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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

CINCO MODOS DE USAR (PSICANÁLISE E RELIGIÃO)

Polarizadas ou convergentes e capazes de dialogar, a análise freudiana e a síntese religiosa aproximam-se ou distanciam-se a gosto dos fregueses
Ricardo Torri de Araújo
Tome as palavras “psicanálise” e “religião”. Escreva uma frase. Uma frase que faça sentido, é claro! Uma frase pertinente, defensável. O que você escreveria? Que verbo colocaria entre os substantivos “psicanálise”, “religião”? Que termo usaria primeiro? Que palavra depois? A mim, ocorrem cinco possibilidades. Melhor dizendo: tenho conhecimento de que, pelo menos, cinco frases já foram consistentemente escritas com essas duas palavras.
Vou começar pela mais inesperada delas. Esta: “A religião influenciou a psicanálise”. Esta frase não me teria ocorrido se outra pessoa não a tivesse formulado. Na verdade, não apenas um, mas dois autores, por razões distintas, subscreveram essa frase. Os dois são judeus: David Bakan e Gérard Haddad. Em Sigmund Freud e a tradição mística judaica (1958), Bakan defende a tese de que, ao criar a psicanálise, Freud foi grandemente influenciado pelo pensamento místico judaico, em particular, pela cabala. Em O filho ilegítimo (1981), por sua vez, Haddad sustenta o parecer de que, na invenção da psicanálise, Freud esteve sob a influência do Talmud e do Midrásh judaicos. Segundo Bakan, a psicanálise herdou principalmente conteúdos do judaísmo; de acordo com Haddad, a afinidade entre a psicanálise e o judaísmo diz respeito, sobretudo, a aspectos formais.
Certamente, a psicanálise deve muito à judeidade de Freud. Mas parece pouco provável que deva algo ao judaísmo como religião. A condição judaica de Freud foi importante para a criação da psicanálise na medida em que, como judeu, ele estava preparado para assumir uma posição minoritária. Independência de julgamento e tenacidade: eis o que Freud aprendeu com o fato de ser judeu. Nesse sentido, não foi por acaso que o descobridor da sexualidade infantil, o desbravador do “sexto continente” e o autor da teoria da etiologia sexual das neuroses tenha sido um homem acostumado a estar na oposição.
Segunda frase: “A psicanálise e a religião concordam entre si”. O maior representante desse ponto de vista foi um amigo pessoal de Freud: o pastor luterano OskarPfister, o “pai” do diálogo entre a psicanálise e a religião. No dia 9 de outubro de 1918, provocativo, Freud perguntou a Pfister por que a psicanálise precisou esperar por um judeu completamente ateu para ser criada. Passadas três semanas, surpreendentemente, o pastor respondeu que, de saída, Freud não era judeu e, em segundo lugar, que tampouco era ateu. Um homem que busca a verdade e combate pelo amor só pode estar muito próximo de Deus, argumentou Pfister. O pastor acrescentou: “Jamais houve cristão melhor”.
Embora não seja nem de longe o único, Pfister é, sem dúvida, o campeão do concordismo. Ele não apenas defendeu a compatibilidade entre a psicanálise e a fé cristã, mas fez do inventor da psicanálise uma espécie de cristão anônimo, “batizou” Freud. Não falta, porém, quem considere que a harmonização entre a psicanálise e a religião é uma operação que faz violência tanto a uma como à outra. A conciliação só é possível ao preço de uma adulteração de, pelo menos, uma das duas grandezas em jogo – ou ainda: de ambas!
Terceira possibilidade: “A psicanálise apenas purifica a religião”. Esta afirmação é, na verdade, uma tese auxiliar daquela que acabamos de considerar. A tensão entre a psicanálise e a religião – argumenta-se – é aparente; a psicanálise concorre apenas para a depuração da religião, não para a sua aniquilação, vindo, assim, em última análise, prestar-lhe um serviço involuntário. De novo, Pfister é o melhor porta-voz desse parecer. Em 1928, em A ilusão de um futuro – a sua réplica a O futuro de uma ilusão (1927), de Freud –, Pfister descreveu o método psicanalítico como “um instrumento maravilhoso para purificar e fazer avançar a religião”. Pretende-se que esse raciocínio valha seja para a experiência da análise, seja para o embate teórico com a psicanálise, isto é, tanto o crente que se deita no divã de um analista, quanto o teólogo que enfrenta o desafio que o pensamento de Freud representa sairiam ganhando com a psicanálise, não abandonariam a religião, mas, pelo contrário, teriam a sua fé depurada, amadurecida, tornada adulta, menos infantil.
