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sábado, 7 de julho de 2012

Sobre a Condição Mecânica



Em 1962, era lançado o livro ‘Laranja Mecânica’, de Anthony Burgess, que ganhou grande notoriedade com o lançamento do filme homônimo em 1971, sob a direção de Stanley Kubrick.  Embora décadas tenham se passado desde então, as temáticas abordadas pela obra original e pela sua adaptação cinematográfica – dentre as quais figuram o livre-arbítrio e o condicionamento psicológico – permanecem ainda extremamente atuais. Sinal claro disso é a publicação, na edição do mês passado da The New Yorker, de uma seção aberta a comentários de Burgess.
O título da matéria, ‘The Clockwork Condition’ – algo como ‘A Condição Mecânica’ – faz referência à obra mais famosa do autor e ressalta as suas muitas preocupações que serão trabalhadas ao longo do texto, dentre as quais, os perigos e os dilemas morais pertinentes ao condicionamento humano. Burgess começa fazendo uma sinopse de sua obra. Trata-se da trajetória de um delinquente, Alex, que aterroriza as ruas de uma grande cidade à noite, roubando, vandalizando, estuprando e, eventualmente, matando. Ele é preso e punido, mas o Estado não se contenta meramente com a sua prisão e decide aplicar ao anti-herói uma terapia de aversão, que comprovadamente eliminaria quaisquer propensões criminais para sempre.
Alex é, assim, submetido a sessões de terapia, nas quais são injetadas nele substâncias que provocam fortíssimas náuseas, enquanto é forçado a assistir a cenas de violência ao som de música clássica. Conforme esperado, o resultado desse procedimento é que logo ele não consegue mais contemplar cenas de violência sem se sentir desesperadamente mal. Além disso, como o seu desejo sexual sempre esteve associado a traços de agressão, ele não mais consegue ver uma desejável parceria sexual sem ficar enjoado. O tratamento chega até mesmo a privá-lo de um dos seus maiores prazeres: ouvir as sinfonias de Beethoven, que Alex também passa a associar ao seu enorme mal-estar.
É nesse ponto que Burgess, na matéria da The New Yorker, conclui o óbvio – por mais que se queira, homens não são máquinas, e há uma grande dificuldade em isolar alguns impulsos de outros. Para o autor, o Estado passa dos limites quando inibe o prazer experimentado por Alex ao som daquilo que ele considerava a sublimação do belo: a música. Ao tentar inibir instintos violentos, o aparato estatal buscava livrar a sociedade de uma constante ameaça; já a eliminação do seu prazer em ouvir musica clássica em nada melhoraria a sociedade, figurando como um terrível efeito colateral.
É justamente ao som da Nona Sinfonia que Alex, enlouquecido, tenta se suicidar. Diante dessa situação, segmentos da sociedade se compadecem e Alex é submetido a outro tipo de terapia, que o restaura à sua condição anterior de ‘liberdade’. Ao final do romance, o protagonista imagina outros mais elaborados padrões de violência – o curioso, porém, é que Burgess ressalta a sua intenção de que esse fosse um final feliz. Explica-se: seria melhor ser uma pessoa má pelo livre-arbítrio do que ser uma pessoa boa através de lavagem cerebral científica.
O ponto do condicionamento humano, que Burgess chama de lavagem cerebral científica, é justamente um dos mais interessantes e relevantes para os tempos atuais abordados na história. É também em relação a isso que o autor dialoga com B. F. Skinner, na obra deste último ‘Para Além da Liberdade e da Dignidade’. Para Skinner, haveria inúmeros benefícios em um condicionamento positivo do ser humano – ou seja, haveria vantagens utilizando-se apenas estímulos positivos em resposta a comportamentos desejados. Segundo ele, seria evidente que o comportamento humano precisaria mudar; e, para isso, seria também necessário o que chamou de tecnologia de comportamento humano.
