. Os custos da entrada eram cobertos pelos ricos e nobres”, escreveu o historiador francês Jérôme Carcopino no livro Aspects Mystiques de la Rome Païenne (“Aspectos místicos da Roma pagã”).
Prazeres perdidos
A liberdade que os romanos tinham de se banhar e ficar nus em público foi entrando em declínio à medida que uma nova religião se tornava popular por todo o império. Era o cristianismo, que pregava a castidade e se tornou a crença oficial de Roma no ano 380. Menos de um século depois, o império viria abaixo, junto com vários de seus costumes. Enquanto isso, a Igreja seguiria cada vez mais forte. Foi a gota d’água para que os prazeres do banho fossem boicotados durante cinco séculos. 

Mania de brasileiro
A higiene dos índios demorou a ser aceita pela elite portuguesa
Obra mostra como a água dominava a vida dos indígenas  /  Albert Eckout
Quando aportaram por aqui, em 1500, os portugueses se assustaram com a limpeza dos índios, que mergulhavam em rios e no mar até 12 vezes ao dia. Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra de Cabral, chegou a escrever, surpreso: “São tão limpos e tão gordos e tão formosos que não podem ser mais”. Os portugueses acabaram cedendo aos hábitos dos nativos brasileiros, percebendo que eles eram muito mais saudáveis que os da Europa. Os membros da corte, entretanto, resistiram aos deleites da água, pois estavam acostumados a passar meses sem sequer mudar de camisa. Já os mais humildes aceitaram o banho mais facilmente – começaram lavando os pés diariamente em bacias. “Com o tempo, o rio se tornou extensão da casa. Sem rede encanada, era nele onde se lavavam as roupas, as louças e o corpo”, escrevem Renata Ashcar e Roberta Faria no livro Banho – Histórias e Rituais. No século 18, algumas cidades já usavam a água de poços e chafarizes mantidos pelo Estado. Quando a família real portuguesa chegou ao Brasil, em 1808, fez do Rio de Janeiro o primeiro município a contar com água encanada no país.

