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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

CINCO MODOS DE USAR (PSICANÁLISE E RELIGIÃO)

Polarizadas ou convergentes e capazes de dialogar, a análise freudiana e a síntese religiosa aproximam-se ou distanciam-se a gosto dos fregueses
Ricardo Torri de Araújo
Tome as palavras “psicanálise” e “religião”. Escreva uma frase. Uma frase que faça sentido, é claro! Uma frase pertinente, defensável. O que você escreveria? Que verbo colocaria entre os substantivos “psicanálise”, “religião”? Que termo usaria primeiro? Que palavra depois? A mim, ocorrem cinco possibilidades. Melhor dizendo: tenho conhecimento de que, pelo menos, cinco frases já foram consistentemente escritas com essas duas palavras.
Vou começar pela mais inesperada delas. Esta: “A religião influenciou a psicanálise”. Esta frase não me teria ocorrido se outra pessoa não a tivesse formulado. Na verdade, não apenas um, mas dois autores, por razões distintas, subscreveram essa frase. Os dois são judeus: David Bakan e Gérard Haddad. Em Sigmund Freud e a tradição mística judaica (1958), Bakan defende a tese de que, ao criar a psicanálise, Freud foi grandemente influenciado pelo pensamento místico judaico, em particular, pela cabala. Em O filho ilegítimo (1981), por sua vez, Haddad sustenta o parecer de que, na invenção da psicanálise, Freud esteve sob a influência do Talmud e do Midrásh judaicos. Segundo Bakan, a psicanálise herdou principalmente conteúdos do judaísmo; de acordo com Haddad, a afinidade entre a psicanálise e o judaísmo diz respeito, sobretudo, a aspectos formais.
Certamente, a psicanálise deve muito à judeidade de Freud. Mas parece pouco provável que deva algo ao judaísmo como religião. A condição judaica de Freud foi importante para a criação da psicanálise na medida em que, como judeu, ele estava preparado para assumir uma posição minoritária. Independência de julgamento e tenacidade: eis o que Freud aprendeu com o fato de ser judeu. Nesse sentido, não foi por acaso que o descobridor da sexualidade infantil, o desbravador do “sexto continente” e o autor da teoria da etiologia sexual das neuroses tenha sido um homem acostumado a estar na oposição.
Segunda frase: “A psicanálise e a religião concordam entre si”. O maior representante desse ponto de vista foi um amigo pessoal de Freud: o pastor luterano OskarPfister, o “pai” do diálogo entre a psicanálise e a religião. No dia 9 de outubro de 1918, provocativo, Freud perguntou a Pfister por que a psicanálise precisou esperar por um judeu completamente ateu para ser criada. Passadas três semanas, surpreendentemente, o pastor respondeu que, de saída, Freud não era judeu e, em segundo lugar, que tampouco era ateu. Um homem que busca a verdade e combate pelo amor só pode estar muito próximo de Deus, argumentou Pfister. O pastor acrescentou: “Jamais houve cristão melhor”.
Embora não seja nem de longe o único, Pfister é, sem dúvida, o campeão do concordismo. Ele não apenas defendeu a compatibilidade entre a psicanálise e a fé cristã, mas fez do inventor da psicanálise uma espécie de cristão anônimo, “batizou” Freud. Não falta, porém, quem considere que a harmonização entre a psicanálise e a religião é uma operação que faz violência tanto a uma como à outra. A conciliação só é possível ao preço de uma adulteração de, pelo menos, uma das duas grandezas em jogo – ou ainda: de ambas!
Terceira possibilidade: “A psicanálise apenas purifica a religião”. Esta afirmação é, na verdade, uma tese auxiliar daquela que acabamos de considerar. A tensão entre a psicanálise e a religião – argumenta-se – é aparente; a psicanálise concorre apenas para a depuração da religião, não para a sua aniquilação, vindo, assim, em última análise, prestar-lhe um serviço involuntário. De novo, Pfister é o melhor porta-voz desse parecer. Em 1928, em A ilusão de um futuro – a sua réplica a O futuro de uma ilusão (1927), de Freud –, Pfister descreveu o método psicanalítico como “um instrumento maravilhoso para purificar e fazer avançar a religião”. Pretende-se que esse raciocínio valha seja para a experiência da análise, seja para o embate teórico com a psicanálise, isto é, tanto o crente que se deita no divã de um analista, quanto o teólogo que enfrenta o desafio que o pensamento de Freud representa sairiam ganhando com a psicanálise, não abandonariam a religião, mas, pelo contrário, teriam a sua fé depurada, amadurecida, tornada adulta, menos infantil.