O que importaria, portanto, seria a exteriorização do ser humano, particularmente aquilo que faz um item do seu comportamento levar a outro. É em relação a essa exteriorização que o condicionamento positivo agiria: levaria a respostas instintivas condicionadas, não a reações racionais. No argumento de Skinner, apenas o condicionamento negativo transformaria o protagonista de ‘Laranja Mecânica’ em um modelo nauseado de não agressão.  Estabelece-se, assim, um diálogo entre Skinner e Burgess – o primeiro defende a técnica e toma-a como necessária para a sobrevivência da humanidade; o segundo repudia-a em suas versões positiva e negativa, preferindo preservar o campo de escolhas a ceder às mecanicidades do behaviorismo.
Embora a matéria de Burgess adentre algumas outras discussões profundas e dialogue também com outros autores – a exemplo de George Orwell, em seu ‘1984’, trabalhando a o caráter intolerável do fardo de escolher –, aqui o foco será o condicionamento humano. Tal escolha se dá pela pertinência dessa discussão em relação a um assunto já debatido no ERA, em textos de Roberta Avillez e Bennett Foddy  (este último em tradução autorizada): a gamificação. Trata-se de uma tendência de introduzir mecanismos de games na interação de setores da sociedade – tais como o empresarial – com a população.
Por esses mecanismos, pequenas recompensas são distribuídas às pessoas quando elas têm um comportamento desejado; estabelece-se uma espécie de competição entre o público-alvo, com o vencedor sendo aquele que acumulou mais recompensas por agir de um modo valorizado por quem promove esse ‘jogo’ na vida real. Em última instância, o que está em disputa é uma forma de condicionamento humano: apela-se para os instintos mais competitivos do ser humano, de forma que ele busque se destacar no processo e, para isso, aja conforme o esperado para acumular pequenas recompensas.
A gamificação já vem sendo questionada atualmente, especialmente em relação ao seu uso constante pelas grandes corporações. Conforme trabalhado nos textos citados sobre o assunto, parece haver um dilema moral em relação ao uso dessa estratégia para atingir determinados fins. Enquanto a preocupação em relação à gamificação corporativa reside no fato de as pessoas serem condicionadas a fazerem o que seria mais benéfico para as empresas, preocupação semelhante é expressa em ‘Laranja Mecânica’ quanto ao uso do condicionamento pelo governo, mesmo que visando o bem da sociedade.
Seja em uma ou em outra situação, o que está em debate é o limite entre a liberdade de escolher e a resposta mecanicamente condicionada – em uma referência ao título da obra mais famosa de Burgess, a fronteira entre a organicidade do ser humano e a mecanização que se tenta impor a ele. Kubrick, diretor da adaptação cinematográfica desse livro, trata o mesmo como uma sátira social referente à questão da psicologia behaviorista e do condicionamento psicológico como novas armas para um governo totalitarista impor vasto controle sobre os cidadãos e os transformar em pouco mais que robôs.
A referência de Kubrick aos governos totalitários parece se estender a várias esferas do mundo contemporâneo – se o pensamento da época de lançamento do filme era marcado pela preocupação com o totalitarismo, o de hoje volta-se para um condicionamento cada vez maior implantado pelos mais diversos setores sociais, como mostra a questão da gamificação. Parece propício que, logo no início de sua matéria da The New Yorker, Burgess tenha situado o período em que se passa ‘Laranja Mecânica’ da seguinte forma: ‘This city could be anywhere, but I visualized it as a sort of compound of my native Manchester, Leningrad, and New York. The time could be anytime, but it is essentially now’.(Tradução nossa: Essa cidade poderia estar em qualquer lugar, mas eu a visualizei como um misto da minha Manchester natal, Leningrado e Nova Iorque. O tempo poderia ser qualquer um, mas é essencialmente o atual)
Referência:
Anthony Burgess, “The clockwork condition”, The New Yorker, 4 de junho de 2012.
Fonte: era.org.br

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