➽ Começava a Idade Média, época em que a cristandade varreu da Europa as termas, o esporte e outras atividades em que as pessoas se expusessem demais. Gregório I, o Grande, que foi papa entre 590 e 604, chegou a qualificar o corpo de “abominável vestimenta da alma” – ou seja, a carne era o depósito de tudo o que era pecado. Com tantos pudores, o prazer de tomar banho de corpo inteiro passou a ser visto como um ato de luxúria. Lavar as mãos e o rosto (às vezes nem isso) bastava. Quando muito, era aceitável tomar um banho por ano. Um único barril de água servia para toda a família, sem que a água fosse trocada. “O privilégio do primeiro mergulho era do homem da casa, enquanto as crianças ficavam por último, na sopa suja que sobrava”, escrevem Renata Ashcar e Roberta Faria no livro Banho – Histórias e Rituais.
Sem água corrente, as pessoas se viravam como podiam. A limpeza da pele era feita friccionando-a com um pano úmido. Mas, mesmo entre os nobres, o ritual era repetido apenas a cada dois dias. Os cabelos deviam ser escovados com um tipo de pó que supostamente mantinha os fios limpos. E, como não podia deixar de ser, era preciso muita maquiagem e perfume – nas roupas, nos corpos e nos cabelos – para amenizar o mau cheiro.
Toda essa falta de higiene abriu as portas para epidemias devastadoras, propagadas principalmente por roedores. Foi o caso da peste, que matou cerca de 200 milhões de pessoas ao longo da Idade Média. Ao notar que muitos judeus não pegavam a doença, a Inquisição chegou a julgá-los e executá-los, acusados de bruxaria. Mas eles, na verdade, não agiam de má-fé – muito pelo contrário. O que fazia os judeus serem menos suscetíveis a doenças era uma recomendação religiosa que seguiam: lavar as mãos antes das refeições e tomar banho ao menos uma vez por semana.
Escravos do antigo Egito dando banho em seu senhor / Wikimedia Commons
Foi só durante as Cruzadas, as guerras religiosas travadas entre os séculos 11 e 13, que muitos europeus puderam redescobrir as delícias da água, na aproximação – ainda que violenta – entre Oriente e Ocidente. É que, fora dos territórios dominados pela Igreja, onde ocorreram muitos combates, os banhos públicos da Antiguidade haviam sido mantidos, com seus rituais e instalações sofisticados. Nas hamans, casas de banho turco-árabes, os muçulmanos aproveitavam o prazer de alternar águas quentes e frias. Sessões de banhos completos incluíam depilação, massagem, hidratação, branqueamento dos dentes e maquiagem – ritual que, até hoje, é seguido meticulosamente. Os cavaleiros cristãos que partiram para o Oriente com a missão de tomar a Terra Santa dos muçulmanos não se fizeram de rogados. “Não só passaram a se banhar por lá mesmo, como espalharam pela Europa a prática de jogar água pelo corpo quando retornavam dos combates”, contam Renata Ashcar e Roberta Faria. A certa altura, a atitude contagiou o restante da população européia medieval e alguns banhos públicos chegaram a reabrir as portas.
Nem só aos sábados
Depois do fim da Idade Média, a religião voltou a suprimir os banhos no Ocidente. Nos séculos 16 e 17, irredutíveis cristãos bradavam que a água dilatava os poros da pele, por onde a saúde escaparia e o mal penetraria, em formas como a friagem e os germes. Todo mundo acreditou nisso, incluindo os médicos. E, enquanto nações como Portugal e Espanha descobriam, na América, populações que amavam tomar banho, os europeus voltavam para o mundo da sujeira.
Existiam algumas medidas de higiene, é verdade. Mas elas não eram lá essas coisas. Antes ou depois de qualquer atividade física e após as refeições enxugava-se a pele com um pano e simplesmente mudava-se de camisa. Supunha-se que a roupa branca agia como “esponja” e absorvia a sujeira. Assim, trocar de roupa passou a ser sinônimo de se lavar – e, para se sentir limpas, as pessoas usavam punhos e colarinhos impecáveis.
A privação de água durou até o século 18, quando se provou definitivamente que as doenças se originavam não do banho, mas da falta dele. O iluminismo, que celebrava a razão e defendia a tese de que o mundo deveria ser esclarecido pela ciência, ajudou a fazer do ato de se lavar o símbolo da saúde. Banhos públicos para higiene, esporte e terapia foram, aos poucos, sendo reabilitados.
Mas, após anos de religiosos dizendo o contrário, não foi todo mundo que voltou a tomar banho, mesmo com insistentes conselhos médicos. Quando a célebre rainha Vitória subiu ao trono, em 1837, ainda não havia local para banho no palácio de Buckingham, sede da coroa inglesa. Até os anos 1870, eram raras as casas ocidentais que tinham um cômodo para seus habitantes se lavarem.
Já cientes do bem que a água podia fazer pela saúde, médicos banhavam doentes à força em hospitais. “Não era difícil encontrar um sujeito que, tendo de enfrentar a experiência do primeiro banho, demonstrasse verdadeiro terror, gritasse, tentasse escapar da sensação de sufocamento e palpitação que a água fria proporcionava”, diz um relato da época, citado pelo historiador americano Law­rence Wright no livro Clean and Decent: The Fascinating History of the Bathroom (“Limpo e Decente: A Fascinante História do Banheiro”).
Os banhos rotineiros reapareceram definitivamente nas grandes cidades ocidentais apenas por volta dos anos 1930. Mas, no começo, eles não eram lá tão frequentes. Eram tomados aos sábados, dia em que também eram trocadas as roupas de baixo das crianças. Nessa época, navios ofereciam cabines de banho e barcos delimitavam áreas em rios que serviam como piscinas naturais. Após o fim da Segunda Guerra, em 1945, quando boa parte das casas europeias teve que ser reconstruída, elas ganharam banheiros, abastecidos com a cada vez mais comum água encanada. A França foi a pioneira nas inovações sanitárias, seguida pela Inglaterra e pela Alemanha.
Hoje, voltamos a expor nossos corpos sem pudor, como fazíamos na Antiguidade. Mas isso não ocorre mais durante o ato de se lavar, e sim depois dele. “Ao mesmo tempo em que os trajes começam a valorizar o corpo e deixar adivinhar suas formas, realçando-as e, por vezes, revelando o bronzeado e a pele lisa e firme, o banho se transforma num hábito estritamente íntimo”, escrevem os historiadores franceses Gerard Vincent e Antoine Prost na obra História da Vida Privada: da Primeira Guerra aos Dias Atuais. Tomar banho virou um método individual de se preparar para a exposição pública. Não é à toa que todo banheiro contemporâneo que se preze tem um espelho – um objeto que, dificilmente seria visto num lugar como esse.