De novo, seria muito conveniente – para a religião, entenda-se – se fosse assim. Mas não parece que as coisas se deem sempre desse jeito. Mais razoável é admitir que tudo pode acontecer com a fé de quem entra em contato com a psicanálise – seja com o divã do analista, seja com os livros de Freud. Tudo! Pode-se perder a fé; pode-se purificá-la; pode-se, nesse sentido, fortalecê-la; pode-se até adquirir a fé – ou recuperá-la – com a psicanálise. Em O dia em que Lacan me adotou (2002), Haddad, por exemplo, conta que recuperou a fé fazendo análise com o grande mestre parisiense. Mas não é todo dia que isso acontece.
Penúltima frase: “A psicanálise e a religião são incompatíveis entre si”. Psicanálise e religião são como “óleo e água”: não se misturam. Quando Hélio Pellegrino morreu – Pellegrino era psicanalista, marxista e cristão! –, um grupo de amigos decidiu homenageá-lo com um livro de artigos sobre psicanálise e religião. Deram-lhe o nome Hélio Pellegrino. A-Deus (1988). O artigo de Joel Birman teve por título: “Desejo e promessa, encontro impossível”. Segundo Birman, há uma polaridade insofismável entre a psicanálise e a religião; as duas coisas são essencialmente divergentes. E essa incompatibilidade reside fundamentalmente em que a religião é orientada, em suas práticas sociais, pela dimensão da promessa, ao passo que a psicanálise pretende apenas levar o sujeito ao encontro da verdade singular do próprio desejo.
Psicanálise e religião – desejo e promessa. Esse binômio pode ser multiplicado. A psicanálise e a religião não se dão. Porque a psicanálise (psico + análise) faz análise; a religião, síntese. A psicanálise desliga; a religião (do latim religare) liga. A psicanálise está do lado do inconsciente; a religião, do eu. A psicanálise está interessada no descentramento do sujeito; a religião, no seu centramento. Na psicanálise, trata-se do sujeito barrado; na religião, do indivíduo (in + dividuus = indivisível). Para a psicanálise, o sujeito é clivado; para a religião, ele é uno. A psicanálise tem a ver com o que é parcial; a religião, com o total. A psicanálise é “sexofílica”; a religião, não raro, “sexofóbica”. A psicanálise é arqueológica; a religião, teleológica. A psicanálise leva o sujeito a confrontar-se com o desamparo; a religião, pelo contrário, lhe oferece proteção. Mais! O que a religião e a psicanálise fazem com o real da castração é diferente. A religião vela, mascara, encobre, tampona a castração; a religião tapa o furo, obtura a falta, preenche o vazio, sutura a divisão, responde ao enigma, dá sentido ao sem-sentido, nomeia o inominável. A psicanálise… tudo ao contrário!
Admitir que há um problema – e um problema sério – entre a psicanálise e a religião não significa, porém, descartar o contato, o diálogo, a relação entre uma coisa e outra. Nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, chegou a haver 12 jesuítas – como o papa Francisco – na Escola Freudiana de Paris, o grupo de Lacan. E não me parece que esses senhores ignorassem as antinomias acima enumeradas. Mais recentemente, o também padre jesuíta Carlos DomínguezMorano publicou um livro intitulado: Psicanálise e religião (2000). O subtítulo da obra é Diálogo interminável. Sim, diálogo. Mas, interminável. Entre a psicanálise e a religião, não há possibilidade de síntese. Resta, pois, a manutenção de um questionamento mútuo. A relação entre a psicanálise e a religião está destinada a permanecer como questão sempre aberta. Ou seja, como um diálogo sem fim.
Por fim, a quinta e última frase: “A psicanálise é, ela mesma, uma religião”. Certa vez, o próprio Freud observou que o marxismo acabou ficando muito parecido com aquilo que combatia – ele pensava na religião. Não se poderia dizer o mesmo da psicanálise?  Há, de fato, semelhanças não desprezíveis entre a psicanálise e a religião.