De novo, seria muito conveniente – para a religião, entenda-se – se fosse assim. Mas não parece que as coisas se deem sempre desse jeito. Mais razoável é admitir que tudo pode acontecer com a fé de quem entra em contato com a psicanálise – seja com o divã do analista, seja com os livros de Freud. Tudo! Pode-se perder a fé; pode-se purificá-la; pode-se, nesse sentido, fortalecê-la; pode-se até adquirir a fé – ou recuperá-la – com a psicanálise. Em O dia em que Lacan me adotou (2002), Haddad, por exemplo, conta que recuperou a fé fazendo análise com o grande mestre parisiense. Mas não é todo dia que isso acontece.
Penúltima frase: “A psicanálise e a religião são incompatíveis entre si”. Psicanálise e religião são como “óleo e água”: não se misturam. Quando Hélio Pellegrino morreu – Pellegrino era psicanalista, marxista e cristão! –, um grupo de amigos decidiu homenageá-lo com um livro de artigos sobre psicanálise e religião. Deram-lhe o nome Hélio Pellegrino. A-Deus (1988). O artigo de Joel Birman teve por título: “Desejo e promessa, encontro impossível”. Segundo Birman, há uma polaridade insofismável entre a psicanálise e a religião; as duas coisas são essencialmente divergentes. E essa incompatibilidade reside fundamentalmente em que a religião é orientada, em suas práticas sociais, pela dimensão da promessa, ao passo que a psicanálise pretende apenas levar o sujeito ao encontro da verdade singular do próprio desejo.
Psicanálise e religião – desejo e promessa. Esse binômio pode ser multiplicado. A psicanálise e a religião não se dão. Porque a psicanálise (psico + análise) faz análise; a religião, síntese. A psicanálise desliga; a religião (do latim religare) liga. A psicanálise está do lado do inconsciente; a religião, do eu. A psicanálise está interessada no descentramento do sujeito; a religião, no seu centramento. Na psicanálise, trata-se do sujeito barrado; na religião, do indivíduo (in + dividuus = indivisível). Para a psicanálise, o sujeito é clivado; para a religião, ele é uno. A psicanálise tem a ver com o que é parcial; a religião, com o total. A psicanálise é “sexofílica”; a religião, não raro, “sexofóbica”. A psicanálise é arqueológica; a religião, teleológica. A psicanálise leva o sujeito a confrontar-se com o desamparo; a religião, pelo contrário, lhe oferece proteção. Mais! O que a religião e a psicanálise fazem com o real da castração é diferente. A religião vela, mascara, encobre, tampona a castração; a religião tapa o furo, obtura a falta, preenche o vazio, sutura a divisão, responde ao enigma, dá sentido ao sem-sentido, nomeia o inominável. A psicanálise… tudo ao contrário!
Admitir que há um problema – e um problema sério – entre a psicanálise e a religião não significa, porém, descartar o contato, o diálogo, a relação entre uma coisa e outra. Nas décadas de 1960 e 1970, por exemplo, chegou a haver 12 jesuítas – como o papa Francisco – na Escola Freudiana de Paris, o grupo de Lacan. E não me parece que esses senhores ignorassem as antinomias acima enumeradas. Mais recentemente, o também padre jesuíta Carlos DomínguezMorano publicou um livro intitulado: Psicanálise e religião (2000). O subtítulo da obra é Diálogo interminável. Sim, diálogo. Mas, interminável. Entre a psicanálise e a religião, não há possibilidade de síntese. Resta, pois, a manutenção de um questionamento mútuo. A relação entre a psicanálise e a religião está destinada a permanecer como questão sempre aberta. Ou seja, como um diálogo sem fim.