 Difícil higiene
Saiba como os antigos se viravam sem sabão, chuveiro ou xampu
Antigo balneário romano na Inglaterra / Reprodução 
➽ Ferro no couro: Uma espátula de ferro de mais ou menos 30 centímetros, o strigil era usado pelos antigos gregos e romanos para esfregar vigorosamente a pele, untada com um óleo verde-oliva. Entre os ricos, essa limpeza era feita por escravos.
➽ Cascata caseira: Sem rede encanada, os povos antigos tomavam banho com água derramada de bacias e jarros. Às vezes a pessoa ficava dentro de uma banheira rasa de pedra, mas o mais comum era se inclinar num banco de pedra.
➽ Limpeza pesada: Os babilônios ferviam gordura animal com cinzas vegetais para passar sobre a pele e os cabelos. Já no Egito, uma mistura de bicarbonato de sódio, cinzas e argila fazia as vezes do sabão.
➽ Arranca-cascão: No Oriente, materiais ásperos feitos de rocha ou cerâmica eram usados para esfoliar a pele e retirar a sujeira. O ritual se completava com o uso de água de flor de laranjeira, pentes, pastas e perfumes.
➽ Asseio preguiçoso: As banheiras portáteis se popularizaram no fim do século 19, primeiramente entre os ingleses. Quando um fidalgo ia tomar banho, camareiras carregavam a banheira para o quarto e a enchiam à mão, com água aquecida.

Saiba mais
Banho - Histórias e Rituais, Renata Ashcar e Roberta Faria, 2006
Uma História do Corpo na Idade Média, Jacques Le Goff e Nicolas Truong, 2006
Clean and Decent: the Fascinating History of the Bathroom, Lawrence Wright, 2005 

Retirado da Revista Aventuras na História
Link: http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/aguas-tempo-historia-banho-435136.phtml#.WXpJQOmQzIU

A LITERATURA COMO REMÉDIO: OS CLÁSSICOS E A SAÚDE DA ALMA | DANTE GALLIAN

domingo, 7 de maio de 2017

Como a evolução transformou os gatos em animais solitários

GatoDireito de imagemPIXABAY
Image captionPara os gatos, os benefícios da vida em grupo não compensam ter que dividir comida
Quão difícil pode ser domar um gato?
Pergunte a Daniel Mills, professor de Veterinária comportamental na Universidade de Lincoln (Reino Unido). Em um estudo recente, Mills e sua colega Alice Potter comprovaram de modo científico o que já se sabia na prática: gatos são mais autônomos e solitários do que os cachorros.
Apesar de envolver a já famosa reputação dos gatos, executar essa pesquisa foi mais difícil do que poderia parecer.
"Eles são complicados se você quer que façam algo de uma certa maneira", diz Mills. "Eles tendem a fazer o que querem."
Donos de gatos do mundo inteiro irão concordar. Mas por que exatamente os gatos são tão relutantes em cooperar, seja entre si ou com humanos? Ou, perguntando de outra forma, por que tantos outros animais - domésticos ou selvagens - têm espírito de equipe?
A vida em grupo é comum na natureza. Pássaros formam bandos e peixes, cardumes. Predadores frequentemente caçam juntos. Até mesmo o leão, parente do gato doméstico, vive em grupo.
Para as espécies que são caçadas por outras, obviamente há uma estratégia de maior segurança em um bando. "Chama-se efeito de diluição", diz o biólogo Craig Packer, da Universidade de Minnesota (EUA).
"Um predador só consegue matar um, e se há cem da mesma espécie isso reduz as chances de cada um deles ser pego para 1%. Mas se você estiver sozinho você será escolhido 100% das vezes."
ZebrasDireito de imagemALAMY
Image captionZebras atravessam rio em grupo na África
Animais em bando também se beneficiam do efeito "muitos olhos atentos": quanto maior o grupo, é mais provável que alguém perceba um predador se aproximando. "E quanto mais cedo você detectar o predador, mais tempo tem para iniciar a fuga", diz Jens Krause, da Universidade de Humboldt em Berlim, Alemanha.
Essa vigilância coletiva traz outras vantagens. Cada um pode gastar mais tempo e energia procurando por comida. E não se trata apenas de evitar predadores. Animais que socializam em grupos não precisam perambular em busca de companheiros, o que é um problema para espécies solitárias que vivem em territórios amplos.
Uma vez que se reproduzem, muitos animais que vivem em grupo adotam a máxima "é necessária uma aldeia inteira para criar uma criança", com os adultos trabalhando em equipe para proteger ou alimentar os mais novos.
Em várias espécies de pássaros, como a zaragateiro-árabe de Israel, os pequenos permanecem em grupos de familiares até que eles estejam prontos para procriar. Eles dançam em grupo, tomam banho juntos e até trocam presentes entre si.

