domingo, 30 de outubro de 2011

A linguagem pomposa do "juridiquês"


Damásio Evangelista de Jesus
Damásio de Jesus é advogado, Professor de Direito Penal, Presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus e Diretor-Geral da Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Recebeu o Prêmio Costa e Silva e o Colar D. Pedro I, é Doutor Honoris Causa em Direito pela Universidade de Estudos de Salerno (Itália) e autor de livros na área criminal. 
Tornou-se uma característica própria do profissional do Direito e que o distingue dos demais profissionais. Daí falar-se até num idioma particular: o "juridiquês". Neologismo não incluído nos nossos dicionários, mas sobre o qual ninguém tem dúvida: é aquele linguajar rebuscado, pomposo, rico em citações latinas, nem sempre fiel à lógica visto juntar várias premissas que se abrem em várias proposições visando enriquecer a argumentação. É muito fácil, se o adepto do juridiquês não tiver uma base muito sólida de cultura geral e de conhecimento jurídico, que ele se perca no emaranhado de palavras que redundam sem nexo e, portanto, inócuo.
Mesmo quando o jurista é aquele considerado um dos melhores do País em todos os tempos, sua fala, em certos casos, pode induzir o interlocutor a uma confusão total. Acertou! Refiro-me a Rui Barbosa, o Águia de Haia, e à lenda que sobre ele se conta, misto de "causo" e piada. Dizem que certa noite Rui chega em casa e ouve barulho no quintal. Surpreende, então, já em cima do muro, para fugir com os objetos materiais do crime, um ladrão que tenta levar seus patos de estimação.
Rui, não se despojando da voz altiva, vocifera contra ele:
"- Ó bucéfalo anácroto! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos emplumados bípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito de minha residência, levando meus ovíparos à socapa e à sorrelfa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas, se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e altaneiro, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto de tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência do que o vulgo denomina partícula insignificante do átomo!"
O ladrão, sem pestanejar, respondeu ao mestre baiano:
"- Doutor, eu não entendi: levo ou deixo os patos?"
Ninguém, em sã consciência, duvidaria da proverbial cultura de Rui. Sabe-se que, na Conferência de Haia, quando perguntado em qual dos dois idiomas (Inglês ou Francês) falaria o representante do Brasil, ele teria dito: o representante do Brasil poderá falar na língua de seu interlocutor. É verdade que era poliglota. É fato que colocou à porta de sua casa em Londres, quando lá morou, uma tabuleta onde se lia: Ensina-se Inglês aos ingleses. Ninguém duvida de que era orador notável e jurista inconteste. Rui, entretanto, tinha, até mesmo por sua cultura, a dimensão plena do peso das palavras e do significado delas. É o que se deduz de outra história que sobre ele se conta e todo mundo conhece, segundo a qual, procurado por um fazendeiro que lhe pedia um parecer jurídico sobre contenda na qual estava envolvido, Rui, após tomar ciência do caso, emitiu parecer de meia página. Entregou-lhe a conta: 30 contos de réis. O cliente quase caiu de costas, reclamou. Rui, sem dizer palavra, pegou de novo o papel e rasgou com cuidado o seu nome e entregou o texto ao fazendeiro, dizendo: pode levar, é de graça. As palavras, no caso, por mais bem elaboradas que estivessem, nada valiam sem o peso de quem as validassem.
É isso aí, meus amigos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Não se concebe um advogado que não domine a língua de maneira a elaborar uma petição, uma peça de acusação ou de defesa que não seja clara, precisa, correta e, se possível, rica na dose certa de elementos que substanciem o documento. Não se pode admitir um advogado que não consiga elaborar um pensamento lógico, corretamente expresso em língua nacional. Creio que é aí que reside o motivo mais forte para os desastres em que se transformam os Exames de Ordem.
Falar difícil, pomposamente, por manifestação escrita ou verbal, não se ensina nos bancos universitários. Um falar mais simples, mais conciso e mais direto também não se ensina nas salas de aulas. Ensina-se, ou dever-se-ia ensinar, a falar e escrever corretamente a língua portuguesa. Aprender de fato verbos, conjugação, concordância; estimular, se necessário, exigir leitura dos textos jurídicos e de textos da literatura universal. Muito do que se encontra na retórica dos advogados é bebido na cultura de todos os povos e isso não é possível passar num curso de cinco anos.
Daí que urge voltarmos ao bom Português, às leituras que podem enriquecer o nosso discurso e fundamentar nossa tese. Dessa forma, fatalmente sairá excelente peça. De outro modo, estaremos copiando seja um discurso empombado seja uma peça pueril, mas sempre pobre de qualidade.
Fonte: Jornal Carta Forense

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