Por fim, a quinta e última frase: “A psicanálise é, ela mesma, uma religião”. Certa vez, o próprio Freud observou que o marxismo acabou ficando muito parecido com aquilo que combatia – ele pensava na religião. Não se poderia dizer o mesmo da psicanálise?  Há, de fato, semelhanças não desprezíveis entre a psicanálise e a religião.
Embora possa parecer estranho, no movimento psicanalítico há “deuses”. Numa carta que escreveu a Pfister, em 26 de fevereiro de 1911, Freud fez referência à “deusa Libido”; em O futuro de uma ilusão (1927), por sua vez, ele falou em “nosso Deus Logos”. Há uma “Sagrada Escritura”: as obras completas de Freud ou os Escritos (1966) de Lacan, por exemplo. Há “dogmas”. Em Memórias, sonhos, reflexões (1961), Jung escreveu: “Tenho ainda uma viva lembrança de Freud me dizendo: ‘Meu caro Jung, prometa-me nunca abandonar a teoria sexual. É o que importa, essencialmente! Olhe, devemos fazer dela um dogma, um baluarte inabalável’. Ele me dizia isso cheio de ardor, como um pai que diz ao filho: ‘Prometa-me uma coisa, meu caro filho: vá todos os domingos à igreja!’”. Há “papas”. Certa vez, Binswanger perguntou a Freud por que Jung e Adler, os seus alunos mais antigos e, talvez, mais bem dotados intelectualmente, o deixaram. Freud respondeu que eles quiseram se tornar papas. Há “cardeais”. Em 1912, por iniciativa de Jones, após as dissidências de Adler e Stekel e durante a crise que terminaria com a defecção de Jung, foi instituído um comitê secreto com seis membros, verdadeiro “colégio de cardeais”, em torno de Freud. Há “profetas”. No Hospital Psiquiátrico de Burghölzli, onde Jung trabalhava, diziam que Freud era Alá, e Jung, o seu profeta. Também se comparou Jung a Jesus, e Freud a João Batista. Há “missionários”. Freud esperava que Jung promovesse a difusão da psicanálise para além dos meios judaicos em que ela se encontrava inicialmente confinada. Na expressão de Fromm, Jung seria uma espécie de “Paulo da nova religião”. Há “heresias”. Numa carta a Pfister, datada de 24 de janeiro de 1919, Freud descreveu como “heréticas” as opiniões do pastor sobre a constituição e o significado da pulsão sexual; em Um estudo autobiográfico (1925), Freud se referiu a Adler e a Jung como os dois “hereges”. Há “excomunhões”. A segunda cisão do movimento psicanalítico francês, aquela que excluiu Lacan, ocorrida em 1964, ficou conhecida como a “excomunhão”. Há “católicos” e “protestantes”. Pode-se comparar a Associação Internacional de Psicanálise à igreja católica e os lacanianos aos protestantes. De fato, a primeira, fundada pelo próprio Freud, tem um caráter oficial; o cisma lacaniano, por sua vez, resultou numa verdadeira pulverização do movimento psicanalítico. Há Weltanschauung (cosmovisão). Apesar do que Freud escreveu, a teoria psicanalítica pode perfeitamente funcionar como uma visão globalizante. Segundo François Roustang – que foi psicanalista e padre jesuíta –, há psicanalistas que só entendem de psicanálise; para eles, a psicanálise é tudo, um discurso totalizante, análogo ao discurso religioso.
Essa lista poderia ser aumentada: no movimento psicanalítico, há também “oráculos”, “anátemas”, “conversões”, “noviços”, “liturgia”, “moral”, “hierarquia”, “intolerância” etc. Mas o que acima está elencado já basta. Não parece haver nenhuma impropriedade em afirmar que a psicanálise, muitas vezes, tem funcionado como uma religião. Talvez isso explique, ademais, o ateísmo de muitos seguidores de Freud. São ateus porque professam outra espécie de “religião”.
Como se vê, as relações entre a psicanálise e a religião dão o que pensar. O que pensar, o que falar, o que escrever. São seis, portanto, e não apenas cinco, as minhas frases sobre a matéria. Mais uma: “Psicanálise e religião dá o que pensar”.
Ricardo Torri de Araújo
é padre jesuíta, professor do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e autor de Deus analisado: os católicos e Freud (Loyola).
Fonte: Revista Cult - Ed. 190