Princípio 'Volta da França'

Viver em grupo também poupa energia. Os pássaros que migram juntos ou os peixes que vivem em cardumes se movimentam com mais eficiência do que os mais solitários.
É o mesmo princípio que os ciclistas da Volta da França utilizam quando formam um pelotão. "Os que estão mais atrás não precisam investir tanta energia para atingir a mesma velocidade de locomoção", diz Krause.
Como pinguins e morcegos podem atestar, a vida pode ser mais calorosa quando se vive cercado de amigos.
Pinguins-imperadores (Aptenodytes forsteri)Direito de imagemALAMY
Image captionOs pinguins-imperadores (Aptenodytes forsteri) se agrupam para suportar o frio
Com tantos benefícios, pode parecer surpreendente que qualquer animal rejeite seus companheiros. Mas, como os gatos domésticos demonstram, a vida em grupo não é para todos. Para alguns animais, os benefícios da coletividade não compensam ter que dividir comida.
"Chega a um ponto em que se alimentar com outros indivíduos com grande proximidade reduz a sua quantidade de alimento", diz John Fryxell, biólogo da Universidade de Guelph, no Canadá.
Um fator-chave para essa decisão é ter alimentação suficiente, o que depende de quanta comida cada animal precisa. E os gatos têm um gosto caro. Por exemplo, um leopardo come cerca de 23 kg de carne em poucos dias. Para gatos selvagens, a competição por alimentos é cruel, e por isso leopardos vivem e caçam sozinhos.
Há uma exceção à regra de felinos solitários: leões. Para eles, é uma questão territorial, diz Packer, que passou 50 anos de sua vida estudando os leões africanos. Alguns locais da savana têm emboscadas perfeitas para a caça, então controlar esse lugar resulta em uma vantagem significativa em termos de sobrevivência.
"Isso impõe sociabilidade porque você precisa de equipes para dominar seu bairro local e excluir outros times. Assim, o maior time vence", diz Packer.
O que torna essa vida em grupo possível é que a presa de um único leão - um gnu ou uma zebra - é grande o bastante para alimentar várias fêmeas de uma vez só. "O tamanho da caça permite que eles vivam em grupos mas é a geografia o que realmente os leva a viver em grupos", diz Packer.
Não é a mesma situação dos gatos domésticos, já que eles caçam animais pequenos. "Eles vão comê-lo inteiro", diz Packer. "Não há comida o suficiente para dividir."
Gatos e ratoDireito de imagemLIFE ON WHITE/ALAMY
Image captionGatos comem um rato inteiro por vez, sem possibilidade de dividir