Embora possa parecer estranho, no movimento psicanalítico há “deuses”. Numa carta que escreveu a Pfister, em 26 de fevereiro de 1911, Freud fez referência à “deusa Libido”; em O futuro de uma ilusão (1927), por sua vez, ele falou em “nosso Deus Logos”. Há uma “Sagrada Escritura”: as obras completas de Freud ou os Escritos (1966) de Lacan, por exemplo. Há “dogmas”. Em Memórias, sonhos, reflexões (1961), Jung escreveu: “Tenho ainda uma viva lembrança de Freud me dizendo: ‘Meu caro Jung, prometa-me nunca abandonar a teoria sexual. É o que importa, essencialmente! Olhe, devemos fazer dela um dogma, um baluarte inabalável’. Ele me dizia isso cheio de ardor, como um pai que diz ao filho: ‘Prometa-me uma coisa, meu caro filho: vá todos os domingos à igreja!’”. Há “papas”. Certa vez, Binswanger perguntou a Freud por que Jung e Adler, os seus alunos mais antigos e, talvez, mais bem dotados intelectualmente, o deixaram. Freud respondeu que eles quiseram se tornar papas. Há “cardeais”. Em 1912, por iniciativa de Jones, após as dissidências de Adler e Stekel e durante a crise que terminaria com a defecção de Jung, foi instituído um comitê secreto com seis membros, verdadeiro “colégio de cardeais”, em torno de Freud. Há “profetas”. No Hospital Psiquiátrico de Burghölzli, onde Jung trabalhava, diziam que Freud era Alá, e Jung, o seu profeta. Também se comparou Jung a Jesus, e Freud a João Batista. Há “missionários”. Freud esperava que Jung promovesse a difusão da psicanálise para além dos meios judaicos em que ela se encontrava inicialmente confinada. Na expressão de Fromm, Jung seria uma espécie de “Paulo da nova religião”. Há “heresias”. Numa carta a Pfister, datada de 24 de janeiro de 1919, Freud descreveu como “heréticas” as opiniões do pastor sobre a constituição e o significado da pulsão sexual; em Um estudo autobiográfico (1925), Freud se referiu a Adler e a Jung como os dois “hereges”. Há “excomunhões”. A segunda cisão do movimento psicanalítico francês, aquela que excluiu Lacan, ocorrida em 1964, ficou conhecida como a “excomunhão”. Há “católicos” e “protestantes”. Pode-se comparar a Associação Internacional de Psicanálise à igreja católica e os lacanianos aos protestantes. De fato, a primeira, fundada pelo próprio Freud, tem um caráter oficial; o cisma lacaniano, por sua vez, resultou numa verdadeira pulverização do movimento psicanalítico. Há Weltanschauung (cosmovisão). Apesar do que Freud escreveu, a teoria psicanalítica pode perfeitamente funcionar como uma visão globalizante. Segundo François Roustang – que foi psicanalista e padre jesuíta –, há psicanalistas que só entendem de psicanálise; para eles, a psicanálise é tudo, um discurso totalizante, análogo ao discurso religioso.
Essa lista poderia ser aumentada: no movimento psicanalítico, há também “oráculos”, “anátemas”, “conversões”, “noviços”, “liturgia”, “moral”, “hierarquia”, “intolerância” etc. Mas o que acima está elencado já basta. Não parece haver nenhuma impropriedade em afirmar que a psicanálise, muitas vezes, tem funcionado como uma religião. Talvez isso explique, ademais, o ateísmo de muitos seguidores de Freud. São ateus porque professam outra espécie de “religião”.
Como se vê, as relações entre a psicanálise e a religião dão o que pensar. O que pensar, o que falar, o que escrever. São seis, portanto, e não apenas cinco, as minhas frases sobre a matéria. Mais uma: “Psicanálise e religião dá o que pensar”.
Ricardo Torri de Araújo
é padre jesuíta, professor do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e autor de Deus analisado: os católicos e Freud (Loyola).
Fonte: Revista Cult - Ed. 190

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Lábia Universal

Por Rowan Moore Gerety

As autoridades dão um tratamento opaco aos processos criminais contra a Iurd, afirma ativista de direitos humanos. Foto: Rowan Moore Gerety

Poucos lugares do planeta fornecem terra mais fértil para uma mensagem de cura e prosperidade do que Moçambique. Com 90% da população tentando sobreviver com menos de dois dólares por dia, com metade das crianças sofrendo com desnutrição crônica, o país africano tornou-se um poderoso centro de captação de adeptos para a Igreja Universal do Reino de Deus, a Iurd.
Um exemplo do poder que a neopentecostal brasileira adquiriu em Moçambique ocorreu numa manhã de setembro de 2011. A Iurd promoveu o chamado “Dia de Decisões” (ou “Dia D”), um megaculto realizado no Estádio Nacional de Maputo, capital moçambicana. Teve como objetivo promover curas e demonstrações de fé e, claro, atrair novos fiéis. A igreja reuniu 42 mil pessoas no local e ainda viu outras 30 mil se aglomerarem do lado de fora, acompanhando via telão. As pessoas carregavam rosas nas mãos, símbolo do evento. A compor a massa estavam, entre ou-tros desesperados, jovens vítimas de poliomielite com suas bengalas, camponeses idosos descalços e vendedores ambulantes a sonhar com uma recompensa maior.