terça-feira, 30 de outubro de 2012

"FREUD É APENAS UMA LENDA"; ENTREVISTA COM O FILÓSOFO MIKKEL BORCH-JACOBSEN


Mikkel Borch-Jacobsen

"Freud é apenas uma lenda"
Filósofo e historiador, o professor da Universidade de Washington diz por que considera o pai da psicanálise uma fraude
por Natália Martino
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OMISSÃO
"Muitos pacientes de Freud cometeram suicídio e
ele nunca disse uma palavra sobre isso"
, afirma o professor 
O filósofo e historiador Mikkel Borch-Jacobsen não se esquiva de uma polêmica. A última década da sua carreira, dedicada aos estudos sobre a história da psicanálise e da psiquiatria, foi pródiga em livros e opiniões controversas que lhe renderam inimigos entre terapeutas do mundo inteiro. Começou a receber as primeiras críticas severas em 1996 com o lançamento do livro “Anna O. – Uma Mistificação Centenária”, no qual questionava as avaliações de Freud sobre uma das suas principais pacientes. Foi também um dos autores do “Livro Negro da Psicanálise”, uma das obras mais barulhentas já lançadas sobre o assunto. Agora, escreveu “Os Pacientes de Freud”, lançado recentemente no Brasil (Editora Texto e Grafia), no qual reconstrói a trajetória de 31 pacientes de Freud. Na obra, ele conta os motivos que os levaram até o analista e, principalmente, como viveram durante e depois do tratamento. A partir de documentos, como cartas trocadas entre o terapeuta e seus amigos e entrevistas confidenciais feitas com os pacientes de Freud, o autor desconstrói o mito do criador da psicanálise.
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"Os medicamentos foram excluídos das histórias que o psicanalista
contou, mas muitos pacientes eram viciados em morfina"
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"Como Anna iria se curar se seu analista era o próprio pai do qual
ela deveria se desligar? Parece óbvio, mas ele não percebeu isso"
 O que os relatos que o sr. apresenta em seu livro revelam sobre Freud e a psicanálise?
Mikkel Borch-Jacobsen -
As histórias dos pacientes de Freud foram a base das suas teorias. Quando percebemos que elas são falsas, como vemos ao analisar a vida dos pacientes que descrevo no livro, toda a teoria da psicanálise é abalada. O caso apresentado por Freud como sendo de Anna O., que hoje sabemos tratar-se de Bertha Pappenheim, por exemplo, é considerado um dos mais fundamentais para o desenvolvimento da psicanálise. A paciente tinha sintomas graves de histeria que, supostamente, Freud curou com o método catártico. Mas isso não é verdade. No fim do tratamento, ela já não suportava mais conviver com o problema e foi internada em uma clínica, onde continuou apresentando o mesmo quadro de histeria. Apenas seis ou oito anos depois, Bertha foi considerada curada. Não se sabe como ela se curou, mas é óbvio que não foi com a psicanálise, ninguém se cura por meio de um tratamento finalizado quase uma década antes.  
Istoé -
Os resultados terapêuticos eram insuficientes?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Na maioria dos casos sim. Era comum que as condições dos pacientes piorassem, como no caso de Viktor von Dirsztay, que mais tarde chegou a admitir que a análise o destruiu. Muitos outros dos seus pacientes cometeram suicídio, como Margit Kremzir e Pauline Silberstein. Claro que qualquer terapeuta está sujeito ao risco de suicídio dos seus pacientes, mas a questão é que Freud nunca disse uma palavra sobre isso.
Istoé -