Domesticação

Essa lógica econômica está tão integrada ao comportamento dos gatos que parece improvável que até mesmo a domesticação tenha alterado essa preferência fundamental por solidão.
Isso é duplamente verdade quando você leva em consideração o fato de que os humanos não domesticaram os gatos. Em vez disso, em seu próprio estilo, os gatos domesticaram a si mesmos.
Todos os gatos domésticos são descendentes dos gatos selvagens do Oriente Médio (Felis silvestris), o "gato-do-mato". Os humanos não coagiram esses gatos a deixar as florestas: eles mesmos se convidaram a entrar nos alojamentos de humanos, onde havia uma quantidade ilimitada de ratos ao seu dispor.
A invasão a essa festa de ratos foi o início de uma relação simbiótica. Os gatos adoraram a abundância de ratos nos alojamentos e depósitos e os humanos gostaram do controle grátis da infestação de ratos.
Os gatos domésticos não são completamente antissociais. Mas sua sociabilidade - em relação a outro humano ou entre eles - é determinada inteiramente por eles, em seus próprios termos.
"Eles mantêm um nível alto de independência e se aproximam de nós apenas quando querem", diz Dennis Turner, especialista em comportamento animal no Instituto de Etologia Aplicada e Psicologia Animal em Horgen, Suíça.
"Os gatos desenvolveram muitos mecanismos para se manter à parte, o que não os conduz para a vida em bando", diz Mills. Os gatos marcam seu território para evitar encontros constrangedores entre si. Se eles acidentalmente se toparem, os pêlos são levantados e as garras saltam para fora.
Gatos brigamDireito de imagemBLICKWINKEL/ALAMY
Image captionGatos domésticos têm uma tendência a brigar
Em determinadas circunstâncias pode parecer que os gatos domésticos adotaram a vida coletiva, como quando um grupo vive junto em um galpão. Mas não se engane. "Eles têm laços muito frouxos e não têm uma identidade real como grupo", diz Fryxell. "Eles só gostam de ter um lugar comum para deixar seus filhotes."
Aliás, mesmo diante de um grande perigo, quando eles se unem para se defender, é pouco provável que os gatos colaborem entre si. "Não é que algo que eles tipicamente façam quando se sentem ameaçados", diz Monique Udell, bióloga da Universidade de Oregon (EUA).
Os gatos simplesmente não acreditam na força de um grupo. Tudo isso ajuda a explicar por que os gatos têm a reputação de dominação impossível. Ainda assim, há evidências de que o desprezo dos gatos pela vida em grupo possa ser uma fraqueza.

Caixa-preta da menta felina

Um estudo publicado em 2014 no periódico científico Journal of Comparative Psychology investigou os traços de personalidade dos gatos domésticos. A conclusão foi que manter-se solitário e desinteressado torna os gatos neuróticos, impulsivos e resistentes a ordens.
Curiosamente, no entanto, os gatos domésticos parecem capazes de cooperar um pouco mais que seus parentes selvagens. Quando os pesquisadores compararam o gato doméstico a quatro selvagens - o gato selvagem escocês, o leopardo-nebuloso, o leopardo-da-neve e os leões africanos -, os gatos domésticos foram os que mais se aproximaram dos leões em termos de personalidade.
LeoasDireito de imagemAFRICA PHOTOBANK/ALAMY
Image captionLeoas vivem em grupo, diferentemente de outras espécie de felinos
É preciso dizer que os gatos domésticos trilharam um longo caminho a partir de seus ancestrais até aqui em termos de tolerar a companhia um do outro. Mesmo que gatos morando em galpões formem laços frouxos, eles ainda demonstram um nível impressionante de aceitação da presença do outro nesses espaços confinados.
Em Roma, cerca de 200 gatos vivem lado a lado no Coliseu, enquanto na ilha de Aoshima, no Japão, o número de gatos supera o de pessoas em uma proporção de seis para um. Essas colônias podem não ter tanta cooperação, mas estão bem avançadas em relação ao passado solitário dos gatos domésticos.
Enquanto isso, pode ser mais fácil para pesquisadores encontrar os gatos "no meio do caminho" ao realizar seus experimentos, fazendo certas concessões.
Quando Udell fez suas primeiras experiências com gatos, enfrentou uma série de dificuldades ao tentar motivar suas cobaias a participar de certa atividade. Ela já havia trabalhado com cachorros, que estariam dispostos a fazer qualquer coisa em troca de um petisco.
Os gatos, contudo, eram mais exigentes. Com o passar do tempo, Udell percebeu que teria mais sucesso se desse aos gatos a opção de escolher sua recompensa.
"Acho que parte do desafio é o quanto sabemos sobre os gatos", diz. Se os cientistas começarem a entrar na caixa-preta que é a mente felina, a domesticação à força pode ser substituída por uma coerção mais astuta.
"Muito do comportamento animal - incluindo uma afinidade ou resistência à domesticação - é profundamente ligado ao circuito neural. Portanto, parece pouco possível deixar para trás anos de seleção natural", diz Fryxell.
"Mas quem sabe? Obviamente, leões conseguiram essa proeza, então deve ser possível que mutações ocorram", diz ele. "E se eles conseguiram fazer isso, talvez domesticar gatos não seja uma ideia tão maluca, afinal de contas."
Fonte: Site da BBC Brasil

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