O megaculto marcou um ano lucrativo para a Iurd em Moçambique. O canal de televisão da igreja, a TV Miramar, ratificou-se como a líder de audiência. O seu apóstolo, Edir Macedo, foi recebido pelo presidente, Armando Guebuza. O chamado “Cenáculo da Fé”, um megatemplo para cultos, foi inaugurado em Maputo. E, por último, a concentração de populares no Dia D, que contou com a presença do primeiro-ministro Aires Ali e da ministra da Justiça, Benvinda Levy, entre outros figurões da política local.
Durante 20 anos de existência em Moçambique, a Iurd cresceu sempre além das expectativas e apesar das vozes contrárias de seus críticos. Nos primeiros anos da expansão, a Iurd enfrentou o então ministro de Cultura e Desporto, Mateus Katupha, que criticou o uso de instalações esportivas para eventos religiosos (enquanto seu atual sucessor presenciou o Dia D in loco). Em meados dos anos 1990, o falecido Carlos Cardoso, estrela do jornalismo moçambicano, publicou uma série de editoriais dizendo que a Iurd constituía uma empresa, ao invés de uma igreja, e como tal, deveria ser sujeita a impostos. -Concorrentes do canal Miramar – a TIM e a STV – têm feito reportagens sobre ex-fiéis da Iurd que entregaram as suas casas à igreja, na esperança de recompensas divinas.
Até hoje, epítetos como “Pastores Ladrões” e a “Igreja de Burla” (fraude), em homenagem à Universal, ecoam nos transportes públicos em Maputo. Descontentes com a igreja de Edir Macedo existem aos borbotões.
Num grupo de coral de outra igreja, a reportagem encontrou três personagens que lamentam ter participado dos quadros da Iurd. Graça entregou um crédito bancário no altar da Iurd para resolver um conflito com seu marido. Selma, que procurou seu filho durante 20 dias na Suazilândia e, aconselhada por um pastor, doou 1,2 mil dólares à igreja antes de tomar conhecimento do seu assassinato. E Felicidade, que interrompeu a construção da sua casa e deixou 25 sacos de cimento no quintal da igreja para se beneficiar de uma bênção anônima.
As três senhoras recordavam as exortações, entrevistas individuais e visitas à casa feitas pelos pastores da Universal, prática posteriormente considerada pelas três como mecanis-mo de manipulação.
Apesar das críticas, a Iurd estabeleceu-se como um ancoradouro na corrente principal da sociedade moçambicana. Nenhuma das queixas-crimes apresentadas contra a Iurd já logrou uma decisão judicial. A TIM e a STV cobram alto pelo enquadramento dos spots da Iurd em suas programações. A imprensa independente, apesar dos comentários ocasionalmente mordazes contra ela, deixa-se subsidiar pela propaganda. Um anúncio recente mostra um grupo de fiéis levantando retratos do presidente Guebuza durante uma “oração pela paz” da Iurd.
Tensões antigas com membros do gover-no foram resolvidas por meio de uma sutil simbiose com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o partido no poder. “Certo, há muitos críticos”, assentiu José Guerra, fundador e presidente da Iurd em Moçambique. “Mas a Igreja fica mais cheia todos os dias.”
Para o Dia D, a estratégia de coerção da Universal assumiu o estilo das campanhas eleitorais. Caminhões com alto-falantes percorreram de forma constante os bairros de Maputo durante dois meses, tocando uma quizomba (música típica) sob encomenda.
A base da publicidade era um pôster, onipresente nas paredes e nos esgotos de Maputo, demonstrando o poder cura-tivo da fé: um par de pés coberto de repugnantes lesões (“Antes”) e, do outro lado, outro par, saudável e sem mancha nenhuma (“Depois”). “Meu nome é Armando”, anunciava o cartaz. “Sofri com feridas nos pés durante muito tempo. Mas, no dia em que tomei a decisão de participar de uma concentração de fé, fui curado e hoje estou livre.”
A Iurd foi a primeira igreja evangélica a se implantar em Moçambique, depois da longa e devastadora “Guerra de Desestabilização” (1976-1992).
A memória da antipatia marxista à religião, durante os primeiros anos da independência e do catolicismo paternalista do estado colonial, permitiu que a Iurd encontrasse um povo aberto a uma nova forma de expressão religiosa. Ganhou adeptos com o mesmo discurso existente no Brasil: a flexibilidade das suas orações, a ausência de regras fixas para os fiéis e, acima de tudo, pela grandeza da sua promessa de transformação pessoal.