Ele escondia esses fatos?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Como um bom positivista, Freud sempre afirmou que suas teorias eram baseadas na observação de dados clínicos. Por um longo período, porém, tudo o que sabíamos sobre esses dados se baseava no que ele escolheu nos mostrar. Ao compararmos essas histórias com a realidade, observamos discrepâncias que automaticamente invalidam as conclusões de Freud. Os medicamentos, por exemplo, foram sistematicamente excluídos das histórias que ele contou, mas muitos dos seus pacientes eram viciados em morfina. Hoje é muito claro que a droga teve em alguns casos um papel essencial no tratamento. Freud dizia, por exemplo, que diante dos ataques histéricos de Anna von Lieben, a Cäcilie M. citada em “Estudos sobre a Histeria”, ele conduzia um tratamento hipnótico que a fazia se sentir melhor. O que ele não nos contava é que as crises dela eram causadas por abstinência de drogas e que ela se acalmava quando ele lhe dava uma injeção de morfina. A famosa cura catártica nada mais era do que cura com morfina.
Istoé -
Os diagnósticos dele são questionáveis?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Sim, os diagnósticos que Freud alegava fazer tão cuidadosamente escancaram discrepâncias entre sua prática real e suas descrições. Quando o pai da jovem Ida Bauer, que Freud eternizou como Dora, a levou até Freud devido a um episódio de asma, o analista instantaneamente diagnosticou neurose. Mas como ele poderia saber? Aquela era a primeira vez que ele a via. Há vários exemplos desse tipo e uma vez que definia seu diagnóstico, Freud o mantinha obstinadamente, mesmo que os fatos mostrassem a ele outro caminho. As consequências dessa postura frequentemente eram bem sérias, como quando Freud forçou Horace Frink a se divorciar da esposa para se casar com a milionára Angelika Bijur para combater a homossexualidade que o paciente negava vigorosamente.
Istoé -
Freud chegava a dar conselhos tão diretos aos pacientes?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Ele intervia diretamente na vida dos seus pacientes e não hesitou em instigar alguns a se casarem e terem filhos, por exemplo. Foi o que aconteceu com Max Graf e Olga Hönig, os pais do “pequeno Hans” – e o casamento foi um completo desastre. Em outros casos, Freud proibia pacientes de se masturbarem, como no caso da sua filha, Anna Freud. Sempre que essas instruções eram dadas, Freud era a voz da autoridade.  
Istoé -
Ele acreditava que podia tratar a filha?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Freud queria muito ajudar a filha a se desligar dele e isso fica claro em várias cartas que ele escreveu a amigos. Mas a única coisa que ele podia oferecer a ela era a psicanálise, o que, obviamente, era a coisa mais estúpida que ele poderia fazer. Como ela conseguiria se curar se sua única ajuda era de um analista que era o próprio pai do qual ela deveria se desligar? Por mais óbvio que pareça, Freud não percebeu isso. Não estou dizendo que ele abusou da filha, de jeito nenhum, ele a amava. Mas estava tão convencido de que sabia como ajudá-la que não permitiu que ela se libertasse dele.
Istoé -
Para Freud, a psicanálise sempre funcionava? 
Mikkel Borch-Jacobsen -
Sim, claro, ele acreditava que havia descoberto a cura para as doenças mentais. Freud tinha suposições teóricas que o impediam de ver o que estava acontecendo. Ele estava tão convencido de que a terapia funcionava que, quando ela não dava certo, ele simplesmente achava que era necessário ir mais fundo no inconsciente. Só no fim da sua vida, em seus últimos artigos, ele admitiu que os métodos eram inconclusivos em alguns casos.
Istoé -
Mas em algum momento ele foi deliberadamente negligente ou desumano com seus pacientes?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Sim, a forma como ele sacrificava seus pacientes no altar das suas teorias é vergonhosa. Marie von Ferstel, por exemplo. Ela era uma mulher rica que sofria de fobias e de constipação. Freud disse a ela que, para resolver esses problemas, ela teria que aprender a se desapegar, por exemplo, do dinheiro. O que ela fez? Transferiu para ele o título de uma das suas propriedades, que ele prontamente vendeu. Eu acho isso imperdoável. Freud simplesmente não era uma pessoa admirável.
