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terça-feira, 26 de dezembro de 2017

O ÚLTIMO BEIJO
Por Rogério Rocha.



Sangrava muito. O tapete do quarto, ao pé da cama, recebia seu sangue como água. Ajoelhado ao chão, Mário esperava o fim.


Seu pulso esquerdo, cortado pela faca que agora escapava de sua mão direita, abria-se na vermelhidão da carne.


A visão fatal lhe avançava aos olhos. Escurecendo o dia, estava enfim entregue à pura sorte. Seu intento extremo conhecia o desfecho almejado. Sua curta existência fechava as cortinas naquele instante. Um espetáculo trágico que não lhe valia aplausos.


Estava só, como desde sempre. Estava só. De novo só, como no início. O começo e o fim tão próximos. Iguais em tudo. Solidão e melancolia. Um rastro de vida, sem motivos pra comemorar, apagava-se agora.


Muito frio pelo corpo. Muito frio, muito frio... um frio intenso se apossara do jovem entorpecido. Parecia cair sobre ele a bruma gélida de um inverno nórdico. Inverno que nunca haveria em sua quente terra natal.


Em poucos minutos, pensou no que vivera até aquele instante. Por alguns segundos teve medo, teve dó, piedade de si mesmo. Por breves segundos sentiu medo. Medo de tudo. Todo tipo de medo, que aqui não vale nominar.


Sentiu-se amargo. Amargo sofrimento esse, de quando as coisas terminam.


Entretanto, e muito estranhamente para ele, naquele instante, de algum modo, enfim, sentiu-se também profunda e terrivelmente completo. Como se aquele fosse o seu grande momento.


Já quase não havia mais luz. Não em seu quarto, pois a luminária estava acesa. Também quase não havia mais em sua consciência. Era pouca, tênue, fraca, quase a se apagar.


Cingiu os punhos, num último esforço, e deixou-se cair para frente. Sua cabeça bateu forte no chão, como igualmente o resto de seu corpo, soando um baque surdo por sobre o tapete já rubro e molhado.


O lado esquerdo do seu rosto colou-se ao chão. Sua boca ficou entreaberta, com sangue em filete a esvair bem no canto, emoldurando o que a princípio poderia ser quase um sorriso de vitória.

 
Os olhos entreabertos e fixos no vazio relembravam um passeio que a memória guardara, com as cores, formas e desenhos próprios do mundo quando num momento de felicidade. E nos flashes da memória, vívida e dolorosa, a lembrança de uma tarde radiante, do caminho do campo, das margens de um rio, de sua namorada sorrindo, mãos dadas, caminhando e falando-lhe sobre coisas que queria fazer na manhã seguinte quando voltassem para casa.


Ali, sobre o chão vermelho em que se achava, no mesmo filme da lembrança, reviveu o momento de um convite para um banho, o lançar-se ao rio depois de uma corrida breve pra tomar impulso, os dois a cair na água como pedras lançadas do alto das árvores, ele a subir novamente, cabeça furando a correnteza, sugando o ar para os pulmões e novamente alcançando a estabilidade do nado e da flutuação. Logo depois o espanto, o desespero, a sensação de total abandono, ao não saber onde estava sua amada.


Muito depois e bem longe dali, num olhar perdido, naquela mesma tarde, mirou aquilo que parecia um corpo a deslizar lentamente, seguindo o curso do rio, já quase a sumir do alcance da visão.


Foi então quando Mário, imóvel sob a poça de sangue, antes do suspiro mais profundo que daria em sua vida, no quarto vazio, sentiu um cheiro de flores invadir o ambiente, seguido de uma brisa macia a afagar-lhe o corpo e um leve e último beijo a tocar-lhe a face lívida. A noite então chegara.

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