Para cativar os fiéis, a Universal utiliza-se das mesmas mandingas e talismãs típicos das religiões afro de Moçambique, justamente as que tanto criticam por, na visão da própria Iurd, promoverem “feitiçaria”. A utilização de um óleo abençoado e um tratamento espiritual à base de envelopes com dicas a seguir (e pedidos de donativos) são de praxe. “Eles entendem de feitiçaria e tradição africana muito bem. Dão incensos, pulseiras e todas as coisas que um curandeiro dá”, afirma o Pastor Claudio Mulungo, da concorrente Igreja Maná.
A Igreja Universal, como a própria admite, tem a ousadia de prometer milagres a quem tiver a ousadia de pedi-los com convicção – muitos deles ambíguos e presenciados pela reportagem.
E todos os “milagres” do Dia D tenderam ao “infalível” frente às câmeras do Miramar. Um idoso com dores crônicas nas pernas conseguiu correr e tornou-se, nas palavras do pastor acompanhante, um paraplégico curado. Quando voltou a sentar, o senhor me confiou, em voz baixa, que seus pés recomeçaram a doer. Na lógica da Iurd, não “ser abençoado” ou não se beneficiar de um milagre qualquer significa um sacrifício insincero, uma fé insuficiente por parte do fiel. Os milagres malogrados (como o de um rapaz em cadeira de rodas, acorrentado a um cateter, a quem o testemunho público nem foi proposto, apesar do esforço feito para se levantar) não são divulgados. O mais importante é mostrar o sentimento do possível, de acreditar numa inversão da pers-pectiva calvinista: quem for um crente perfeito terá recompensa sem limite.
Dois dias antes do Dia D, Alice Mabota, presidente da Liga Moçambicana de Direitos Humanos (LDH), folheou o Código Penal, detendo-se no crime de burla – obtenção dos bens de outrem por meios fraudulentos.
A aplicação da lei a donativos religiosos poderia estabelecer um prece-dente polêmico: os partidários da Iurd defendem-se de acusações de burla por invocarem a livre e espontânea vontade dos doadores. Porém, existem casos na Iurd, afirma Mabota, que se aproximam de contratos verbais.
O escritório de serviços paralegais da Liga em Maputo recebe, com regularidade, reclamações de burla contra a Iurd, mas os queixosos sempre desistem antes de levar os seus casos à Procuradoria. Algumas disputas laborais da Iurd (por dispensas ilícitas, dívidas à segurança social, discriminação entre moçambicanos e brasileiros) foram resolvidas por acordos de indenização em favor de ex-funcionários da igreja, que já gastou mais de 100 mil dólares com isso. Várias grandes empresas estrangeiras em Moçambique já foram penalizadas dessa forma. Porém, os poucos processos de crime já iniciados contra a Iurd, segundo Mabota, são reféns de uma instrução opaca por parte da Procuradoria.
“Em um Estado normal, (esses casos) receberiam uma decisão. Mas aqui, não. É por causa do poder de influência da igreja através do medo.” As atividades da igreja de Edir Macedo em Moçambique não parecem ter suscitado o menor interesse das autoridades tributárias. “Aqui, em Moçambique”, disse Felicidade, antiga integrante da Universal, “eles (a Iurd) fazem e desfazem, porque o nosso governo aceita.”
Alice Mabota enumerou vários membros influentes do governo adeptos da igreja de Macedo. “Por que nossos dirigentes a frequentam?”, interrogou-se.
“Para mim, é o governo a cuidar de si mesmo. Quando chega a hora de votar, eles vão mobilizar todo o povo da Igreja Universal para votar neles.”
Ela vê um padrão de exploração no discurso de esperança ilimitada e sacrifício material promovido pela Universal. “O que é que vão decidir no Dia D?”, perguntou-me, dias antes do evento: “Vão decidir ter marido, vão decidir ter emprego, vão decidir serem ricos. Acha que é verdade? Mas como dizer a uma pessoa que não tem instrução para não acreditar nisso se deseja tanto acreditar?”.
No Dia D, após a “hora dos milagres”, a multidão foi instruída para voltar para casa com as suas rosas, que atrairiam todo o ruim, todo o mal no ambiente, para depois as levarem a uma Igreja Universal no domingo seguinte, a fim de serem incineradas. “As coisas mudam pouco a pouco”, concluiu Amélia, uma fiel que esperava para partir na boleia de um caminhão.
“Não vale a pena mudar de igreja só por não ver um milagre todos os dias. O Dia me mostrou que Deus existe”, insistiu. Mas eu liguei dias depois para Amélia e, até hoje, sua rosa ficou em casa.

Fonte: Carta Capital

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