Istoé -
De que forma essas revelações atingem a psicanálise hoje?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Não vejo como salvar a psicanálise diante de tudo isso. Eu sei que muitas pessoas admiram Freud como um pensador independentemente das vicissitudes de sua prática. Também acho que ele era um gênio, tinha ideias realmente incríveis. Mas as suas teorias são contraditórias demais às suas práticas para serem levadas a sério.
Istoé -
O sr. aponta essas contradições em 31 casos e Freud atendeu pelo menos cinco vezes mais pacientes. Não poderia ser coincidência?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Uma das minhas principais fontes de pesquisa foram as entrevistas com pacientes de Freud conduzidas por Kurt Eissler, que era secretário do Arquivos de Freud. Esse material ficou inacessível até 1999, quando Eissler morreu e, a partir daí, começou a ser colocado em domínio público, processo que só deve acabar em 2057. Eissler tinha enorme interesse em defender a memória do pai da psicanálise e se essas entrevistas fossem positivas não teriam sido tornadas confidenciais. Muita coisa ainda será revelada, possivelmente conseguiremos rastrear outros pacientes, mas não acho que as novas histórias irão contradizer as estatísticas que já temos.
Istoé -
Muitas pessoas afirmam hoje ter encontrado conforto na psicanálise. Não há nenhum valor nisso?  
Mikkel Borch-Jacobsen -
No meu ponto de vista, neuroses, como histeria e obsessão, não são doenças mentais, são pedidos de socorro. A análise cumpre, nesses casos, o papel que a religião cumpria antes. As pessoas iam até o padre para buscar respostas e as encontravam. Qualquer uma das centenas de tipos de psicoterapias que existem hoje pode cumprir esse papel. Reconheço que, em alguns casos, pessoas com problemas pessoais podem encontrar conforto no divã.
Istoé -
Mas seus livros parecem tentar destruir a psicanálise.
Mikkel Borch-Jacobsen -
Eu sou um acadêmico e meu único interesse é separar as verdades das lendas. Freud é apenas uma lenda. Ele reescreveu a história de acordo com seus propósitos pessoais.
Istoé -
Essa sua postura crítica em relação à psicanálise acompanhou toda a sua carreira?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Não, no início eu era simpático à psicanálise e tinha interesse especial na escola Lacaniana.
Istoé -
E o que essa mudança significou profissionalmente? 
Mikkel Borch-Jacobsen -
Eu era constantemente convidado para conferências e para escrever artigos em revistas até que eu publiquei meu primeiro livro mais crítico sobre Freud. A partir desse momento, não fui mais convidado para nada. Não se pode ser crítico à psicanálise sem sofrer as consequências disso.
Istoé -
O sr. também estudou a psiquiatria. Acredita que esse é um caminho mais válido para tratar doenças mentais?
Mikkel Borch-Jacobsen -
A psiquiatria não é uma teoria única, mas, de forma geral, fez enormes progressos, como se vê, por exemplo, nos diagnósticos de esquizofrenia, depressão e outras doenças. Do ponto de vista da cura, porém, ela não avançou. Temos várias drogas hoje que nos permitem controlar certos sintomas das doenças mentais, mas ainda não há cura para elas e nem mesmo se conhece suas causas. A psiquiatria tenta encontrar soluções, mas ainda não foi bem-sucedida.
Istoé -
Qual é o próximo mito que o sr. pretende desbancar?
Mikkel Borch-Jacobsen -
Agora estou estudando a indústria farmacêutica. Sou muito crítico com as drogas psiquiátricas e, por isso, estou pesquisando esse universo do ponto de vista histórico.  

Fonte: Revista IstoÉ, ed. 2242, 25. Out. 2012.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Conheça as ideias básicas da terapia criada por Freud


Veja mitos e verdades sobre psicanálise
As palavras são associadas, interpretadas, esmiuçadas. Na psicanálise, a cura se dá por meio delas.
Atenção às palavras: tudo bem usar "recalque", "projeção" e outros termos saídos desse campo e já incorporados. Mas confundir os "psis", o que é comum, não.
Psicanalista é uma coisa, psiquiatra, outra.
Psiquiatra é médico: estuda transtornos mentais e os trata prescrevendo remédios.
O psicólogo também estuda saúde mental, mas não receita. Ele estuda o "software que roda no cérebro", como diz Francisco Daudt, colunista da Folha. Há muitas linhas de psicologia, muitos jeitos de estudar comportamento.
Terapeuta é quem cuida. Psicoterapeuta, então, é quem cuida do funcionamento mental das pessoas usando alguma técnica como psicodrama ou as das terapias cognitivo-comportamentais.
Já o psicanalista estuda o tal "software" segundo o modelo de Freud, isto é, partindo da premissa que o inconsciente governa muitas das ações humanas.
O psicanalista pode ser um teórico ou um psicoterapeuta que cuida de pessoas usando a ferramenta psicanálise.
Parte fundamental dessa ferramenta é o método da associação livre, criado por Freud para sondar o inconsciente. Nele, o paciente é levado a falar sobre seus pensamentos de forma a revelar a origem de seus conflitos.
No centro dos conflitos estaria o complexo de Édipo, conjunto de impulsos amorosos e hostis dirigidos pela criança aos pais.
O conceito fazia mais sentido quando a única forma de família tinha figuras de pai e mãe bem definidas. E hoje?
Édipo não precisa ser entendido como antes, ao pé da letra, diz Isabel Gomes, professora de psicologia da USP. "Se duas mães fazem as funções materna e paterna, a triangulação se mantém."
NINGUÉM É PURO
Psicanalistas freudianos puros são raros, diz o psicanalista Luiz Tenório Oliveira Lima. "Analistas experientes transitam com a tradição de Freud e a dos sucessores."
A primeira grande mudança na psicanálise veio com a austríaca Melanie Klein (1882-1960). Ela mostrou que crianças já podem ser analisadas desde cedo.
"Alguém que atende crianças não pode ignorar as contribuições de Klein", diz Luís Claudio Figueiredo, que estuda a autora.
Klein substituiu a associação livre pela interpretação de desenhos, brincadeiras e jogos, nos quais a criança já expressa suas fantasias.
Segundo o psicanalista Daniel Delouya, é uma linha eficaz para tratar psicoses infantis. Nessa terapia, a criança cria uma realidade própria com suas fantasias. "Klein trabalha bem esse mundo interno da criança."
Nem tudo é mundo interno para os seguidores de Donald Winnicott (1896-1971). O pediatra inglês pôs o ambiente na equação psicanalítica, defendendo que o desenvolvimento da criança depende de segurança, dada principalmente pela mãe.
Essa linha "acolhe mais" o paciente, diz Elsa Dias, da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana.
Segundo ela, essa corrente serve sobretudo para transtornos alimentares e síndrome do pânico, que teriam raiz em um encontro não muito acolhedor da criança com o mundo.
Nessa visão, a anorexia se relaciona a problemas no aleitamento; o pânico, a um bebê interrompido a toda hora pela mãe intrusiva.
Sucessor de Klein, Wilfred Bion (1897-1979) contribuiu para a análise repensando a relação analista-paciente.
"O analista não é só a figura sobre a qual o paciente projeta ou transfere: ele se observa nessa relação", diz Adriana Nagalli, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Além de se observar, ele devolve ao paciente as próprias experiências.
Segundo Nagalli, esse vínculo ajuda o paciente a tolerar frustrações. "Ao compreender que seu analista também falha, você suporta melhor suas limitações."
O francês Jacques Lacan (1901-1981) temperou a psicanálise com a linguística. O inconsciente, para ele, só é acessível pelo verbo, já que é a linguagem que organiza e traduz as experiências.
TEMPO TERAPÊUTICO
Lacan reformulou a duração da sessão, propondo o ªtempo lógicoº. Em vez dos clássicos 50 minutos, o analista define o término conforme a situação.
"Na linha freudiana, o analista é uma folha em branco sobre a qual o paciente projeta sua vivência. Quando Lacan introduz o tempo lógico, o analista passa a existir", diz Anna Veronica Mautner.
Segundo Jorge Forbes, do Instituto de Psicanálise Lacaniana, o tempo é fator terapêutico. "Prefiro a arbitrariedade de quem dirige a terapia do que a do relógio", diz.
Lacan mostrou que Édipo não dava conta de explicar novos sintomas do mundo moderno, com menos regras definidas e mais necessidade de tomar decisões, explica Forbes. "O analista põe as cartas na mesa e faz o paciente a se responsabilizar pelas suas decisões."

Fonte: Folha.com/Saúde e equilíbrio

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Freud: além da alma

Trecho do filme do ano de 1962, do diretor norte-americano John Huston, "Freud" (em português, "Freud, além da alma"), onde o criador da psicanálise apresenta aos cientistas suas teorias sobre a sexualidade humana. No papel do pensador austríaco, vemos o ator Montgomery Clift.


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A interpretação dos sonhos ao longo da história do pensamento



O velho Sigmund Freud, em sua obra-prima "A Interpretação dos Sonhos" (Die Traumdeutung), já dizia: "o sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente". A frase se tornou clássica e a obra, naquela época, ajudou a fundar as bases conceituais e metodológicas do que passaria a se chamar de psicanálise. 

A partir da teoria nela apresentada, Freud desenvolveria toda a sua obra. Mas o que trouxe de novo esse livro, escrito no fim do século XIX? Além de ter nada menos que fundado a teoria psicanalítica, o estudo levantava a tese de que os sonhos expressariam a realização de um desejo infantil reprimido. 

Ao criar a psicanálise, sob o contexto de um trabalho voltado a interpretar o conteúdo onírico, o grande pensador austríaco trouxe a lume algo que seus antecessores vislumbraram apenas vagamente, haja vista adotarem concepções sobre o sonho que o aproximavam mais a elementos do simbolismo, premonições ou manifestações de caráter divino. Freud disseminou em nossa cultura o conceito de inconsciente, de uma natureza humana movida pelas pulsões, impossível de ser captada integralmente pela consciência. 

Conheça outras interpretações do sonho ao longo da história do pensamento.

Séc. 8 a.C.

Os gregos,  como os babilônios e os egípcios, entendiam os sonhos como poderosas mensagens divinas. Por isso, construíram o templo de Asclépio, em Epidauro, onde os doentes dormiam e esperavam que um sonho lhes indicasse o caminho da cura.

Séc. 5º a.C.

O filósofo grego Heráclito sugere que o mundo dos sonhos é individual, não sendo necessariamente resultado de influências externas, nem mesmo divinas.

Séc. 3º a.C.

Aristóteles, outro filósofo grego, propõe que os sonhos são reflexo do estado do corpo e, por isso, podem ser utilizados pelos médicos para diagnosticar doenças. Essa teoria é encampada por Hipócrates, pai da Medicina.

Séc 1º a.C.

O romano Artemidoro escreve Oneirocroticon, primeiro livro sobre a interpretação dos sonhos. Nesse trabalho de cinco volumes eme argumenta que as imagens sonhadas são reflexo da profissão do sonhador e de seu status social.

Sécs. IV e V d.C.

Santo Agostinho de Hipona










Pensadores cristãos, como Santo Agostinho (354-430) e São Jerônimo (342-420), retomam o conceito dos sonhos como eventos sobrenaturais e premonitórios. Há passagens na Bíblia que falam dos seus poderes proféticos. José, pai de Jesus, também teria sido avisado em sonho sobre a gravidez de Maria.

Séc. VII e VII d.C.

O profeta Maomé (570-632) dava extremo valor aos sonhos. Recebeu, inclusive, grande parte do Alcorão durante um delírio noturno. Também interpretava os sonhos de seus discípulos.

Séc. XIII

Martinho Lutero














A Igreja Católica passa a associar os sonhos, especialmente os eróticos, a obras do demônio. O alemão Martinho Lutero (1483-1546), fundador do Protestantismo, era um dos que partilhavam dessa opinião.

Séc. XVIII

Johann Fichte

















O filósofo alemão Johann Fichte lança a tese de que os sonhos revelam temores e desejos inconscientes. 

Séc. XIX

O psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939) retoma a teoria dos desejos contidos, salientando a essência erótica dos sonhos. Objetos longos e pontiagudos representariam o pênis, enquanto os ocos simbolizariam a vagina. 

Séc. XX

Carl Gustav Jung
















Carl Gustav Jung (1875-1961) não identificava a origem da maioria dos sonhos em problemas sexuais ocultos. Acreditava que eles revelassem desejos, quaisquer que fossem. Também sugeriu a existência do "inconsciente coletivo", parte da mente na qual estão depositadas as informações comuns a todos os humanos. Assim tentava explicar o fato de pessoas de culturas opostas relatarem sonhos com significados praticamente iguais.

Fonte: Manual do sono, ed. 001/2011 (com adaptações pessoais)

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